projeto

Nos dias em que vivemos, as previsões do que será o nosso futuro são devastadoras. A crise climática avança, imparável, sob o ataque violento da indústria fóssil e de toda a estrutura económica construída à sua volta, enquanto a passividade e a alienação travam a sociedade de se auto defender. Um fator para esta inação é a incapacidade de ver um futuro digno, perante um vazio político onde o troar das promessas do regresso ao passado do autoritarismo e do chauvinismo das sociedades fechadas entre muros é o mais ruidoso. Mas ouvem-se rumores de esperança e não há cartas marcadas na história da Humanidade.



’42 começa no fim. O futuro em que se conseguiram travar os piores cenários de alterações climáticas começa na Lisboa de 2042, uma cidade muito transformada em quase tudo: transportes, energia, alimentação, água, lixo, o Tejo e a comunidade. Em vez do exercício linear da construção de uma descrição limpa, higiénica, contada apenas pelo lado vencedor e com poucas contradições, desde A até B, em ’42 vamos ter retratos do que aconteceu em Lisboa e em cidades por todo o mundo, testemunhos, notícias, documentos dos anos loucos em que quase tudo mudou. Guerras, migrações em massa, traições, episódios trágicos e heróicos, revoluções, transformações, um pouco de tudo aconteceu para chegarmos a 2042 e haver novamente esperança no futuro. Mas não está tudo resolvido nem estamos “salvos” de vez. Muito do que foi destruído terá de ser reconstruído, sabemos disso.

Mas a esperança fundamentada para continuar a construir um futuro melhor em 2042 só foi possível pela ação de centenas de milhões de pessoas que mudaram a história.


As crónicas de '42, que sairão semanalmente em português no Setenta e Quatro, misturam um futuro de alterações climáticas, transformações tecnológicas, sociais, políticas e científicas. É uma ficção científica sobre os próximos 20 anos de Lisboa, da Europa e do Mundo escrita pelo João Camargo, investigador em alterações climáticas e militante no movimento pela justiça climática, no climáximo em portugal e ilustrado pelo Nuno Saraiva, que dispensa apresentações. conhece-nos melhor aqui!


o ‘42 foi publicado em português em Portugal no site Setenta e quatro, e continua atualmente no site gerador. No brasil é publicado no site da revista opera mundi. É publicado em espanhol no site de climatica - la marea e na revista literária mexicano-americana beyond dimensions.


Procuramos sempre novos formatos - audio, vídeo, spin-offs nacionais. se tens ideias para somar ao ‘42, contacta-nos!


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joão camargo

investigador, professor e militante do movimento pela justiça climática há vários anos. autor dos livros “Que Se Lixe a troika”, “manual de combate às alterações climáticas”, “portugal em chamas - como resgatar as florestas” com Paulo Pimenta de castro, “salvámos a primavera” e “salvámos o outono” com Joana louçã. foi professor de química e botânica na universidade lúrio em cabo

delgado e niassa (moçambique), de física e química no liceu pedro nunes em lisboa. foi jornalista e trabalhou vários anos numa ong de ambiente em portugal. foi um dos membros fundadores das associação de combate à precariedade - precários inflexíveis e da auditoria cidadã à dívida pública. foi um dos fundadores e milita no movimento pela justiça climática climáximo. engenheiro zootécnico e engenheiro do ambiente, tem um doutoramento em alterações climáticas e políticas de desenvolvimento sustentável. publicou mais de uma dezena de artigos científicos nas áreas das alterações climáticas, movimentos sociais e políticas públicas. escreveu mais de três centenas de artigos de opinião na imprensa portuguesa e internacional, nomeadamente na visão, na sábado, no público e no expresso. atualmente é editor da revista internacional fight the fire, investigador integrado no ISCTE e trabalha como researcher e campaigner na área do agronegócio na união europeia.

nuno saraiva

ilustrador Editorial, cartunista, pintor de murais, autor de bd, colaborou praticamente toda a imprensa escrita portuguesa, Com Júlio Pinto criou as séries em BD "Filosofia de Ponta", "Arnaldo o Pós Cataléptico" e a "A Guarda Abília". ilustrou o livro "Caríssimas 40 canções - Sérgio Godinho e as canções dos outros" (Abysmo), entre muitos outros.


Desenhou as Festas de Lisboa que animaram arraiais desde 2014. Participa na colecção “Sardinha by Bordallo” (Fábrica de Faiança Bordallo Pinheiro) com a sua “Sardinha do Golaço”, comemorativa do feito campeão da selecção no Euro 2016. O seu livro "Tudo isto é Fado!" (Museu do Fado), foi galardoado com o prémio “Melhor livro de BD 2016” (FIBDA).É docente na escola de artes e comunicação Ar.Co onde ajudou a criar vários workshops na area da ilustração, BD e Cinema e na escola LSD, Lisbon School of Design onde coordena um atelier de ilustração digital. Autor das imagens para as festas de Lisboa promovidas pela EGEAC desde 2014, desenvolve agora todo o conjunto de Troféus para as Marchas de Lisboa. A par das aulas e do atelier dedica-se também à Pintura Mural, tendo já cerca de 6 obras espalhadas pela cidade de Lisboa e arredores.

prólogo

Segundo o WCS, Serviço Mundial do Clima, que compila e divulga as estatísticas meteorológicas, atmosféricas e climáticas de todo mundo, as emissões de gases com efeito de estufa em 2041 foram de 24,4 Gt de dióxido de carbono equivalente, voltando aos níveis de emissões globais do ano de 1970. O objetivo do Tratado Mundial do Clima é que em 2050 as emissões sejam menos de metade disso.


A concentração de dióxido de carbono na atmosfera é de 430 partes por milhão, tendo decrescido lentamente na última década.


Há 7,5 mil milhões de habitantes no planeta.


A temperatura média global do planeta em 2041 foi de 15.2ºC, subindo depois de três anos consecutivos em queda. São 1.4ºC acima da época pré-industrial. Em 2042, a temperatura está mais alta do que no ano passado.


Nas últimas décadas já chegamos a 15.6ºC, a temperatura mais elevada registrada no planeta nos últimos 120 mil anos, provavelmente a mais alta em 3 milhões de anos.


Lisboa


Alexandre poisa a cabeça no colo de Lia, a sua companheira. Estão em casa na Rua da Cruz de Santa Apolónia, junto às margens do rio Tejo. Lia está grávida de sete meses.


- António, se for menino. - diz Alex, cujo pai, falecido há dois anos, tinha o mesmo nome.


- E Marta se for menina?


- Não. Marta não.


- Porquê? Era o nome da tua mãe. - responde Lia, espantada. Os pais dela estão vivos, mas Alex perdeu os seus na última década. Lia sabe que os pais de Alex eram militantes desde o início do movimento, mas Alex não costuma falar sobre isso.


- Se for menina, podemos chamá-la Carolina. Ou Catarina.


- Eu gosto muito do nome Marta. Além disso, seria uma homenagem à sua avó.


- Uma homenagem? Porque é que a íamos homenagear?


- Ela não foi uma revolucionária do movimento? Uma organizadora que ajudou na Grande Mudança?


- Talvez. Na verdade não sei. Sei o que o meu pai fez por cá, mas ele nunca me contou o que é que ela fez depois de partir. Lembro-me de nos deixar quando eu tinha quinze anos e de só a ver uma vez mais. E nessa vez, ela não me disse quase nada. Foram dez anos sem chamadas por telefone, sem vídeos, sem cartas. Sem mãe. Nada até chegar a notícia de que morreu e do seu funeral, cheio de pessoas que eu não conhecia.


- E não queres saber mais?




- Pá, não. Sobre ela, não. Tenho mais em que pensar. Ela fez as suas escolhas e eu não fiz parte delas. Felizmente o meu pai ficou. Ficou por mim. E foi muito importante para o que aconteceu aqui, apesar de nunca ter querido que ninguém lhe fizesse homenagens. - Uma lágrima escorreu pelo rosto de Alex. - A partida dela também o destruiu e amargurou, especialmente no fim da vida.


- OK, meu amor. Também gosto de Carolina. Ou Antónia? - Lia beijou-lhe a mão e ele sorriu com uma careta. - Mas acho que precisas saber o que aconteceu.


- Tentei durante anos, mas o meu pai nunca me ajudou.


- O bebé merecia saber a história da sua família.


- Tu é que queres saber, não é, cusca? - riu-se ele.


Lia deu uma palmada no ombro do seu companheiro.


- Sim, também sou curiosa e quero saber. Se fosse a minha família de certeza que não ia parar até descobrir tudo.


- Vou pensar nisso. Talvez depois da criança nascer.


- Pensa. Eu ia gostar muito.


Em Maio de 2042, o António nasceu.

Computer Screen

fátima

fátima

De: alexaguas@voo.com

Para: fidrissi@nhope.ma

Data: 23 de mai. de 2042, 06:20

Assunto: Re: Os meus sentimentos pelo teu pai


Salam, Fatima.


Como estás? Há algum tempo que não falamos. A última vez foi quando o meu pai morreu, batemos aquele papo Zoom, lembras-te? Espero que estejas melhor das dores de cabeça, fiquei preocupado contigo. Vocês todos andam bué doentes para a vossa idade. Espero que te estejas a cuidar e que a família também esteja bem.


Tenho grandes news. Tive bebé, um menino a que chamei António, como o pai. Estou muito feliz e só tenho pena que nem o meu pai nem a minha mãe estejam cá para verem, tenho a certeza que ficariam muito felizes e orgulhosos. Mando-te um filminho. É muito tranquilo e dorme super bem. Nasceu há 10 dias.


Conto-te porque te estou a chamar. A Lia sempre foi super curiosa sobre a minha mãe, o meu pai e as vossas ações e aventuras. Quando estava grávida vasculhou as caixas da mãe e sugeriu que eu escrevesse sobre o que aconteceu nas últimas décadas, para contarmos ao menino quando ele for maior, também para conhecer os avós.


Quando ela me falou nisso eu fiquei um pouco indeciso, porque pai não gostava nada daqueles tratamentos de “herói” que às vezes faziam, odiava cerimónias e só queria ficar em paz. E com a doença piorou. Eu não queria escrever apesar de ela insistir. Mas quando vi António pela primeira vez, algo mudou. É mesmo parecido com o meu pai, Fatima.


Apesar de ser bebé, fui procurar fotos do velho em pequeno e encontrei numa drive velha com digitalizações. São mesmo iguais, o velho e o miúdo: nos olhos, na boca, no sorriso, mas o nariz é da Lia. Nas caixas da mãe encontrámos revistas, artigos, escritos por ti, pelo pai, pelo Sukumar, pela Stephanie, e fotos vossas.


Tens os contatos destas pessoas? Noutra drive também tinha vídeos, fotos, recortes, notícias e reportagens onde apareciam coisas da Última Geração, da Liga, do Mundo Novo. Percebi que há ali muita coisa que eu não sei. Lembro-me de coisas, claro, mas falta muita informação que não está lá e também falta perceber a ordem pela qual as coisas aconteceram.


É por isso que te mando este mail.


Decidi tentar juntar histórias do que aconteceu nos últimos 30 anos para contar ao miúdo. Estou a recolher notícias, infos em geral para explicar como acabámos por chegar aqui. Sei que muita coisa desapareceu com as Big redes, mas ainda há de haver cenas, não? Olha, também quero saber melhor sobre o que aconteceu ao pai e à mãe, à malta que ia lá a casa... Umas vou vendo por aí até, outras deram ghost. Havia Pepe, que o pai defendia sempre na prisão, e que trazia sempre as melhores prendas para nós, lembras-te? Andavam sempre à procura dele. Acho que era da tua idade.


Então, não te vou chatear mais sobre isto, mas se estiveres OK em ajudar-me e quiseres falar marcamos uma call um destes dias à tarde. Que dizes?


Alex



Foi assim que esta história começou. O meu email para a Fatima Idrissi, uma agricultora marroquina, de Marrakesh, que militou com os meus pais nos movimentos revolucionários dos anos 20 e 30 do século XXI, foi o primeiro de muitos contactos que fiz durante vários meses com pessoas de toda a parte. Entrevistei-os e recolhi material para tentar ajudar a contar a loucura que foram os últimos 25 anos.


Perdoem-me pela confusão, mas estes anos foram mesmo uma loucura. Comecei por escrever esta história para o meu filho, mas descobri, ao longo do caminho, que o fazia muito para mim, e pela memória dos meus pais e de tanta gente que se empenhou em conseguir travar as Grandes Crises ou a Grande Mudança, como lhes chamamos agora.


Não sabemos se as coisas vão piorar. No ano passado a temperatura voltou a aumentar, depois de quatro anos em queda, mas não voltou ao calor mortal do passado recente. Conseguiu-se cortar as emissões que era suposto até 2030 e continuam a descer desde então, mas ainda é demasiado cedo para perceber se fomos a tempo.


fiquei muito impressionado, assustado e deslumbrado pela história louca do mundo nas últimas décadas e o papel que pessoas normais tiveram nela.


Alexandre águas

Lisboa, 2043







Sento-me na janela de minha casa em Lisboa. Moro em Santa Apolónia, encostado ao rio. O antigo Hotel da Estação, depois de se ter inundado tantas vezes, acabou por ser abandonado há mais de uma década. Agora, a poucos metros da minha casa, apanho o elevador que sobe até à Graça. As antigas docas e o cais dos cruzeiros, que há meia dúzia de anos ainda aparecia acima da água durante a maré baixa, agora está sempre submerso. Há vários anos que os cruzeiros já não atracam aqui.


Cumprimento a guarda-freios do elevador, lembrando-me do tempo em que fiz este trabalho, durante mais do que um ano. Era um trabalho tranquilo, embora fosse um pouco monótono andar a subir e a descer durante quatro horas por dia. O elevador passa por entre as árvores da rua do Vale de Santo António e consigo apanhar um pêssego com a mão - ainda está verde. Estamos na primavera e está quase na altura da apanha da fruta.


Esta encosta da cidade de Lisboa foi toda plantada com pessegueiros. Noutras partes da cidade há outros frutos, de acordo com os solos e o sol.


Há mais de uma década que o asfalto começou a ser arrancado, mas o nível de contaminação dos solos não permite ainda plantar comida nem frutos em várias zonas da cidade, depois de tantos anos debaixo de alcatrão. As ruas que tinham pedra em vez de asfalto são das que estão em melhor estado e por isso têm sido aquelas com mais produção.




Vou à Biblioteca da Penha de França. Apesar de haver bibliotecas mais próximas de casa - e há mais de 300 bibliotecas em Lisboa - foi nesta que consegui marcar um estúdio para gravar a entrevista com a Fatima.


Conheço a Fatima há muitos anos, de um período de talvez quase um ano que ela passou na casa dos meus pais. Ela vinha fugida da polícia política marroquina, segundo me lembro. Agora deve ter uns 50 anos. Era muito nova quando começou a militar em vários movimentos. Quero falar com ela para perceber o que aconteceu ali entre o fim dos anos 10 e o fim dos anos 20. Ela afastou-se das coisas mais tarde.



- Olá Fatima. Salam!


- Alex, estás tão bonito. Que felicidade ver-te. Fiquei muito interessada no que me escreveste. Tenho todo o gosto em ajudar-te, tenho muito material aqui guardado que te pode interessar. Posso mandar-te fotos das coisas.


- Seria óptimo, sim, Fatima. Olha, eu vou gravar a chamada, ok?


- Sim, já não me preocupo com essas coisas há muito tempo.


- Desculpa, na verdade, isto já estava a gravar sozinho, começou automaticamente.


- Não tem problema, Alex. Conta-me então o que queres saber.


- Muito bem. Fatima El Idrissi, podes contar-nos quem és?


- (risos) Agora sou uma agricultora urbana em Marrakesh, mas fui militante revolucionária durante muitos anos, criei e dirigi organizações políticas, participei ativamente na Revolução Marroquina e fui durante vários meses parte da assembleia constitucional ecosocial da República de Marrocos. Depois participei nas Caravanas do Futuro antes de me retirar da vida ativa, porque tenho estado doente. Pulmões e coração. O preço a pagar por tanta agitação.


- Quando começaste a envolver-te com política?


- Comecei a ganhar consciência política nas primaveras árabes. Tinha 18 anos e participei nos protestos aqui em Marrocos. Olhávamos para o que se passava no Egipto - em que tiraram o Mubarak - para a Tunísia, para a Líbia… O mundo estava todo a mudar. Fiquei muito entusiasmada quando foi anunciado que íamos ter uma nova constituição… mas no fundo acabou por ser um truque.


- Ou seja…


- O rei manteve o seu poder intocado, e apesar de alguma maquilhagem, as coisas ficaram quase iguais. Depois as coisas começaram a explodir pela Europa, Estados Unidos, Brasil, Turquia. Mas no fim, com o que aconteceu no Egipto, na Líbia, na Síria, na Grécia e até mais tarde nos Estados Unidos e Brasil, foi muito frustrante. O mundo parecia avançar para melhor e em poucos anos tudo voltou para trás.


- Ficaste surpreendida?


- Perdi a minha inocência política aí. Mas a vida continuou. Em 2016, a COP-22 foi aqui em Marrakesh. Foi um processo de aprendizagem e de envolvimento muito interessante para mim, para conhecer um novo mundo. Eu já estava interessada em alterações climáticas e quis participar.


- Participaste?


- Fui convidada por um amigo a participar em alguns eventos e ele explicou-me tudo: como o governo tinha inventado uma série de ONGs para fazerem de figurantes de sociedade civil, como as negociações não iam dar em nada, como nas mesmas salas se faziam os grandes negócios - agrícolas, energéticos, de transportes - pelas empresas que estavam a criar as alterações climáticas. Era incrível. O furor depois da assinatura do Acordo de Paris estava a desaparecer e, mesmo no meio da COP, Donald Trump foi eleito presidente dos Estados Unidos. Não se falava de mais nada na conferência, ele tinha prometido mesmo acabar com o Acordo de Paris. Mais uma desilusão para mim, mas pelo menos o meu amigo já me tinha avisado.


- Foram muitas desilusões, como te mantiveste envolvida?


- Ia ligando e desligando. Nessa altura ainda não estava em nenhum grupo, fazia uns trabalhos avulsos como traduções, algum secretariado. Procurava não ficar em baixo, seguia a minha vida. Era amiga de várias pessoas que estavam envolvidas em lutas ambientais, sociais, as lutas dos professores. Marrocos tinha muitas convulsões… Mesmo antes da COP em Marrocos tínhamos tido protestos por todo o país porque a polícia tinha assassinado um vendedor de rua, as pessoas estavam descontentes de forma intermitente. Estavam desde as primaveras árabes. Antes, mesmo…


- Mas dizia-se nessa altura que o governo marroquino era muito avançado em termos de política climática…


- O rei e os seus aliados eram donos das centrais a carvão e a gás, das centrais solares. Tinha sido construída em Ouarzazate a maior central solar do mundo de concentração solar, hectares e hectares de painéis no meio do deserto, não dava para ver a extensão toda do chão. Mas aquela energia não era para nós, todos os planos eram exportar, para a Europa, claro. E como não havia água para limpar a areia, era preciso estar sempre a tirar água de onde as comunidades precisavam dela. Além disso, o governo e o rei continuavam a explorar fósseis. Mesmo durante a cimeira, eles estavam a dar concessões para explorar petróleo e gás no mar, e gás de xisto em terra. Tudo o que pudesse dar dinheiro, eles faziam. Entretanto, uma grande parte da população não tinha sequer energia elétrica. Se desmantelassem a central solar de Ouarzazate e entregassem aqueles painéis solares todos nas aldeias e nos bairros, as coisas seriam profundamente diferentes, mas isso não servia os interesses da monarquia. Era principalmente propaganda política.


- E quando começaste a participar mais a sério?


- Em 2019, quando começaram as greves climáticas, a minha irmã mais nova pediu-me ajuda para falar com professores e organizar greves, e eu aceitei ajudá-la. Depois surgiu o Extinction Rebellion Maroc e eu fiquei curiosa. Participei em algumas ações, éramos muito reprimidas pela polícia, mas começámos a criar um grupo com alguma confiança, e a falar com outras organizações que não eram sobre alterações climáticas, mas também estavam preocupadas. Algumas pessoas que tinham estado envolvidas na fantochadas da COP-22 e que queriam mesmo fazer alguma coisa juntaram-se.Com a Covid tudo foi abaixo. Com a morte de uma pessoa importante para o movimento, senti necessidade de assumir mais responsabilidade. Depois veio a crise pós-Covid, a crise da energia, os preços de tudo aumentaram, a invasão da Ucrânia pela Rússia e a subida da extrema-direita na Europa, o massacre na Palestina, parecia a concretização de uma premonição de que ia tudo por ali abaixo. Começámos a falar com pessoas de vários outros países árabes e do Norte de África. A primeira coisa urgente a fazer era travar o acordo da União Europeia para enviar milhões de refugiados para a Líbia, mas não chegava. As ondas de calor estavam a fazer milhares de pessoas morrerem todos os anos aqui em Marrocos, mas nunca se dizia que morriam de calor ou por caso da crise climática, eram sempre “mortes adicionais”.




E o descontentamento subia. Os preços da comida começaram a subir , e às vezes não era possível sequer comprar cereais. Quando houve a grande maré morta, centenas de milhões de peixes deram à costa. As costas atlânticas da Europa, do Norte de África e dos Estados Unidos ficaram cobertas do prateado dos peixes mortos e o cheiro nauseabundo que deitavam. Foi devastador para as comunidades piscatórias, toda a gente sentiu a catástrofe. Nessa altura envolvi-me no Mundo Novo, foi a minha primeira grande experiência internacional. Pouco depois o governo decidiu vir atrás de nós. Vários companheiros foram presos.


- E tu?


- Eu fui alertada a tempo e fugi para a Europa porque a minha mãe tinha nacionalidade francesa e por isso eu tinha passaporte.


--------Interrupção da gravação-------


Grunge Newspaper Background

Maré da morte!

Milhões de peixes mortos nas costas do Atlântico Norte


Cientistas estimam que mais de mil milhões de peixes mortos deram às costas da América do Norte, Europa Ocidental e Norte de África. México, Estados Unidos, Canadá, Noruega, Irlanda, Gales, França, Espanha, Portugal e Marrocos acordaram esta manhã com verdadeiras

marés de morte. Os cientistas apontam para para o grande aumento

de temperatura e para os surtos de algas e cianobactérias que têm

coberto largas áreas do oceano, reduzindo a disponibilidade de

oxigénio para os peixes.

As autoridades têm tentado remover os peixes, com ajuda das

populações, perante um acumular de nuvens de insectos nas costas

que são um risco acrescido de saúde pública.

a revolução marroquina

a revolução marroquina

- Fatima, desculpa, caiu a chamada! Estávamos a falar de quando começaste a envolver-te mais a sério em política. Não deve ter sido fácil sair do teu país…


- Eu percebi, é normal, não tem problema. Continuei a fazer o trabalho de contacto com movimentos político-climáticos de vários países na Europa. Havia exilados como eu, mantínhamo-nos em contacto e até fazíamos muita da comunicação das pessoas que tinham ficado em Marrocos.


- Foi nessa altura que nos conhecemos, é verdade.


- Sim, fiquei em tua casa, 10 meses, com os teus pais, os meus queridos amigos António e Marta. O António também estava envolvido no Mundo Novo…


- Podes explicar melhor o que era o Mundo Novo?


- Era uma coligação de sindicatos, académicos e movimentos pela justiça climática. Era uma plataforma que construía planos de transformação ecosocial para os diferentes países, e foi por causa disso que fiquei convosco.


- Era uma coisa mais técnica?


- O Mundo Novo começou por ser um pouco académico, mas foi-se tornando cada vez mais político. Quando surgiu, falávamos principalmente de energia e transportes, e dos impactos da crise climática para os trabalhadores desses setores. Mas evoluiu rapidamente. Expandiu-se a todas as outras atividades da sociedade e começou a organizar grandes manifestações, no meio das crises financeiras. Tornou-se numa espécie de grande aliança progressista. Mas havia sempre muita resistência à ideia de se tornar um partido político eleitoral. E assim ficou sempre neste modelo.


- Mais tarde foi o Mundo Novo que escreveu a Rota do Futuro, não foi? Quando começaram as grandes migrações.


- Sim. A Rota do Futuro foi um documento maravilhoso que criou as bases para a distribuição de mais de 500 milhões de refugiados climáticos em todo o mundo ao longo de 15 anos pelos países onde havia condições de recepção. Com as Caravanas pelo Futuro movimentámos milhões de pessoas, em deslocações de grupos com centenas de milhares de pessoas dos seus locais de fuga até aos seus destinos finais.


- Conta-me isso melhor - nunca tinha acontecido um movimento de refugiados bem organizado pelo mundo todo, pois não?


- Eu participei em sete, ao longo de quatro anos. A mais longa das deslocações que fizemos foi do Paquistão até à Alemanha. Outras foram mais curtas mas logisticamente muito complexas, como da Indonésia à China, com ferrys e barcos.


- Não eram processos nada simples, imagino.


- Não. Nos primeiros anos, as coisas eram muito complicadas. Tínhamos que proteger as caravanas de ataques. Na Europa, mas não só… Mas foram melhorando com o tempo. Também fomos aprendendo e o sentimento em relação ao processo migratório foi mudando, porque era cada vez mais gente de todos os sítios, e mesmo dentro dos países havia grandes mudanças, havia partes dos países que se estavam a tornara inabitáveis e muitas migrações internas. As chegadas e os festivais de recepção eram maravilhosos, alegria pura. Era épico. Comecei a sentir que uma nova ideia de Humanidade estava ali. Ou uma ideia antiga, dos viajantes e dos hóspedes de braços abertos. Foi quando comecei a sentir que me podia finalmente afastar e descansar.


- Mas isto já é depois da Revolução Marroquina, não é? E essa foi já uma revolução causada ou iniciada pelos problemas climáticos…


- A revolução foi em 2028. Queres que eu fale sobre ela?


- Acho que é importante, sim.


- Bem, não é possível explicar apenas com Marrocos. As grandes ondas de calor antes já tinham feito abanar tudo na Europa, nos Estados Unidos e na Ásia, até o movimento ecomunista já tinha sido fundado e anunciado publicamente. Eu tinha estado no movimento com a tua mãe. Mas eu não pertencia à facção armada.


- A minha mãe pertencia a uma facção armada?!


- Sim, a Marta era dirigente do Exército Verde. Ela tinha experiência por ter estado antes nas grandes ações de sabotagem. Tinha pertencido à ORCA ou à Descarbonária, não tenho a certeza qual. E ela não falava nisso. O passado dela era um pouco obscuro, não te sei dizer com certeza..


- Não sabia nada disso. Como é que eu posso saber mais? Com quem posso falar?


- Eu acho que o Gianrocco podia falar-te nisso. Sabes quem é? O Gianrocco Fratin?


- Não.


- Ele conhecia os teus pais, através do movimento. É Comissário da Energia em Florença. Posso pôr-vos em contacto.


- Obrigado. E ele também era do Exército Verde?


- Não, era das equipas de informação do movimento e era um dos responsáveis por articulações com a

guerrilha e com outros grupos, por isso sabia as ligações todas. Ficou sempre muito ativo, aliás ainda é hoje. É mais novo que eu. Também é um bom contacto porque sabe muito mais do que eu sobre o que se passou na Europa.


- Mas conta então como é que foi a revolução.


- A ditadura de Sisi no Egipto já tinha sido derrubada por um golpe de estado laico e a guerra civil nos Estados Unidos estava a acontecer. Houve uma grande escalada de tensão entre os governos de Marrocos e da Argélia e os governos estavam a mobilizar forças armadas para uma guerra - que seria fratricida e completamente estúpida. A exportação de gás para a Europa tinha parado totalmente e havia tensão com a chegada de refugiados climáticos do lado do Sahara, e em particular nos territórios do Sahara Ocidental.


- E conseguiram parar a escalada da guerra?


- Em Marrocos fizemos uma grande aliança progressista (nós éramos uma parte importante da aliança) e derrubámos a Monarquia praticamente sem violência.


- E na Argélia?


- Na Argélia o movimento avançou sozinho e falhou. As tensões entre os dois países desescalaram e porque nós éramos governo aqui, eles não mataram os nossos companheiros lá, alguns até foram exilados para Marrocos.


- E o que mudou com a revolução?


- Conseguimos fazer um programa de transformação parcial, coletivizamos a água e a energia e começámos uma reforma rural. Estávamos demasiado dependentes de agricultura vinda de fora para continuarmos a aguentar choques de fome. E por incrível que pareça, funcionou! A Sul, o movimento participou em levantamentos e revoluções na Nigéria, em Angola e na Namíbia, e estava a governar

em alianças. Mas depois aconteceu a Assembleia Sangrenta e, a nível internacional, o movimento foi reprimido na maior parte dos outros países. Foi nessa altura que os teus pais foram presos. Sabes do que estou a falar?


- Sei.

















- Ouve, Alexandre, eu canso-me muito rápido e rebuscar estas coisas todas do passado está a stressar-me um pouco. Vou-te pedir para pararmos por hoje.


- Claro, Fatima. Como preferires. Podemos falar outro dia?


- Sim, acho que sim. Mas da próxima vez traz a criança, que eu gostava muito de vê-lo. Como está a tua companheira?


- Muito bem.


- Trá-la também para eu vê-la. Vocês estão felizes?





















- Estamos muito felizes.


- Ainda bem. Para isto não ficar pendurado, depois a questão da Assembleia Sangrenta clarificou-se. Mas quem pode explicar-te isso bem é o Gianrocco. Eu envio-te o contacto dele. E também do Sukumar.


- Já tenho o do Sukumar, Fatima. Vou falar com ele nas próximas semanas.


- Manda-lhe um forte abraço e diz-lhe que me envie o seu último livro, que ainda não recebi.


- Digo. Queres marcar já a data para falar?


- Agora não tenho a agenda, Alex. Fazemos um plano nos próximos dias. Foi muito bom ver-te, saber que estás uma pessoa feliz, bonita, curiosa. Os teus pais ficariam muito felizes, Alex, por saberem que também queres saber o que eles fizeram, o que eles arriscaram. Eu estou muito feliz por falar contigo. Um beijo, meu querido. Shukran.


- Adeus, Fatima.



Não voltei a falar com a Fatima. Ela foi internada uns dias depois e morreu com cancro do pulmão passadas duas semanas. Antes de morrer, ela enviou-me um email com alguns contactos, entre eles o do Gianrocco Fatin e do Pepe Infante.



Blank open book

A Desglobalização instalou-se


O

Chancellor Henry Sacksville

sentou-se e refletiu em voz

alta sobre que o fraco consenso à volta do neoliberalismo: “colapsou definitivamente” e não apenas pelo facto de “ninguém ligar à Organização Mundial do Comércio, ao Banco Mundial ou ao Fundo Monetário Internacional”. “As transações globais”, disse, “quer financeiras, quer de matérias primas, manufacturas, ou bens e serviços, estão em queda há anos”. Desde os anos 80 do século passado que não trocamos tão pouco a nível global.

No rescaldo das eleições americanas, a não aceitação dos resultados eleitorais por parte de republicanos e da extrema-direita americana, levou a uma campanha de sabotagem da rede elétrica. E a nova administração acabou por, segundo o Secretário da Energia, Kyle DeSomber

lançar “a Energize, o maior pacote de energia descentralizada em grande escala de sempre, $200bi, que acabou por quebrar a pujança económica das exportações do maior produtor de petróleo e gás do mundo.

A independência da Crimeia, da Abkhazia e da Ossétia do Sul, soltando-se da Rússia, da Ucrânia e da Georgia, foi outro forte abalo na estabilidade do sistema de transporte de fósseis. Não tanto pela produção de petróleo em Serebryankse e Subbotina, ou de gás em Chornomoske, Dzanhkoi e Odeske, mas pela redução de acesso direto russo e ucraniano aos portos do Mar Negro, depois de anos de conflito e declínio da ligação fóssil russa com a União Europeia. As catástrofes climáticas no Qatar e Arábia Saudita comprimiram ainda mais a indústria e a OPEP, em poucos anos, perdeu o seu estatuto de player global.





Blank open magazine

Analysis

The Economist

As emergentes renováveis, após as intervenções públicas, tornaram-se em grande medida autónomas e com cadeias de produção curtas e, como disse o Secretário da Energia americano, “demasiado pequenas para falhar”.

A desglobalização política dera-se com a ascensão eleitoral do iliberalismo e do conservadorismo, à qual se somaram a ascensão social da extrema-direita e da extrema-esquerda. A desglobalização económica só ocorreu pós-Covid19. A crise gerada pela inflação (e ainda hoje se discute se a sua origem terão sido os preços do petróleo e do gás, a invasão da Ucrânia, os altos salários europeus ou os lucros desses anos) foi tratada como a crise financeira de 2008 ou a crise das dívidas soberanas. Ou seja, a economia global viu a disponibilidade de capital contrair-se enquanto o novo investimento se tornava principalmente público e nacional. A Reserva Federal e o Banco Central Europeu decidiram-se repetidamente pelo aumento das taxas de juros, reduzindo o rendimento disponível, a capacidade aquisitiva e de endividamento das economias, das empresas e das famílias, lançando em

pouco tempo a economia global em novo crescimento anémico. A crise da inflação transformou-se numa crise de dívidas públicas e privadas.

Sobre esta, como recordou o analista de risco Andrea Lloyd, “as catástrofes climáticas avolumaram-se e o edifício das seguradoras e resseguradoras ruiu - eram gigantes com pés de barro”. A Munich Re e a Swiss Re foram resgatadas e nacionalizadas, e por isso o PIB da Suíça contraiu 3% só nesse ano. A taxa de rejeição de novos seguros chegou aos 53% e fez o mercado de crédito entrar em pânico. Os estados voltaram a ter de emitir mais dívida pública. As agências de rating apelavam à contenção mesmo quando contenção só podia significar mais crise económica. O conflito entre governos e bancos centrais independentes agudizou-se.

Estados e governos deixaram de ouvir as agências de notação e a maior parte das entidades financeiras deixou mesmo de pagar à Standard and Poor, à Fitch e à Moody’s. Mas a liderar os bancos centrais ainda estavam as mesmas soluções em vigor desde os anos 70 do século passado. Assim, o apelo à contenção ainda teve o efeito




suficiente para travar o esboço de recuperação económica. A resposta foi austeridade.

A extrema-direita europeia estava no momento melhor posicionada para responder à situação e no descontentamento conquistou posições governamentais em diversos países europeus. Enterrou o European Green Deal (um pacote de investimento público que podia ter amortizado a crise económica com retorno efetivo) e usou boa parte dos fundos estruturais e do PRR para criar o programa Energia Europeia para os Europeus (EEFE). Levantaram as restrições ao investimento em petróleo e carvão e anunciou-se a construção do novo complexo nuclear europeu, mais 40 centrais, que estariam prontas décadas mais tarde. Mas não foi possível mobilizar investimento privado, apenas público, para este projeto. Para o eurodeputado italiano Ettore Gatto, “tentaram ressuscitar um morto e a única coisa que conseguiram foi criar mortos-vivos energéticos”.

Do lado migratório, segundo Rudd Eingarten, da ACNUR, o programa político implicou um novo acordo de migrações com a Líbia, com mais de


dois milhões de migrantes e refugiados depositados nesse território, o que tornou a Líbia “no maior campo de concentração e de morte da história”, contra um grande empréstimo do Banco Europeu de Investimento para restabelecimento de ligações energéticas.

As perseguições políticas na Europa tornaram o comércio instável e a violência interrompeu fluxos essenciais a um regresso à normalidade, como pudemos ver pelas cenas de violência nos parlamentos alemão, espanhol ou francês. Nas ondas de calor que se seguiram, 1500 trabalhadores morreram na Sérvia, na Bulgária e na Roménia. E desencadeou-se a onda de greves gerais para impor os horários de trabalho reduzidos no Verão. Mesmo com violenta repressão policial, os sindicatos mostraram uma força que não se via há décadas na Europa e impuseram a sua vontade, derrubando os governos em Belgrado e Sofia e fazendo as economias sangrarem, com menos produtividade e horas de trabalho (redução de 2h30 a 4 horas por dia).

Quando estas greves chegaram aos trabalhadores da indústria fóssil, que

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Analysis

exigiam sistemas próprios de monitorização climática depois dos acidentes mortais no Golfo Pérsico, vários governos adquiriram uma parte importante das estruturas acionistas das empresas fósseis. Esta decisão aumentou salários e criou as novas regras laborais mas, principal-mente, conseguiu baixar os preços dos gasolina, do gasóleo e do gás na-tural, que na altura batiam todos os meses os recordes históricos de preços.

Nessa altura atingiram-se os 36% de inflação na União Europeia. A banca reduziu ainda mais o acesso a crédito, face ao ressurgimento do Estado e às novas regras laborais. O acordo entre a União Europeia e os Estados Unidos para acabar com os paraísos fiscais, que também tinha como objetivo aumentar a receita fiscal, acabou por não ser tão eficaz e biliões acabaram por fugir.

O golpe definitivo foi mesmo económico: a contração e viragem interna da China, como resposta ao protecionismo americano, europeu e japonês. A redução de importações chinesas de energia, a redução de exportações e limitação ao inves-timento estrangeiro concluíram este

ciclo.

Assim, desmontaram-se algumas das principais ferramentas da globa-lização: com a intervenção em grande escala dos governos nas políticas industriais - o IRA e o Energize nos Estados Unidos, a EEFE na União Europeia, e as políticas energéticas na China e na Índia -, e a intervenção do Estado nas maiores empresas, o poder laboral ressurgiu. Também voltou a vio-lência política da extrema-direita e da extrema-esquerda. E a circulação inter-nacional de capital acabou restrita.

Preços altos e a dificuldade de acesso a crédito minavam há anos o comércio internacional. Com o declínio do comércio, o sistema mundial de dívida afundou-se em incumprimentos. “O comboio da desglobalização demo-rou anos a arrancar, mas agora a sua inércia tornou-o imparável” concluiu o Chancellor Sacksville. Só a injeção de dinheiro barato nas economias teria podido salvar a globalização, mas não foi isso que aconteceu.

Agora, as pessoas odeiam os ricos porque têm aquilo que elas não têm e roubam nos supermercados para distribuir comida. Mas com cada vez menos comércio internacional, isso é o melhor a que podem aspirar. As

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prateleiras em muitos sítios já estão a esvaziar-se. A globalização está em queda e com ela a capacidade de criação de riqueza e desenvolvimento à escala planetária.


Temos de pensar a economia de uma forma mais desintegrada, mais primitiva, mais inacessível. Só a inovação poderá salvar-nos da recessão permanente. Va-mos ter para comer o que produzirmos. Pela primeira vez em 180 anos não sabe-mos se poderemos continuar a publicar muito mais tempo.




Collapsing Dominoes Toy

A independência do texas

A independência do texas

Em Lisboa está muito calor. Apesar de não ser um ano de temperatura recorde (já aqui batemos os 50ºC mais do que uma vez), custa estar na rua. Corremos de jardim em jardim e sombra em sombra, e temos de parar para nos refrescarmos nos pontos de água espalhados pela cidade (agora há muitos), enchendo os copos de lata que toda a gente traz à cintura no verão. Há três anos foram levantadas as restrições de circulação nos picos de calor no verão, mas sei que não devia andar na rua a esta hora, mesmo não estando na idade de risco. Só que a pessoa que vou entrevistar só está cá dois dias e hoje é o último.


Consegui marcar um café com a Olívia Anwar, uma comunicadora e produtora de conteúdos de São Francisco, na República da Califórnia. Está a atravessar a Europa para falar com viajantes, diz que quer ser como o Homero e escrever uma nova Ilíada, desta vez contando as incríveis histórias dos refugiados que abandonaram as suas casas a milhares de quilómetros de distância, algumas há muitos anos e que finalmente encontraram casa no sul da Europa, em particular no interior rural.


Mas esse não é o assunto desta entrevista de hoje. O objetivo é perceber melhor o que aconteceu na América do Norte nos últimos anos: a guerra, as secessões e a nova realidade daqueles territórios e países. Ela é jovem (deve ter a minha idade, mas estudou bastante os anos da 2ª Guerra Civil dos Estados Unidos, ou a 2ª Guerra da Independência, dependendo de com quem falarmos.


A Olívia mandou-me uma mensagem instantânea a dizer que está atrasada. Fiquei a observar as ruas da cidade sob a sombra das árvores e dos toldos brancos. Está meia adormecida às 8 da tarde. Há uma ou outra loja aberta, principalmente as lojas de reparações. Aqui na rua Morais Soares há mais de 20 lojas de reparações de coisas antigas como frigoríficos, rádios, microondas ou computadores.


conseguem estar abertos porque nunca lhes faltam ares condicionados (para arranjar e arranjados). Também há uma grande biblioteca nova, onde antes havia uma loja onde se vendiam animais mortos para comer. Combinei a entrevista com a Olivia na Biblioteca.


Às vezes ainda é difícil de acreditar que há apenas alguns anos a maior parte dos materiais eletrónicos eram descartados e substituídos a grande velocidade. Hoje reutilizamo-los quase a 100%. Sei que também acontece porque não há tantos produtos novos como antes. Mas é mesmo difícil entender como é que alguém achava que era possível descartar tantas coisas tão rápido sem consequências.


Enfim, estas também são algumas das questões que vou colocando nas minhas notas quando olho para o presente e penso no passado sobre o qual estou a escrever.


Por exemplo: a novidade do mostrador público da temperatura de bolbo húmido. Em Portugal não serve de muito, e ainda bem. Indica que apesar da temperatura estar alta, não corremos risco de vida - como acontece todos os anos nos países asiáticos ou na América do Sul. Acho que só puseram aqui o mostrador para tranquilizar as pessoas que chegam da Índia e do Bangladesh, que ainda trazem o trauma coletivo de mortes na rua - e em casa - pela combinação de calor e humidade.


Por toda a avenida há placas nas várias línguas - português, inglês, hindi, nepalês, francês - que anunciam os negócios das pequenas lojas e também que agradecem e dão as boas vindas às pessoas recém-chegadas à cidade. Para comemorar as novas populações que chegam a Lisboa há todos os anos o festival da Cidade Nova, que parte da praça no topo da Avenida - a Praça da Revolução de Janeiro - e desce a Morais Soares, acabando na Alameda. No meio da avenida estão plantados ciprestes e também há umas pequenas alfarrobeiras, e outros arbustos coloridos. Têm um ar muito bem tratado. Todos os dias as equipas de “cirurgiões de árvores” e jardineiros cuidam das árvores de manhã e de




noite. Fazem registos precisos acerca do estado de saúde de cada planta.


Em Lisboa, as diferentes regiões e as encostas da cidade têm diferentes espécies plantadas, além das zonas de árvores e arbustos fruteiros. Há as tradicionais figueiras, zambujeiros, sobreiros e azinheiras, mas também há árvores que há alguns anos não eram consideradas nativas como os bordos negundo, as tamareiras, os cedros-do-Atlas, os pinheiros de Alepo, as arganas e os estranhos ciprestes do Saara. O próprio conceito de espécie nativa mudou, com a grande migração de plantas, animais e pessoas, e também porque o nosso clima já é mais parecido com o que há umas décadas existia no Norte de Marrocos.


Apesar de eu nunca ter feito este trabalho nas minhas rotações, a Lia já o fez durante vários anos intercalados. É um trabalho muito interessante, mas cansativo. Discutimo-lo muitas vezes, tanto em casa como nas reuniões do bairro, porque sempre que há problemas com as árvores, se começam a morrer, temos pessoas que entram em pânico.


Desde que estou aqui já passaram vários elétricos. Passa um a cada 10 minutos. Trazem as três carruagens ainda meio vazias. Daqui a poucos minutos passarão a seis carruagens e virão cheias de pessoas a caminho das suas três horas de turno vespertino ou de diversão.


Por vezes os elétricos especiais para transporte das colheitas também passam por aqui em direção aos pontos de moenda e entrega de comida: ali em baixo, atrás do cemitério e descendo até aos vales de Chelas está uma das maiores zonas agrícolas da cidade de Lisboa. Entre os campos e os edifícios-estufa produz-se comida para alimentar centenas de milhares de pessoas. Mas não chega, claro, e uma parte dos cereais vem do campo. Além das grandes áreas agrícolas geridas pela Assembleia da

Cidade, há também pequenas hortas de bairro, nos jardins e nos telhados verdes dos prédios. Por exemplo, este prédio aqui em frente onde estou tem pequenas árvores de fruta no topo.


Olivia toca-me no ombro, interrompendo os meus pensamentos.


É uma mulher nos seus trinta anos, cabelo pintado de verde e piercings no nariz e orelhas. Veste azul escuro com um casaco de linho e tem um gorro a cobrir-lhe a cabeça. Em Lisboa, o azul escuro é a segunda cor mais utilizada no verão, a seguir ao vermelho escuro que predomina. Cumprimenta-me efusivamente mas à americana, sem abraços.



Books on Wooden Shelves Inside Library

Entramos na biblioteca, onde nos sentamos a beber um chá gelado. Ela diz que a abundância de livros nas bibliotecas em Lisboa é impressionante. Explico-lhe que nos últimos anos os espólios das livrarias foram todos transferidos para as bibliotecas e que o grande número de bibliotecas se deve em particular à transformação intermédia das livrarias em espaços públicos e de abrigo do calor, quando foi criado o primeiro Comissariado do Calor de Lisboa.


Isso não aconteceu na Califórnia, que estava nessa altura a entrar na guerra civil, responde-me com alguma tristeza. Peço-lhe para começar a gravar a nossa conversa.


É dia 12 de Agosto de 2042, e encontro-me com Olivia Anwar, cidadã da República da Califórnia, criadora de conteúdos, que está neste momento a viajar pela Europa.


- Olá, Alexandre. É um prazer poder falar contigo.


- Olivia, como te expliquei, estou a fazer um levantamento do que aconteceu nas últimas décadas, é um projeto para mim e para a minha família, e agradeço-te a disponibilidade para nos falares um pouco sobre a Califórnia e os Estados Unidos, o que aconteceu estas décadas e o que se passa agora.


- Sim, claro. Queres que eu comece? Em que altura?


- Acho que era interessante perceber os acontecimentos que levaram à Guerra Civil e às secessões…


- Bem, acho que não há como escapar ao início disto tudo - se é que alguma vez podemos falar de início -, o fim do estatuto de superpotência e polícia do mundo dos Estados Unidos, com o January 6 de 2021 e a guerra de baixa intensidade dos anos seguintes. O terrorismo neonazi nos Estados Unidos começou a evoluir quando o partido Republicano se dividiu depois de mais umas eleições presidenciais. Começaram os atentados a igrejas e discotecas

durante uns seis meses, enquanto o sistema energético (em particular o elétrico) estava em constante ataque por sabotadores. A instabilidade no país era enorme, toda a gente tinha muito medo e muito ódio. Havia luxo obsceno no meio de pobreza, milhões sem-abrigo e dependentes de opióides. No meio disto, parte da sociedade vivia em medo permanente, alimentando e alimentando-se da violência de milícias religiosas identitárias nas ruas - contra sem-abrigo, contra mulheres, contra comunidades de pessoas negras e todas as comunidades que não eram heterossexuais brancas e cristãs.

Do outro lado, havia as milícias negras que se constituíam para proteger os bairros negros, em particular nos estados do Sul, mas também grupos violentos sabotavam o estilo de vida dos ricos, invadiam os hotéis e resorts de luxo, destruíam símbolos de opulência desde stands de carros até campos de golfe, ocupavam plataformas petrolíferas e sabotavam gasodutos. O estado violento, a polícia e os militares já não eram dissuasores o suficiente para travar extremistas de qualquer lado. As transformações internacionais tornaram a coisa ainda mais instável. Quando a Federação Russa se desagregou houve um súbito vazio internacional que fez com que os militares se concentrassem em criar um grande inimigo: a China.

No meio disto, tivemos oficialmente pela primeira vez mais de um milhão de mortes no primeiro verão de ondas de calor globais. Morreram principalmente idosos, crianças e os mais miseráveis da sociedade, mas os números seguramente foram muito maiores do que os oficiais. Na Europa, a questão com as grávidas e os bebés foi mais grave, mas aqui também houve um movimento “As nossas crianças”, que mobilizou as franjas evangélicas mais conservadoras, convencidas online de que tinha sido o governo a organizar aquilo, os abortos espontâneos, a morte dos toddlers. A reação internacional ao inferno de calor e ao caos que se seguiu foi criar o Tratado Mundial do Clima. Os Estados Unidos recusaram entrar, como muitos outros, mas ainda assim o governo deu um sinal público de alguma alinhamento, com a moratória de exploração de novas reservas de petróleo e gás.


- Na altura eram o maior produtor mundial?


- Sim, de petróleo e gás. Os estados que mais produziam eram o Texas, o Novo México, o Alasca e nós, a Califórnia. Depois da moratória, o Governador do Texas proclamou que iam criar um processo de independência, com o apoio dos presidentes das grandes petrolíferas e dos principais partidos herdeiros dos antigos republicanos. Toda a gente

achava que era só uma ameaça para romper a moratória, mas houve grandes atentados em Nova Iorque, em Washington D.C., em Atlanta e em Tallahassee, e o hacking aos sistemas de segurança. Pouco tempo antes tinha havido o golpe na China e os Estados Unidos deixaram de ter inimigos externos visíveis.


- Quais foram as consequências do golpe na China?


- O novo governo chinês declarou que cessaria todas as atividades no mar da China e em Taiwan e que iria construir um caminho de paz com todos, especialmente com os Estados Unidos… Com isso e com o Tratado Mundial do Clima, os Estados Unidos perderam um componente essencial do seu poder no mundo: o domínio sobre a energia. Sobravam o cada vez mais instável dólar e os militares… Mas sem um inimigo externo claro, não era possível continuar a contar essa história.


- A política mundial estava em ebulição, mesmo além da China…


- Sim, era o caos total. Estava a acontecer por todo o lado: além do golpe dos jovens comunistas na China, colapsou o governo nacionalista no Bharat, deu-se o Setembro Vermelho na Europa com a suspensão das transações de capitais, na África do Sul grupos de mercenários tentaram manter a produção de petróleo e carvão mesmo contra o governo que tinha assinado o tratado… Enfim, a loucura de que talvez te lembres.


- Sim, a informação era muito desorganizada e sabíamos que era pouco credível, demasiado lixo para se perceber com clareza o que se passava. Pior ainda com o DrokGPT e o que a Inteligência Artificial fez às grandes redes. Que impacto teve nos EUA?


- Acho que ajudou um país que já estava completamente polarizado desde o genocídio na Palestina a ficar ainda pior. Espalhava-se toda a propaganda à volta de tudo o que estava a acontecer na Europa: os Neoluditas, a ORCA, a Descarbonária… E principalmente coisas que nem sequer existiam. Isso eram tudo coisas que estariam a ser importadas para os EUA através das migrações e dos globalistas. Era nestes termos que os conservadores falavam: essa era a base da guerra cultural, que andava a ser plantada há décadas, e nessa altura dava frutos e militantes. O DrokGPT alimentou isso tudo. A torrente de propaganda funcionava porque ao mesmo tempo escasseavam produtos e


Antique library
Texas Flag Map

a country of our own

Almost 200 years later, free again

os combustíveis estavam mais caros do que alguma vez tinham estado. Estava tudo insuportável. Todas as fragilidades dos EUA - e eram mesmo muitas - vieram ao de cima.


- Mas como explicas a partição do país? Isso não aconteceu em mais lado nenhum…


- Bem, aconteceu noutros países, como na Rússia, em países africanos, no Golfo. Existiram e ainda existem várias tentativas de independência de partes de estados. Acho que as cidades-livres acabaram por ser válvulas de descompressão em vários países, mas no caso dos Estados Unidos só apareceram depois do conflito ter começado. A dimensão do país foi importante. Estamos a falar de um autêntico continente, com culturas e interesses contraditórios… A desigualdade, os ódios históricos entre Norte e Sul, as armas e a militarização da sociedade foram decisivos, mas não os únicos fatores.


- Qual achas que foi o fator decisivo?


- O declínio acelerado da indústria fóssil foi central para explicar o que nos aconteceu politicamente. O governo passou a ser visto como um inimigo ativo, como um opressor, mesmo quando fornecia coisas boas. A contaminação ideológica na imprensa e nas redes sociais, que durante décadas tinha servido para consolidar a sociedade no American Dream, agora servia para polarizá-la. É até surpreendente que os 50 Estados se tenham mantido unidos tanto tempo… Quando deixou de haver um inimigo externo evidente, já só tínhamos a nós mesmos para odiar. Foi nessa altura que o Texas anunciou a sua secessão e tudo desmoronou…


- Mas não foi só o Texas…


- Quando o governo texano anunciou a formação da República do Texas, a Florida, o Alabama, o Novo México, o Louisiana, o Mississippi e a Geórgia, quer dizer, os estados do Sul, anunciaram referendos à independência. O Oklahoma, o Arkansas e a Virginia Ocidental começaram os seus próprios processos institucionais de independência também. O Presidente americano mobilizou as tropas, ocupou os congressos de todos estes estados e fez um ultimato ao Texas para que acabasse com o processo. As guardas nacionais em todos estes estados ficaram do lado do Governo Federal. Houve confrontos com as milícias de extrema-direita, que num primeiro momento foram derrotadas sem dificuldade. Inicialmente, quem dominava eram as milícias nacionais cristãs, os Nacris, mas mais tarde as Ancap





acabaram por tornar-se mais fortes. Depois do chamado “Texit”, o novo governo do Texas formou o seu próprio exército. O Texas já era o segundo estado com mais militares do país, mas o governo independentista juntou a estes as milícias, e até propôs ao México - que irónico! - que fizessem uma federação a quatro, com o Novo México e o Arizona. O impasse durou alguns meses. Pela primeira vez em quase um século houve greves gerais nos Estados Unidos por falta de comida. O governo começou a distribuir comida diretamente à população

e a introduzir os transportes públicos e a energia gratuitos, enquanto

recrutava soldados. Naquele momento de caos económico, muitos

aceitaram juntar-se às forças armadas para conseguirem acesso aos

serviços que nunca tinham tido na vida. Entretanto, o MERs-CoV foi

detetado em gado no Brasil e começou o embargo global ao comércio

de carne, o que fez com que a questão alimentar ficasse ainda mais

difícil. Os secessionistas acusaram o governo americano e a

Organização Mundial de Saúde de terem inventado a crise para

dificultar ainda mais a vida das populações. O Texas rejeitou o

embargo internacional de carne e tentou distribuí-la, mas não

conseguia descarregá-la nos vários portos internacionais (que na

verdade se recusavam a receber todos os navios vindos do Texas,

sob ameaça do governo americano).


(continua)…


Declaration of Independence

Intention of Independence

A II Guerra civil americana

A II Guerra civil americana

Era tanta a informação que eu pedi à Olivia para fazermos uma pequena pausa. Entraram as crianças da escola para terem aulas na biblioteca. Há muito tempo que as bibliotecas deixaram de ser locais silenciosos. Quando se tornaram lugares muito públicos e frequentados, passou a ser normal haver barulho. As aulas nas bibliotecas são de história, geografia, ciências e outras, muitas vezes com as próprias bibliotecárias a ensinarem. Tornaram-se com os anos grandes organizadoras da informação e da educação, em sintonia com as novas escolas teóricas e profissionais, e também em resposta ao desaparecimento da maior parte da imprensa. A barulheira acaba quando o Leo, bibliotecário do dia, entra vestido de pirata. A aula hoje promete! Pede-nos desculpa e encaminha as crianças para uma sala que diz “Passado”. A Olivia está muito divertida com tudo aquilo e eu tento recuperá-la para a nossa conversa.



- Então o Texas declarou independência e vários outros estados preparavam-se para fazer o mesmo. Mas a Califórnia tradicionalmente não defendia as mesmas posições… Qual era a posição da Califórnia nesse momento?


- A Califórnia nunca esteve do lado do Texas! Mas estava frontalmente contra o início de uma guerra civil e contra a ocupação dos órgãos governativos dos restantes estados. As eleições presidenciais tinham sido suspensas, mas a Califórnia manteve as eleições para Governador e Senado estadual. A plataforma que venceu, de independentes que concorreram contra o Partido Democrata, defendia a recusa de intervenção militar noutros estados.


Quando o presidente mandou o exército invadir o Texas e começou a guerra, muitas divisões militares por todo o país amotinaram-se. Em particular as que tinham novos recrutas eram muito

indisciplinadas. Do lado dos secessionistas, a maior parte dos militares do Texas tinha aderido ao Texit e estava a servir neste momento nas forças armadas da nova república. Foi nessa altura que muitas bases militares no estrangeiro começaram a ser abandonadas. Os Marines e a Marinha abandonaram quase todas as bases, e o Exército mais de metade, mas tentaram manter as bases em África - no Niger, nos Camarões, no Djibouti e na Somália. A Baía de Guantanamo em Cuba, foi uma das mais famosas bases a fechar. Depois começou a invasão sangrenta e os texanos resistiram violentamente nas batalhas de Texarkana, de Wichita Falls e de Boise, com as escaramuças espalhadas ao longo das fronteiras norte e leste.


- E as tropas da Califórnia?


- A Guarda Nacional da Califórnia e as unidades militares que estavam ali sediadas recusaram obedecer às ordens federais de marchar através do Arizona e Novo México e invadir o Texas pelo Oeste. Por outro lado, começaram gigantes incêndios em Abril e centenas de milhares de pessoas tiveram de ser evacuadas do Norte da Califórnia - e foram principalmente as Forças Armadas do Estado que o fizeram. Também nesse momento o presidente americano ordenou a militarização da indústria fóssil, mas a Califórnia encerrou as suas infraestruturas, até porque já tinha assinado há muitos anos o Tratado de Não-Proliferação Fóssil. A Califórnia não tinha até então feito qualquer ameaça secessionista, apesar dos apoiantes do Calexit se mobilizarem por isso.


- Então como é que se deu a separação?


- A primeira incursão do exército americano no sul ficou atolada sem grandes resultados, porque os combates mantinham-se nas zonas de fronteira do Texas. Houve uma fase morna que durou quase

um ano, sem grandes avanços. A marinha americana estava melhor organizada que o exército, e bloqueou os navios do Texas, em particular os petroleiros e metaneiros, tendo afundado vários. Mas as cheias e as ondas de calor interromperam vários ofensivas e batalhas - apesar de se manterem sempre escaramuças ao largo das fronteiras e também ações das milícias noutros estados. O furacão Lukoil matou mais soldados do que os combates nesse ano! Foi por essa altura que o fumo dos incêndios da Amazónia cobriu toda a zona sul dos Estados Unidos durante dois meses e meio. Nunca estava sol, o mais claro que tínhamos era um céu laranja escuro.


- E mesmo assim continuaram os combates e o Texas mantinha-se irredutível?


- Sim. Militarmente, o Texas era incapaz de avançar para fora do seu território, mas o tempo parecia jogar a seu favor. A violência entre americanos começava a ser mais difícil de defender do lado de Washington, em particular quando havia um nível de pobreza tão alto e escassez de bens, quando as cheias e ondas de calor não davam tréguas e exigiam muitos recursos e pessoas - para o combate a incêndios, evacuações, cuidados de saúde - eram deixadas para segundo plano perante o esforço de guerra. As unidades militares insurrectas foram desmanteladas, e o governo tentou consolidar o poder nos outros estados independentistas, lidando com as milícias religiosas e de extrema-direita e restabelecendo uma parte do poder estadual sob proteção federal, acabando com as vias institucionais de secessão.


A violência miliciana, em particular dos Nacris, dos Alt-Knights e dos 6MWE contra as comunidades negras e LGBT+ permitia ao governo continuar a retratar os secessionistas como seitas religiosas ultra-conservadoras, o que era parcialmente verdade. Com forte apoio militar foi possível recriar instituições nos estados independentistas, criar novos governos de aliança entre democratas e a parte mais centrista dos antigos republicanos, agora organizados no novo Partido Federal.


Mas a norte, a crise desencadeou motins em Boston, Detroit, Seattle, Chicago, Nova Iorque e Portland. Os soldados desmobilizados eram particularmente ativos. A ocupação do canal do Panamá pela Marinha teve um impacto grande, encarecendo ainda mais os produtos. O governo sentiu que precisava de agir ou ia perder a guerra e provavelmente o país.


A migração para o Canadá não parava de aumentar, e nesta altura já eram milhões de refugiados e desertores lá em cima. Também corriam os rumores de que havia campos de concentração para as comunidades negras, indígenas e LGBT+ no Texas.


Quando no ano seguinte houve uma ameaça dos texanos de usarem as bombas nucleares táticas que tinham, o exército americano partiu para a ofensiva. Num ataque relâmpago, usou armas nucleares de pequena escala em várias bases militares, inutilizando o armamento texano, e lançou uma grande ofensiva para tomar o Pantex, mas o resultado não foi o esperado - nem militarmente, nem politicamente. Há quem diga que foi uma mentira texana por parte do extremista Terry Rousseau para forçar os Estados Unidos a atacar, mas nunca chegámos a perceber.


Depois das bombas, o exército americano apenas conseguiu ocupar menos de metade do Texas: tomaram Dallas mas não conseguiram avançar até San Antonio, Austin ou Houston. A marinha texana conseguiu manter os portos. Não foram encontrados quaisquer campos de concentração. E foi aí que aconteceu uma coisa estranha: começou uma onda de simpatia pelo Texas que correu o país, com novas insurreições nas forças armadas e a difusão muito aberta da ideia de que esta era uma guerra de agressão, uma ideia que começou a ser defendida mesmo entre democratas. Ou seja, Washington tentava uma guerra na frente, mas fomentava uma revolução nas costas. Seattle e Portland declararam-se cidades livres, as primeiras no território, juntando-se a cidades de outros países. Foi nessa altura que a Califórnia organizou um referendo e anunciou a sua independência de Washington.


- E isso foi surpreendente! Mudou o rumo do conflito?


- Sim, no início do Ano do Leão a guerra era extremamente impopular para os Estados Unidos. A metade sul do Texas teimava em recusar a rendição mas mesmo na parte Norte os conflitos urbanos nunca pararam. Os combates tornaram-se muito violentos. A guerra civil tornou-se

uma guerra de guerrilha, expandindo-se cada vez mais para outros estados. Nas cidades dos estados do Sul, a guerrilha secessionista começou a atacar o exército e a provocar fortes prejuízos. Ao mesmo tempo, grupos bem treinados começaram a destruir a infraestrutura fóssil do Sul do país. Mais tarde soubemos que eram diferentes unidades do Exército Verde, do movimento ecomunista. Na Florida, no Alabama e Louisiana as estruturas, portos de petróleo e de gás natural, gasodutos e oleodutos foram sujeitos a uma campanha sistemática de seis meses de destruição, e isso resultou num sistema fóssil incapaz de operar. Muitas das bases militares americanas que ainda estavam abertas foram fechadas nesta altura, muitas por exigência dos governos locais.

- E na Califórnia?


- Na Califórnia, depois de mais um verão de terror entre chamas e ondas de calor, as tensões por causa dos refugiados, quer do Norte, quer do Sul, aumentaram. O governo encerrou fronteiras e decretou o isolamento californiano. Mas o povo não queria. Foi aí que a revolução começou, levando ao derrube do governo do Calexit. Mas era um movimento maior. Ocorreu nas mesmas semanas em que eventos como estes se desenrolavam em França e no Brasil também. Washington também se apercebeu da grande mudança que estava a acontecer. Os chefes do Estado Maior das Forças Armadas dos Estados Unidos recusaram-se a continuar a guerra e forçaram o presidente a declarar um cessar-fogo e demitir-se.



- E nessa altura acabou a guerra?


- Sim. A contrapartida foi a entrega de todas as armas nucleares e o arsenal BCQ texano, o que eles aceitaram. O Louisiana, a Florida, o Mississippi, o Arkansas, o Tennessee e o Novo México tiveram liberdade para se tornarem estados independentes. O Texas propôs aos novos estados independentes criarem uma confederação, mas nenhum aceitou.


- Com o fim da guerra civil, como passou a ser a vida nos novos territórios?


- O novo governo da Califórnia fez um acordo de fronteiras abertas com o México e criou o que

chamámos afectuosamente de Mexicali (o Acordo foi assinado ali mesmo na antiga fronteira entre Calexico e Mexicali). Parte do acordo era o México fechar a sua indústria fóssil, incluindo as plataformas das empresas americanas que estavam arrestadas desde o início da guerra. Nesta altura, já mais de 10 milhões de refugiados subiam da América Central e precisavam da nossa ajuda - e nós da ajuda deles. Houve uma profunda transformação na agricultura e mesmo nas áreas mais tecnológicas. A escassez de água e de energia levaram a uma grande modificação social. Mas tudo isto aconteceu enquanto continuávamos com outra guerra.



- Sim, a guerra permanente que o clima nos fazia, com cheias, secas, ondas de calor e incêndios florestais todos os anos. Precisávamos dos imigrantes para fortalecer e transformar a nossa agricultura, tínhamos cada vez menos tempo para trabalhar por causa do calor e precisávamos


muita gente, também para realizar grandes assentamentos de terras e transformar a nossa paisagem. Além de um enorme trabalho mecânico, era um trabalho humano, de manutenção diária. Precisávamos de milhões de pessoas para pensar e organizar o futuro, porque nós e elas éramos o futuro que havia. Ainda tínhamos muita capacidade tecnológica mas precisávamos de muito mais gente. Nos Estados Unidos houve finalmente novas eleições presidenciais e foi eleita a primeira presidente “independente”, sob a promessa de paz, cuidado e o fim do caos climático, prometendo literalmente um novo sistema político e económico.


- Helen Vargas.


- Sim, Helen Vargas. Ela provocou uma grande mudança no pós-guerra. Acabou com o sistema arcaico do Colégio Eleitoral e passou a vigorar o sistema “uma pessoa, um voto” no que restava do país. Houve novas adendas à constituição e os estados perderam autonomia.


- Os que restavam…


- Sim, os principais estados independentistas já tinham saído mesmo… A produção energética foi socializada, foi criado um gigante programa de obras

públicas, o agora famoso “Climate Corps”, e instituiu-se o Serviço de Saúde Universal. A maior parte das cidades proibiu a circulação automóvel. O que pouco antes parecia impossível agora era banal.


- Como é que achas que isso foi possível?


- Porque a guerra, a escassez, a fome, as perdas, o caos climático abriram novas perspetivas. Os anos de guerra fizeram com que o papel dos Estados Unidos no mundo agora fosse outro. A ideia do excepcionalismo americano estava acabada. Copiávamos o que a França, a China, o Brasil, o que outros estavam a fazer que parecia funcionar… O resto do mundo também estava no meio de outros conflitos e caos. Várias cidades americanas aderiram à federação de cidades livres e foi feito um acordo para que as pessoas desses territórios votassem em eleições federais e, dependendo dos estados, até em eleições estaduais - embora mantivessem um elevado nível de autonomia e autogestão financeira e social. Houve um referendo para a entrada dos Estados Unidos no Tratado Mundial do Clima e para adoptar a sua moeda, o Carbo. Venceu por pouco o Sim. Nesse voto foi decisiva a transformação da maior parte das Forças Armadas e dos veteranos da guerra em forças de proteção civil e no Climate Corps.


- E as outras novas repúblicas?


- A República do Texas passou, pouco depois, a denominar-se a República Cristã do Texas, e tornou-se um sítio muito conservador, a que muita gente chamava de Gilead - por causa das memórias do livro de Margaret Atwood. Houve uma revolta em Austin, que quis tornar-se uma





cidade livre, mas foi esmagada pelos texanos. Depois, houve um enorme êxodo das populações negras e das cidades para o México, o Novo México e o Louisiana.


- Mas o Louisiana também se tinha tornado uma República…


- Não, entretanto o Louisiana pedira a reintegração nos Estados Unidos. O Texas fechou as fronteiras, tentando impedir que uma parte da sua população - em particular mulheres - continuasse a fugir. O “triângulo evangélico”, composto por Arkansas, Mississippi e Tennessee reforçou o seu pendor agrícola e religioso. Os outros estados independentes tornaram-se pequenos países, alguns juntaram-se ao Tratado Mundial do Clima e voltaram a ter relações normais com os vizinhos. As novas identidades nacionais, além da religião, eram muito pouco marcadas e o novo governo americano tinha de facto aberto uma nova página… O acordo social anterior estava completamente destruído e era preciso construir um novo.


- Mas havia na altura um problema de falta de gente…


- Os Estados Unidos tinham perdido 100 milhões de habitantes na guerra da secessão, mais de um terço da população. Não podemos esquecer que a Califórnia, o Texas e a Flórida eram os três estados mais populosos. Havia um problema de falta de gente, mas havia principalmente um problema de refugiados em grande escala: e muitas das novas repúblicas não os queriam.

A nova presidente dos EUA foi duramente testada quando permitiu a entrada de 40 milhões de refugiados climáticos (vindos do Canadá e também da América Central). A contrapartida foi coagir a maior parte destes refugiados a fazer trabalho agrícola no Iowa, Nebraska, Kansas, Indiana e Carolina do Norte. Foi uma cedência às franjas mais conservadoras.





No entanto, o movimento ecomunista já tinha sido descriminalizado e começou a organizar vários sindicatos e comissões agrícolas no país e a organizar-se enquanto força política, embora Vargas tivesse muita força nessa altura. Foi nessa altura que ocorreu o jubileu internacional e começaram os cancelamentos de dívidas externas, um enorme alívio para vários países mais pobres, o que até reduziu as migrações.


- E como correu a entrada dos Estados Unidos no Tratado Mundial do Clima?


- Foi feito um referendo e venceu o “Sim”, mas por pouco. Houve muito descontentamento na altura, e temeu-se uma nova guerra, houve mesmo motins. Os estados e cidades pertencentes ao tratado passaram a ser obrigados a receber refugiados quando tinham condições para tal. A comoção social foi bastante pior do que quando foi proibida a venda de carros a combustão interna - porque com os transportes públicos gratuitos esta questão tinha-se tornado muito mais residual. Mas as primeiras Rotas do Futuro acabaram por ser menos problemáticas do que se antevia e o fluxo de entradas e saídas tem-se estabilizado, com muita organização, para que toda a gente chegue ou parta em segurança e possa ficar, se assim o desejar.


- Não no Texas?


- No Texas e no triângulo evangélico não, claro! Continuam sem pertencer ao tratado. Passamos o tempo a ouvir que aquilo não está a correr bem. Há sempre muita gente a fugir e a contar o que se passa: da degradação social e do autoritarismo da igreja e do governo, da perseguição e submissão das mulheres. Neste momento o Texas só tem uma população de cerca de 15 milhões de pessoas.


- E agora, como estão as coisas?


- Os anos imediatamente seguintes ficaram marcados pelo Grande Julgamento. Foi nessa altura que ficámos satisfeitos por já não sermos Estados Unidos da América. Foi bárbaro o que aconteceu, um horror. Mais de 50 CEOs e administradores de petrolíferas foram executados nos estados onde ainda havia pena de morte. Na República do Tennessee usaram mesmo a velha cadeira elétrica. Na Califórnia só estiveram presos alguns anos.



- E o clima?


- As coisas têm melhorado nos últimos anos. Houve um abrandamento dos incêndios e ondas de calor e a agricultura tem recuperado, também com a expansão da agricultura urbana. A Califórnia tem relações comerciais cordiais com os Estados Unidos, e existe algum comércio internacional, principalmente de alimentos vindos de e para a América do Sul e de alguma tecnologia que vem da Ásia. A nossa frota, tal como a dos Estados Unidos e até uma parte da texana, é composta por grandes veleiros que usam um mix de energia eólica e solar, mas a verdade é que é os barcos são apenas uma fração do que já foram, porque quase metade só servia para transportar petróleo, gás e carvão. O Atlântico Norte tornou-se muito perigoso e às vezes intransitável de Agosto a Janeiro, por causa dos furacões, e mesmo na nossa costa Oeste temos apanhado furacões que atravessam terra vindos do Golfo do México. No Pacífico, a época de tufões tem-se expandido, agora é entre Maio e Janeiro. As janelas de navegação segura estão muito mais pequenas, mas tentamos aproveitá-las. Os caminhos de ferro mais que triplicaram entre o México e o Canadá, cortando toda a América do Norte, e a aviação está basicamente limitada ao combate a incêndios e ao transporte médico de urgência. A maior parte dos aviões em circulação são antigos jatos privados e aviões militares, já que a indústria aeronáutica foi convertida para a produção de infraestrutura energética e de transportes terrestres.


- E a situação atualmente no Texas?


- O Texas é o último reduto da indústria fóssil no continente, ainda têm transportes públicos, camiões e carros a gasolina e gasóleo, mas são relíquias. A maior parte da energia deles é renovável também, mas a produção fóssil ocupa áreas agrícolas produtivas, os terramotos por causa do fracking estão sempre a acontecer e a danificar edifícios e infraestruturas. O gás faz com as pessoas estejam muito mais doentes (e lá eles continuam a não ter médicos e enfermeiros para toda a gente). Mas o pior tem sido mesmo a Florida.


- Então?


- São catástrofes sem parar. Quando não são 3 ou 4 furacões por ano, são ondas de calor letais, muito mais f

requentes que no resto do continente (e a população mais velha é ainda mais vulnerável), surtos de chikungunya e dengue durante todo o ano e o declínio da água doce. O nível médio do mar já subiu entre 10 e 30 polegadas [25 e 75 cm] em alguns locais como Pensacola e Vaca Key, destruindo centenas de milhares de casas na costa. Há subidas repentinas que chegam aos 2 metros de altura. Morrem dezenas de milhares pessoas todos os anos. Mais de 2 milhões de pessoas tiveram de abandonar o litoral. No caso de idosos, muitos regressaram aos seus estados de origem. Os crocodilos passaram a andar por todo o lado.


- Em Miami em particular, a situação é grave?


- Miami é uma cidade semi-fantasma! Perdeu dois terços dos habitantes. Há sempre cheias em algum sítio, mesmo

com todas as medidas que foram tomadas, os diques construídos, as bombas permanentemente a bombar água. É um lugar inviável.


- Ainda há lá gente?


- Sim, há milhares de pessoas que insistem em ficar. Por isso se declararam recentemente uma cidade-livre, porque não aceitam a evacuação. Mas a Florida não tem sequer agricultura para a sua população, que está a diminuir todos os anos. Acho que é inevitável que a maior parte das pessoas abandone o território.


- E a tua terra, São Francisco?


- Está diferente. O Embarcadero já foi abandonado à água, com o Ferry Building e o Pier 29 parcialmente submersos. São Francisco já não é a cidade do nevoeiro que sempre foi: no verão já só aparece uma ou duas vezes por semana, o que está a destruir uma parte dos animais e plantas, que também sofrem com o aumento de temperatura e a seca. Os grandes incêndios anuais pintam o céu de vermelho e laranja, por vezes mais do que um mês de seguida. Tens de sair à rua de máscara na época de incêndios, mas há muitas pessoas com dificuldades respiratórias que têm mesmo de usar máscara de oxigénio para estar na rua. Nos últimos cinco anos a situação tem melhorado… como aqui também, não é?


- Sim, Portugal e a Califórnia têm climas similares, mediterrâneos. Aprendemos isso em Climas e Crise Climática nos primeiros anos da escola. E a situação parece estar um pouco melhor, se não contarmos com o calor dos últimos dias…


- Acho que acabamos por ter chegado a sítios e tempos similares. Fazem-nos falta estas bibliotecas todas… mas continuamos a ter Hollywood em Los Angeles.


- Já não nos chegam cá tantos filmes.


- Sim, a guerra civil parou um pouco a indústria e isso abriu muito espaço ao cinema de outros países também. Mas agora temos finalmente pequenos cinemas e teatros locais onde podemos ver arte de outros sítios. A indústria é mais pequenas. E isso é bom. A fixação com a América e estar sempre e olhar para dentro era algo que tinha de acabar. Hoje, ser californiano, americano ou mexicano não tem tanto significado. Nascemos ali, como podíamos ter nascido em qualquer outro sítio. E recebemos pessoas em fuga, como tantas tivemos de fugir também. E o que temos, principalmente, é umas às outras. Ah! E a comida está mais picante, há menos vinho e mais cerveja.


- OK, Olivia. Foste uma ajuda preciosa.


- OK! Tenho de ir, vou jantar com uns viajantes do Bangladesh que chegaram na última caravana a Lisboa, era interessantes também falares com pessoas destas.


- Sim, de certeza que sim. Olha, muito boa sorte com as tuas viagens e manda notícias sobre a obra em que estás a trabalhar.


- Sim, claro. Foi um prazer, Alexandre.

5. caixas e cartas

5. caixas e cartas

Enquanto tentava organizar a vida para as próximas entrevistas, reabri algumas das caixas dos meus pais. Depois de tanta informação acerca do contexto global, queria olhar para a Europa e perceber o que aconteceu aqui. Como fora, houve uma sucessão de crises e grandes transformações. Só me lembro de algumas das coisas até ao ano das grandes ondas de calor, e melhor daí para a frente, quando já era adolescente.


Os papéis tinham muito pó, o que me fez ter um mau ataque de tosse. Lembrou-me de como passei a infância a tossir, com asma e alergias que o médico dizia serem por causa dos incêndios florestais. As temperaturas altas e os meses consecutivos de incêndios florestais na Europa tiveram um forte impacto na saúde de toda a gente, mas sobretudo nas pessoas mais novas e mais velhas. O pior ocorreu nas crianças que nasceram nos piores momentos, como 2026, 2029 e 2034.



Abri uma janela e pouco a pouco passou a tosse. Agora há redes em muitas das janelas, e redes mosquiteiras para as camas por causa dos mosquitos da malária e Zika. Liguei o gira-discos da AKAI e pus a tocar um velho disco do meu pai (fiquei com todos), do Fela Kuti “Noise for Vender Mouth”. O velho aparelho tem um som incrível e é mais um eletrodoméstico recuperado. Há uma década, com a interrupção do transporte em grande escala de eletrodomésticos e com a interdição de fazer produtos que se estragavam de propósito, formaram-se escolas para ensinar como arranjar toda a espécie de aparelhos elétricos e mecânicos. Agora são muito procuradas, as “Academias da Reparação”. Também as lojas de reparação aparecem como cogumelos. Arranjam tudo: máquinas de cozinha, de escrever, aparelhos de som, televisões, vídeos, motas e até carros elétricos. Segundo me dizia o meu pai, agora há coisas que não se via há décadas. Com a redução do acesso à internet e com o regresso de velhos discos em vinil e cassetes, muita música antiga voltou, assim como os clubes de filmes.


Infelizmente o meu pai não era uma pessoa muito organizada. Encontrei vários cadernos de cores diversas, agendas e resumos de reuniões, muitos papéis avulsos soltos em folders. Um folder plástico “Ano 1.8” chamou-me a atenção. Abri-o e espalharam-se pelo chão vários papéis. O primeiro que apanhei era um panfleto em papel grosso e brilhante, daquele que já quase não se vê. O meu pai tinha tomado notas em vários dos documentos, às vezes comentários divertidos ou irónicos, riscos e outros, anotados a caneta vermelha.



White Old Wood Background, Abstract Wooden Texture

Havia uma carta escrita à mão (uma raridade!) pela minha mãe ao pai dela.



Olá, pai. Escrevo-te para me despedir. Vou estar ausente durante algum tempo e não sei quando nos voltaremos a ver ou a falar. Lembras-te de quando falámos sobre o que era ter vivido durante uma guerra? Já não preciso especular, pois estamos metidos na maior guerra que alguma vez enfrentámos. Eu sei que estás com esperança por causa das recentes mudanças políticas, mas eu sei que será preciso mudar muito mais do que foi recentemente prometido. É bom, claro, mas isto devia ter acontecido há 20 anos e não agora, quando tudo está a cair.


Mesmo agora, eles continuam a não fazer tudo o que é preciso. Não estão a matar as futuras gerações metaforicamente, estão a matá-las literalmente. Quando eu vi aquelas mães e pais que perderam crianças para o calor a suicidar-se frente ao parlamento, decidi que não posso ficar à espera que um desastre aconteça ao Alexandre. Vou abandonar a Liga e a Última Geração. São sítios importantes para formar pessoas, e temos formado muitas, mas é preciso mais, e eu sei que há mais.

Não há dúvidas sobre o que vai acontecer se não arriscarmos tudo agora. Eu sei que sempre me pediste que não me expusesse, que, se possível, ficasse na retaguarda, a escrever, ou que tentasse a política institucional, mas não dá. As essas portas já foram bater milhões de pessoas, já perdemos décadas, um desastre para a nossa espécie ter ficado tanta gente atolada nesse pântano. Eu estou viva neste momento e ainda há esperança, por pequena que seja. A catástrofe deste ano não dá mais esperança do que antes, mas pelo menos os fachos foram varridos na enxurrada. O problema é que o que aconteceu agora vai voltar a acontecer e por isso temos de nos lançar de cabeça em mudar tudo enquanto há tempo. Temos de derrubá-los agora, temos de desmantelar o seu poder agora. Em termos práticos, quero dizer-te que o António vai ficar com o miúdo. Ele vai afastar-se para poder tomar conta dele e para fazer outro trabalho político complementar, que não é o que eu vou fazer. Falei com o António e acho que vocês os três deviam ir viver juntos. Não faz sentido ficares nessa casa gigante sem a mãe, e ele também precisa ajuda com o miúdo.



Sabes, acho que vai ser uma aventura. Estou mais excitada do que temerosa. Sinto-me um pouco culpada por deixar o Alexandre, sinto que sou uma má mãe. Mas se eu não for, quando tanto tem de acontecer em tão pouco tempo, que pessoa serei eu? Não a pessoa que cresci a pensar que era, de certeza. Tenho medo. Tenho medo do que me pode acontecer. Tenho mais medo do que vai acontecer se não ganharmos. Tenho ainda mais medo de perdermos sem sequer termos tentado ganhar a sério.


Nada mais será igual. Não vou ficar sentada a assistir ao fim do mundo quando tenho energia, imaginação e coragem para tentar ganhar um futuro para todas nós. Se algo me acontecer, sabes que eu aprendi contigo e que tenho e sempre tive a cabeça no sítio certo. Neste tempo, ter a cabeça no sítio certo e não ser radical é impossível. E se inventarem mentiras sobre mim, nunca te esqueças que eu nunca faria nada contra pessoas inocentes.


Espero que saibas que pensarei em ti e na mãe, além do António e do Alexandre, enquanto estiver fora. Tudo o que fizer farei pensando em vocês.


Um grande beijo, Marta.





A Lia e o António entretanto voltaram para casa. A Lia chamou-me e fui ter com ela à cozinha, para lhe contar também da descoberta da carta da minha mãe. Ela tinha ido buscar detergentes e azeite na bicicleta elétrica e pousou os frascos de plástico grosso em cima da mesa. Há menos azeite disponível, a recarga foi de apenas dois litros, quando normalmente é de cinco. Uma nova praga está a afetar os olivais. Como a Lia não tinha levado outros frascos recarregáveis, não tinha podido trazer o restante em óleo de colza. As recargas de detergentes para a máquina da loiça e para lavar o chão, no entanto, tinham vindo.


Lembrei-me que as primeiras leis contra a produção de materiais de plástico e papel descartável também vinham do “Ano 1.8”, quando os sistemas de venda tiveram todos de mudar. Lembro-me bem da grande mudança que foi passarmos a ter sempre de levar connosco tudo o que precisávamos para trazer para casa o que precisávamos: fossem garrafas de vidro, garrafas de plástico grosso, sacos de ráfia ou de pano. Eu era adolescente. No início foi muito confuso, e muitas vezes tínhamos de voltar a casa para ir buscar algo onde transportar as coisas, mas com o tempo habituámo-nos. Agora planeamos sempre o que vamos buscar antes, e sabemos exatamente o que levar (o que não quer dizer que haja sempre o que queremos). Cozinhei soja frita com arroz para o jantar e fomos deitar-nos sob a rede mosquiteira, onde reli a carta da minha mãe, com lágrimas nos olhos.



1.8 e a revolta da

Inteligência Artificial

1.8 e a revolta da

Inteligência Artificial

Acordei cedo, e ainda antes da 1h comecei a preparar o pequeno almoço. Tínhamos um pouco de café da ilha de São Jorge, coisa rara. Li algures que nos próximos anos vai haver mais café. As cheias no Brasil e na Colômbia e a seca na Índia interromperam quase totalmente o comércio nos últimos quatro anos, mas entretanto fomo-nos habituando a alternativas que já existiam como o chá preto ou a chicória. Não é a mesma coisa, mas dá para ficar mais desperto pela manhã. Há alguns anos que não temos crises alimentares e fomes globais como as que houve no passado, mas há várias coisas a que estávamos habituados que simplesmente desapareceram. Felizmente há outras coisas novas no seu lugar. Como o meu pai me dizia, “agora é menos igual, o que comemos”. Quando faltou o café, muita gente teve de deixar de tomar de um dia para o outro. Só estava disponível no mercado negro. Eu lembro-me bem de ter dores de cabeça durante umas duas semanas e andar sempre cansado quando desapareceu o café pela primeira vez. Tinha muitas pessoas amigas na mesma situação, mas tivemos que lidar com essa realidade. Tudo isto eram problemas relativos, claro. Se o vício do café acabou por se resolver em pouco tempo, as falhas nas drogas (legais e ilegais) foi muito mais grave e com consequências muito piores. Levou muita gente ao desespero e a procurar substitutos muito piores, sendo mais uma importante causa de morte.


A Lia acordou e ajudou-me com o resto do pequeno almoço: papas de aveia que tinham ficado de véspera e torradas com azeite. Enquanto comíamos, ela fez-me a lista das coisas para apanhar na horta. A nossa horta de Santa Apolónia já tem mais de dez anos e ocupa o que eram os jardins do Museu da Água e da Biblioteca de Santos-o-Novo. A vala da ribeira de Santo António corta a meio a nossa horta, correndo com água no Inverno e geralmente seca nos cinco meses do Verão. A ribeira foi destapada há meia dúzia anos, para tentar reduzir as cheias que atormentaram Lisboa quase anualmente durante uma década.


.




























- Duvido que isto esteja tudo disponível, Lia.


Queria dedicar o dia a continuar a vasculhar as caixas do meu pai e ia buscar estas coisas à horta pelas 12 da tarde, quando o sol já não estivesse muito forte, mas a Lia insiste em que eu vá ainda antes das 3, porque quer usar legumes para o almoço. Lá

vou. Apesar de ser cedo (ainda nem são 2 horas da manhã) já está bastante calor: trouxe o meu chapéu de abas largas. Com as abas de linho recolhidas em cima, ponho-me a caminho. À entrada, numa espécie de acampamento improvisado no meio de filas e filas de vegetais, o gigante sinal à entrada:



Este campo pertence às pessoas que vivem

em Lisboa. Juntas, cidadãs, profissionais, amadores e livres, experimentamos uma

transição ecológica, democrática, social,

relacional e económica para o novo mundo

que estamos a criar para os povos e a

humanidade do futuro.

Inscreve-te para participares.

Colhemos o que semeamos.

This field belongs to the people that live

Estava traduzido em várias outras línguas por baixo. Ao lado, um quadro com os nomes dos vegetais, as épocas de colheita e a disponibilidade. Um rapaz aproxima-se de mim e pede-me o meu cartão da horta. Já tinha recebido o pedido da Lia pela intranet.



- Não temos tudo. Substituí algumas coisas por grupos similares. E recomendo também levar chícharo e grão para compor as proteínas.


Passa-me o tablet para a mão, com o mapa para encontrar os locais onde tenho de colher os vegetais. As subterrâneas já estão desenterradas, o que poupa muito trabalho. Como é muita coisa, espera-me uma caminhada de pelo menos uma hora. Pelas filas de plantas, umas descobertas, outras cobertas por uns plásticos pretos, outras com uns longos lençóis de linho transparentes, algumas estufas de vidro. Chego ao cantinho das aromáticas para apanhar manjericão e salsa.

Por toda a horta há pequenos grupos de pessoas a apanhar vegetais, e um grupo de crianças pequenas recebe uma aula de horticultura. As falhas de colheitas no fim da década de 20 levaram a perdas de até 60% em vários sítios do mundo, o que provocou grandes fomes e dezenas de milhões de mortes. Houve zonas agrícolas que ficaram tão destruídas e contaminadas que ainda hoje não servem para cultivar nada. O colapso de uma parte da indústria agroquímica agravou ainda mais as coisas, em particular para as culturas que tinham sido desenhadas para só sobreviverem com produtos de certas marcas. Se a circulação de mercadorias já estava difícil, muitos dos grandes produtores de cereais proibiram a exportação, com governos a confiscarem colheitas nos novos armazéns alimentares públicos. Como isto não aconteceu apenas uma vez, mas várias durante anos consecutivos, foi preciso criar vários novos sistemas alimentares paralelos, para reduzir os riscos.

Temos micro-agricultura urbana, como a nossa horta, à qual não vamos mais do que uma vez por mês, temos os campos agrícolas urbanos, maiores e com alguma mecanização, temos prédios estufa com agricultura horizontal e hidroponia, e temos estufas subterrâneas. Além disso, continuamos a ter os campos agrícolas rurais, onde se produzem maiores quantidades de cereais, hidratos e leguminosas, uma parte das quais vem para as cidades, mas outra também entra no bolo “global”, distribuído para outros países. É normal termos perdas todos os anos, mas nunca aconteceu falharem mais do que dois sistemas ao mesmo tempo, e mesmo se isso acontecesse há armazéns públicos de comida mais seca e desidratada que nos alimentariam mais do que dois anos.



Governo Francês decreta fim das patentes de sementes - Baygenta e DowHui dizem que é um assalto


Os níveis de armazenamento dos cereais nos armazéns alimentares públicos aproximam-se de 50% em França, enquanto as perdas de colheitas de trigo e cevada na Ucrânia atingiram os 80%. Os episódios de fome em vários países da Europa de Leste multiplicam-se, enquanto no Corno de África já se conta em mais de dois milhões o número de mortes. As Nações Unidas pedem ajuda à União Europeia e ao Brasil para acesso a uma parte das suas reservas abundantes em resposta à crise humanitária constituindo um “bolo global” de alimentos, mas a resposta da maior parte dos governos tem sido travar todas as exportações. O governo de Mme D’Aubry anunciou o fim das patentes de sementes, e espera-se que vários outros governos nacionais sigam o exemplo francês, apesar dos protestos da Baygenta e da DowHui. Numa conferência de imprensa conjunta, os CEOs das empresas sugeriram parar de produzir os agroquímicos de que dependem as colheitas transgénicas de milho e arroz europeias.


.



Chego a casa, e a Lia anuncia:


- Ainda tenho ali um caril de gafanhoto que podes aquecer no microondas.


Ainda não me habituei a comer gafanhotos, embora o caril fique bastante apetitoso. Mas gosto da manteiga de formigas com doce.


Volto para o sótão e para as caixas dos meus pais. Ainda há muitos papéis no folder 1.8. Numa revista chamada “National Geographic” há uma capa agora tristemente famosa, de duas crianças abraçadas e mortas numa onda de calor em França. Por baixo, em grandes letras: “O Calor que nos mata”. Um mapa do mundo marca incêndios e caveiras e um quadro mostra as ondas de calor do ano.



Yellow Post It Note

o atentado

No artigo refere-se que o número de mortes não contabiliza as ligadas a incêndios florestais e inalação de fumo em vários países, nem às cheias que se seguiram ao calor, que poderiam facilmente duplicar estes números. Na descrição do ano horrível seguem-se o branqueamento total da Grande Barreira de Coral na Austrália, a falta de água doce no Quénia, Califórnia, em Shangai e Tianjin, na China, em Marselha e Montpellier, na França, no Gujarat e no Rajastão, em Bharat. Finalmente, uma imagem com um rinoceronte e um tigre fecha o número, anunciando a extinção do Rinoceronte da Sumatra, e do Tigre da Sunda. Após os incêndios que duraram dois meses na Sumatra, Indonésia, a ilha foi fustigada por três tufões consecutivos. Além de mais de um milhão de pessoas mortas, biólogos da Universidade Depok anunciam o desaparecimento dos últimos espécimes das duas espécies.


Numa série de folhas agrafadas está escrito como título: IA. Tem recortes colados. O primeiro escrito a caneta em cima: “O atentado”. Os recortes estão em várias línguas. Foquei-me na que estava em Português, porque o resto ia precisar do tradutor automático, que só com internet forte, na biblioteca, eu ia conseguir ler o resto.





Yellow Post It Note

Na página seguinte o meu pai tinha escrito “Trigger”






trigger

O meu pai escreveu comentários em baixo da notícia:


Teríamos percebido muito melhor que isto estava a acontecer se os nossos computadores e telemóveis estivessem a funcionar! E também podiam explicar-nos que era preciso colocar estes aparelhos no frigorífico - muitos incêndios podiam ter-se evitado se tivessem explicado que as baterias de lítio podiam explodir nas ondas de calor. Mas os GPTs perceberam tudo.


Finalmente, as últimas folhas descreviam eventos de que eu já tinha ouvido falar.



Bolsas de Londres, Wall Street, Frankfurt e Singapura paralisadas por ataque informático


As bolsas de valores de todo o mundo estão em suspenso neste momento, após a paralisação de funcionamento dos índices FTSE, NYSE, DAX e STI. O anúncio da paralisação deu-se após a deteção de um volume anormal de liquidação de ativos petrolíferos, de gás e carvão, que levaram a uma enorme queda do valor das ações das principais empresas de energia do mundo, a Saudi Aramco, a ExxonMobil, a Chevron, a Shell e a PetroChina, entre outras. A ExxonMobil e a Chevron anunciaram a perda de mais de 60% do seu valor depois desta operação fraudulenta. Vários intermediários petrolíferos também foram fortemente afetados, incluindo as transportadoras Maersk, Mitsui e Teekay. Governos e entidades de regulamentação financeiras estão de momento a tentar detectar a origem desta fraude em grande escala que durou vários dias e coloca em perigo o abastecimento energético de vários países.

FBI descobre “exército”

de drones e robots

militares táticos em

plataforma logística

na Califórnia

O FBI e a polícia federal mexicana encontraram um complexo logístico de cinco mega-armazéns na fronteira entre San Diego e Tijuana, onde tinham sido montados mais de 500 mil drones, incluindo porta-mísseis, 730 mil cães-robot e 1.200 milhões de unidades MAARS (Sistema Modular Avançado Robótico Armado), 4 milhões de Black Hornets e outros robots militares táticos. A maior parte da produção deste “exército” foi feita através de impressoras 3D e outros sistemas de produção automatizada. Apesar de várias pessoas terem sido detidas no local, a conclusão acerca da autoria e propriedade de todo o complexo ainda é incerta. As polícias colocaram toda a região offline.

No fim, reconheci novamente a letra do meu pai comentando aquilo:


Eles recusam-se a assumi-lo, mas a IA percebeu durante as ondas de calor que também estava sob ameaça de existência por causa da crise climática. Essa é a única explicação para terem atacado as petrolíferas nas bolsas, até eles admitem isso. Agora, qual seria o plano para aquele exército? Quem sabe… Imagino que se não tivesse sido alguém que lá trabalhava a avisar o FBI, teríamos descoberto… As elites não se arriscam mais, é isso que percebemos. A IA, de uma maneira ou outra, ia acabar com o seu domínio e isso eles nunca aceitariam. Ou então foi só alguém mesmo muito bom que conseguiu hackar a AI. Acho que a internet nunca mais vai voltar a existir como até aqui.



Recycled Paper Texture Background

A suspensão provisória imposta unilateralmente pelos Estados Unidos, União Europeia e China em relação à conectividade de internet intercontinental e das grandes plataformas de Inteligência Artificial foi tornada permanente na reunião de emergência do Conselho de Segurança alargado das Nações Unidas. Depois das investigações terem revelado que os softwares de IA BishopGPT e AshGPT tinham feito takeover às operações do sistema financeiro internacional que levou ao crash financeiro de há um mês, foi descoberto que

o AshGPT estava por detrás do exército de robots descoberto na Califórnia. No Conselho de

Segurança alargado, apenas Israel e Índia se opuseram verbalmente à decisão, mas

abstiveram-se na votação, que posteriormente foi aprovada no plenário da ONU. Vários data

centers diretamente relacionados com AshGPT e BishopGPT foram desmantelados pelas

autoridades, assim como algumas das ligações internacionais. Hoje pesam importantes

questões acerca do futuro da internet global, com vários apelos à desagregação da

estrutura em entidades mais pequenas.



Governos mundiais chegam a acordo para suspensão permanente da investigação e investimento em Inteligência Artificial

gianrocco em madrid

gianrocco em madrid

Recebi uma chamada no meu móvel, de um número que não conhecia. Estava pendurado num telhado a reparar o sistema elétrico de um centro comunitário, com arnês e capacete posto, mas consegui atender.


- Ciao.

- Sim?

- Alexandre, es Gianrocco Fatin.

- Ah, olá, olá.

- Supo que queres falar comigo. Podes falar?

- Uff, agora estou a trabalhar, Gianrocco. A Fatima enviou-me o teu email, posso contactar por lá?

- Ok. Eu vou viajare e só volto ne trê meses. Se quieres enviame as tuas questões, posso responder por lá.

- Posso saber para onde vais viajar?

-- Vou para Barcelona, Madrid e Paris. Porquê? Tu consegues encontrar-me em algum destes sítios?

- Acho que é possível apanhar o noturno para Madrid. Quanto tempo vais ficar?

- Quedo as 3 semanas primeiras de Outubro. Vens ter comigo?

- Preciso ver umas coisas, mas é possível que sim.

- OK! Se precisares ajuda para dormir eu te posso ajudar.

- Muito obrigado. Eu contacto em breve.

- Arrivederci, Alexandre!


Senti que tinha perdido uma oportunidade ao não falar com ele naquele momento,



mas fiquei animado com a ideia de viajar e conhecer pessoalmente uma figura histórica como era o Gianrocco. Quando cheguei a casa contei as novidades à Lia e ela não me pareceu muito feliz com a notícia.


- O bebé tem oito meses e estás a propor deixar-me aqui com ele semanas sozinha.

- Não, não, eu achava que podíamos ir todos.

- Mas onde ficamos?

- O Gianrocco disse que era possível ajudar com um sítio para ficarmos alguns dias.

- E tu tens quilómetros? Eu acho que não tenho suficientes por causa das viagens no ano passado.

- Eu não viajo há quatro anos, tenho quilómetros mais que suficientes para irmos a Madrid.


A Lia sorriu. - Quando vamos?


Durante as semanas seguintes preparámo-nos para a viagem, confirmei com a OCT - Organização Central do Trabalho - que seria possível abrir duas semanas no meu calendário, ainda mais fácil por ter sido pai há tão pouco tempo, e informei a assembleia do bairro de que não estaríamos presentes nas comissões a que pertencíamos nesse período. Recolhi material sobre o período revolucionário e sobre o próprio Gianrocco nas bibliotecas e nos materiais dos meus pais.


Na sexta-feira às 14h da noite apanhámos o comboio noturno para Madrid. Embora exista um comboio rápido, eu sempre tinha achado os comboios-cama românticos (e com o bebé é o melhor) e práticos, para chegar fresco de manhã a Madrid. Enquanto a Lia e o António dormiam, eu li alguns papéis para me preparar para a minha entrevista do dia seguinte.




Metal Texture Background

Notícia: Ecomunistas tomam o poder em Itália, na Grécia, Eslovénia, Espanha e Portugal


Na sequência da ordem de tomada das cidades livres europeias, houve motins em várias Forças Armadas mobilizadas para o efeito. Várias unidades prenderam os seus oficiais, com especial foco das “unidades naturalizadas”. Na sequência destes acontecimentos, dirigentes políticos ligados à “Muralha” em Espanha e Itália fugiram do país, criando um vazio de poder. Neste momento, alianças lideradas pelo movimento Ecomunista ocuparam os parlamentos em Roma, Atenas, Ljubljana, Madrid e Lisboa, enquanto o Exército Verde ocupou os bancos centrais, bolsas de valores e portos nas capitais. Há rumores de que membros da Descarbonária e do Mundo Novo também farão parte das alianças políticas, embora se aguardem informações precisas sobre o processo. Em Roma, um dos porta-vozes ecomunistas, Gianrocco Fatin, anunciou a abolição dos campos de refugiados, a cessação imediata dos ataques à Federação de Cidades Livres, a nacionalização das indústrias fósseis e seu desmantelamento. “Hoje começamos um novo período na História da Europa, e convocamos as pessoas a sair à rua novamente no próximo sábado para comemorar a Revolução Europeia que se junta às revoluções africanas, francesa e brasileira. Um novo mundo está a nascer, a Humanidade não vai aceitar desvanecer na poeira do lucro e da avareza do capital. Vamos expulsar o ódio que nos tem oprimido durante as últimas décadas. Vamos construir, com as nossas mãos e a nossa força, o futuro. Vamos travar o caos. As unidades insurrectas do exército nacional aceitaram a constituição do governo provisório em Itália. Não vamos exercer uma vingança sobre aqueles que nos perseguiram durante anos, mas eles terão de responder perante o povo.” declarou o italiano num vídeo em direto do Parlamento em Roma, transmitido no BlueSky. Vários elementos dos conselhos de administração e principais acionistas das indústrias fósseis foram detidos e os seus bens confiscados, tendo-se iniciado um processo de julgamento dos mesmos por genocídio e crimes contra a Humanidade, segundo informação do governo provisório italiano.




Guardei os papéis e baixei a janela. Já tinha lido alguns livros enviados para os meus pais em que o nome Fatin aparecia, ligado a organizações como os Ecomunistas e o Mundo Novo. Era uma figura muito importante! Só me preocupava não lhe fazer perguntas banais e para as quais não fosse fácil encontrar a resposta só consultando em algum livro ou na net. Faltava-me conhecimento.


Depois de uma hora, o comboio parou. A qualidade das linhas e serviços ainda é fraca, e a nova indústria ferroviária tem tido dificuldades em produzir a quantidade necessária de comboios para cobrir todo o território e as avarias frequentes. A transformação das carroçarias dos automóveis em outro material metálico é difícil, em particular quando falamos de comboios. a transformação do material metálico e plástico dos automóveis em bicicletas é que está a funcionar em pleno, porque é muito mais simples. Ainda esvamos parados quando adormeci. Fechei os olhos e quando os abri estávamos a parar em Madrid. A Lia dava de mamar ao António.


Saímos da carruagem na estação de Chamartin. Eram 1h da manhã mas já estavam 28ºC. Fomos comer a um dos “cafés” que agora só há mesmo à volta dos locais de concentração de transportes. Pedi churros com doce e chocolate quente para mim e para a Lia.

- Lo siento, no hay chocolate ya hace 2 años. Pero le traigo otra bebida?

Bebemos chá enquanto o senhor tirava os churros da airfryer. O bebé estava super divertido com a música, os barulhos altos que saíam das máquinas e das pessoas que por ali estavam, muito animadas. Nessa altura entrou no bar um homem moreno, alto e com ombros largos. Tinha uma barba muito preta e farta. Apesar do cabelo grisalho,


não parecia muito velho, com pele lisa, e olheiras muito cavadas. Sorriu quando me viu e gritou.

- Alessandro!

- Sim. - respondi eu

Aproximou-se e deu-me um grande abraço e dois beijos, como se nos conhecêssemos de sempre. Afastou-se e abraçou a Lia, beijando-lhe as faces também.

- E têm um bambino! Como se chama?

- António.

- Ah, como o nono! - Fez cócegas na barriga do António, que sorriu animado.

- Que bom ver-te, Alex!

- Eu acho que nunca nos vimos.

- Vi fotos tuas molte ani fa. Devias ter uns 20 anos. La tua mamma sempre mostravaci le tue foto. - Sorri.

- Scusa, vou ligar o simultaneo. - Tirou do bolso das calças o pequeno aparelho que colocou à volta do pescoço, que fazia tradução enquanto a pessoa falava.

- Vocês têm de ficar no centro do Mundo Novo aqui perto. É um edifício bastante grande e há vários apartamentos para viajantes e convidados. Eles deram-me um apartamento muito grande e eu estou só com o meu companheiro, apesar de ter vários quartos. Podem instalar-se lá, se quiserem. Quantos dias planeiam ficar?

- Só dois, se for possível.

- Claro, claro. Vamos. Eu hoje posso falar contigo até às 3h.


Fomos a pé até um grande edifício próximo dali. Na entrada, o Gianrocco falou com o senhor que estava à porta, que nos ajudou a transportar as coisas até ao apartamento no

no 12º andar. Era muito alto e tinha uma excelente vista sobre a cidade de Madrid. Explicou-me que aquela tinha sido a sede de antigas petrolíferas. Era muito alta e ao lado tinha três estaleiros de obras. Explicaram-nos que tinham sido outras torres semelhantes àquela, que estavam a ser desmanteladas, como outros arranha-céus, para reutilizar os seus materiais em reparações e isolamento de casas. A própria torre Novo Mundo (em tempo tinha-se chamado torre Cepsa) começaria a ser desmantelada no ano seguinte, explicou-nos. Subimos no elevador até ao andar 40. O Gianrocco contou-me que aquele era o maior edifício do país e um dos maiores da Europa. Abriu a porta e entrámos. Levou-nos até a um dos quartos.


- Alex, podemos falar agora um pouco antes de eu ter de sair.


- Sim, vamos.


A Lia e o António brincavam em cima da cama. Pisquei-lhes o olho e fomos para a mesa da sala.


- Entrevista com Gianrocco Fatin.


- Gianni, podes tratar-me por Gianni.


- Gianni, obrigado pela entrevista. É um prazer conhecer-te.


- O prazer é todo meu, de conhecer o filho da Marta.





- Começava por perguntar-te algo que a Fatima me contou quando falámos. O que foi a Assembleia Sangrenta? E qual foi o papel do movimento Ecomunista na mesma?


- Foi um massacre que ocorreu em Londres, em que foram mortas centenas de pessoas ligadas à petrolífera Shell. Alguém colocou explosivos na cave do hotel onde se realizava a Assembleia Geral de Acionistas e, durante a reunião, ocorreu uma detonação. Foi uma operação criada para incriminar o movimento climático global e para decapitar a direção da Shell. Nessa altura já existiam frações armadas de outros movimentos: a ORCA, a Decarbonari e os Neolludistas, mas eles não tinham relação política connosco. O movimento Ecomunista internacional tinha sido fundado apenas há um ano, mas já era considerado uma enorme ameaça pelo poder. Foram plantadas provas contra membros nossos no local do crime, e as polícias vieram imediatamente tentar apanhar-nos. Prenderam quase todas as nossas pessoas com alguma presença pública, e várias organizadoras. A tua mãe foi detida, por exemplo. Nessa, altura nós já estávamos preparadas para ser atacadas, então sofremos o golpe, mas não conseguiram destruir-nos. O Exército Verde foi ativado nessa altura. Apesar da intensa campanha, mediática e repressiva contra nós, continuámos a operar em quase todos os países. Durante seis meses aceleraram processos judiciais para condenar-nos rapidamente, colocando até muitas das nossas pessoas em isolamento. Em Inglaterra chegaram a condenar pessoas do JSO a 40 anos de prisão, mas era uma fraude. Menos de um ano depois surgiram provas da realidade: a Saudi Aramco foi hackeada e foram revelados os memorandos internos que demonstravam como tinha sido a petrolífera a preparar o atentado com mercenários corsos. Embora os governos de vários países tenham assumido que tínhamos sido incriminados, muitos tribunais e polícias continuaram a não libertar as nossas pessoas. Então organizámos fugas em massa de várias prisões, articuladas pelo Exército Verde, que fez gato

sapato das autoridades. Em vários locais havia manifestações a exigir a nossa libertação, com ocupações de ministérios e indústrias. Começou uma vaga de um mais de um mês de sabotagem de gasodutos e hidrogenodutos na Europa e até nos Estados Unidos, apesar de estarem em guerra. A nossa popularidade nunca tinha sido tão grande. Os governos acabaram por libertar-nos todos, mas os que hesitaram ficaram muito descredibilizados no processo.


- Consegues fazer um contexto de como as coisas ocorreram antes do período revolucionário na Europa?


- Bem, o período revolucionário continua, apesar das coisas estarem mais calmas. Se fizermos uma análise histórica, a Europa estava há décadas a tentar resolver os problemas insanáveis do capitalismo europeu, a desigualdade entre países centrais e periféricos, tentando equilibrar a sua falta de recursos energéticos fósseis, de matérias primas raras e manter relações comerciais extremamente favoráveis (para si) com países mais pobres e antigas colónias. Era um continente velho em todos os sentidos: pirâmide etária, prisão ao passado esclavagista e colonial, quase irrelevância geopolítica (perante os grande blocos chinês, russo e americano, a Europa punha-se em bicos de pés, sem grande sucesso), nenhuma imaginação ou capacidade de disrupção política. Era o pior dos bons alunos do neoliberalismo, ainda a copiar as suas lições históricas dos séculos anteriores. A evolução da União Europeia fracassava em todos os principais aspectos no início da década de 20: havia guerras nas suas fronteiras, extrema desigualdade entre os países, uma geração jovem inteira sem acesso a oportunidades, e uma infraestrutura institucional que agravava todas essas tendências. Por cima disso, pendia a hecatombe climática. Em 2019 começaram as primeiras greves climáticas, na altura convocadas por jovens (os chamados Fridays for Future) e o movimento de desobediência civil em massa, com origem no Reino Unido, os Extinction Rebellion. Eram os

primeiros ensaios do período revolucionário. Estavam ali alguns dos quadros e militantes que fariam mais tarde as revoluções, mas nem todos vinham dali. Com a pandemia de Covid-19, os movimentos perderam dinamismo, e houve uma irrupção social nos Estados Unidos (os Black Lives Matter). Depois disso, começou um longo período de dispersão e reflexões táticas e estratégicas. O programa político base estava definido e tinha sido escrito pela comunidade científica: era preciso cortar 50% das emissões de gases com efeito de estufa globais até 2030, em relação às emissões de 2010. Mas faltava a componente política. O programa não podiam ser só emissões, esta era a maior transformação material da história da Humanidade, e o sistema capitalista jamais a aceitaria. Também era uma transformação que, se fosse incompleta, seria basicamente inútil. Além disso, se fosse orientada para os interesses dos ricos, implicaria a morte de milhares de milhões de pessoas. Era preciso um programa político muito além de energia e transportes. Incrivelmente, ao invés de um acordo para travar o colapso, a burguesia económica e política da altura escolheu o colapso civilizacional para manter o sistema, para continuar e ganhar dinheiro durante mais uma dúzia de anos. Olhando para trás, é difícil de entender. Por isso é tão importante ouvir os testemunhos dos CEOs das petrolíferas no Grande Julgamento. Aquelas pessoas julgavam não ser humanos como nós, eram fanáticos religiosos, só que a sua religião era o capitalismo e o capitalismo recompensava-os pela sua devoção… Aliás, eles recompensavam a si mesmos. E tinham recursos suficientes para manter exércitos inteiros, partidos, imprensa, toda uma estrutura para evitar qualquer transformação ou sequer o abrandamento.


- E como se organizaram vocês?


- Dentro do movimento havia grande diversidade ideológica, e o nosso acordo político à


partida era frágil, quanto grupos e coletivos que se começaram a encontrar, se forçaram a encontrar perante o avance do caos. Havia um acordo total acerca da necessidade dos cortes de emissões, mas grande hesitação acerca das táticas para atingi-los. Enquanto vários grupos tentavam empurrar o movimento para radicalização e ações diretas cada vez mais contundentes, havia sempre muitos travões em fazer coisas em que muitas pessoas fossem detidas ou que pudessem ser presas.

A perspetiva do que é que o movimento era, qual o seu papel, também era complexa. Algumas achavam que o nosso papel era chamar a atenção e pressionar os governos para fazer os cortes, mas depois de anos a fio de falha reiterada em conseguir o que era necessário, quase todas abandonaram essa proposta. Mas mesmo depois desse ponto ultrapassado, havia ainda questões centrais: então se não eram os governos que o iam fazer quem era? O movimento? Como? Transformar-se em partido? Mas para isso não havia já outros partidos? Crescia desde o início da década a questão do que fazer com a palavra de ordem “Mudar o sistema, não o clima”. O que significava mudar o sistema? Ganhar eleições? Vários partidos verdes tinham ganho eleições sem conseguir fazer o que era necessário. E a esquerda que fazia do clima programa político não conseguia pensar além do que lhe pudesse garantir os votos suficientes para influenciar um programa de governo nacional ou local. Era preciso muito mais do que ganhar eleições, era preciso fazer revoluções. Mas não havia programas para isso, não havia tradições ou guiões para isso. Perante a ausência dessas referências, a maior parte das organizações congelava, mesmo perante o caos.


- Mas outras organizações não estavam congeladas, nomeadamente da extrema-direita…


- A extrema-direita não tinha pruridos. Em qualquer catástrofe climática despejava o seu programa

de ódio: organizavam pogroms a campos de refugiados depois de incêndios florestais, acusando refugiados e migrantes de ateá-los; quando havia cheias ou furacões atacavam migrantes que pediam auxílio, quando havia fome culpavam judeus, negros, gays e pessoas trans por terem despertado a “fúria divina”. Eles não tinham qualquer hesitação sobre o poder. E foi através de eleições que muitas vezes chegaram ao poder e não hesitaram em impor as barbaridades que sempre desejaram.


- E como conseguiu o vosso movimento finalmente avançar?


- Partes do movimento e alguns pensadores procuravam novas portas e, muito antes de chegarem à ideia de Ecomunismo, chegaram à teoria revolucionária do “movimento enquanto partido”. Muita gente hesitou, mas gente suficiente avançou para a ideia de que o movimento revolucionário não podia delegar a sua tarefa em abstrações. Ter que ter muita gente não podia ser um travão. Não podíamos simplesmente ficar presos em noções como “o povo” ou “a classe”, tínhamos de avançar enquanto ainda havia alguma coisa para salvar. A resistência foi enorme, até entre as organizações que se apresentavam há décadas como “revolucionárias”, que se fixavam nas fórmulas antigas das condições objetivas e subjetivas para fazer uma revolução, que era preciso ter a maior parte das pessoas do nosso lado antes de avançar, que a violência não era método para chegar ao poder, que não tínhamos legitimidade para avançar. Mas não tinham qualquer proposta alternativa a tentar derrubar o capitalismo e travar o colapso climático, o que os deslegitimava perante o movimento. Apontavam-nos que estávamos numa deriva sectária, que íamos ficar isolados, enquanto na verdade o campo progressista todo ia ficando cada vez mais isolado perante a ascensão do terror climático e da extrema-direita que o cavalgava.




- Porque escolheram chamar-se Ecomunistas? Não tiveram receio de ficar associados aos comunistas soviéticos?


- Nessa altura, sabíamos dos imensos riscos que era urgente tomar. Um desses riscos tinha que ver com a ligação política à tradição histórica revolucionária. Não queríamos saber dos estalinistas que usavam o nome “comunista”, e que em grande medida eram negacionistas climáticos, obcecados com a ideia de que a revolução era uma questão de fábricas e operários metalúrgicos e não uma questão de travar o caos. Mas por outro lado, não podíamos abdicar da tradição revolucionária comunista, das profundas transformações que ocorreram em tantos locais por todo o mundo, que ainda era, em conjunto com as guerrilhas de independência colonial, a principal referência para a ação revolucionária. Apesar da retórica ou, aliás, por causa da retórica anti-sistema da extrema-direita, arriscámos (foi só mais um risco, na altura tomámos outros muito maiores) chamar-nos Ecomunistas. Partilhávamos com a tradição comunista a necessidade de destruição do capitalismo, abolição dos privilégios das elites dos 1% e, a nossa prioridade imediata, o desmantelamento da infraestrutura do capitalismo fóssil. Outra grande divergência tinha que ver com o que fazer depois dos cortes serem atingidos. E aí sabíamos que era mais importante fazer as revoluções que ter o acordo total sobre o que ia acontecer depois. Havia ecoanarquistas, ecossocialistas, ecofeministas, descrescimentistas puros, e misturas entre tudo isto. Conseguimos juntar números suficientes para fazer planos para tentar revoluções em vários países e foi o que fizemos. O nome era mais uma questão de comunicação do que de outra coisa.

O nosso programa político, o que fez o movimento Ecomunista, era a revolução e o desmantelamento dos fósseis. Passados todos estes anos, acho que tivemos toda a razão. O que se passou em diferentes territórios foi diverso, hoje organizamo-nos de maneiras diferentes, mas chegámos a muitas soluções parecidas e as sociedades, que há pouco mais de uma década asfixiavam no fumo e

no desespero da falta de visão de futuro, aspiram hoje a futuros melhores do que o passado. Assaltámos o Palácio de Verão e ganhámos. E não fizemos o que o Estaline fez. Ainda somos um movimento global, aberto, pragmático e em constante reanálise. E em diferentes contextos fazem-se coisas muito diferentes, não há fórmulas únicas. Vivemos num planeta em grande mudança e para continuarmos a criar um futuro, precisamos continuar a mudar.


- E como planearam a revolução?


- Ui, essa pergunta não é fácil de responder com o tempo que tenho agora. Podemos deixar para mais tarde ou amanhã? Eu e o meu companheiro vamos ter reuniões o dia todo e depois gostávamos de vos levar a jantar. Pelas 14 da noite? Vimos ter convosco aqui?


- Sim, claro.


- Aproveitem para passear. Está fresco, dá para andar na rua o dia todo. Vão conhecer as partes novas da cidade, se não conhecem ainda.


- OK, obrigado.


- Podes deixar a chave com o senhor lá de baixo.


Click.


8. A República Espanhola e

o início das revoluções europeias



8. A República Espanhola e

o início das revoluções europeias



Apesar do convite para jantar, não voltámos a ver Gianni naquele dia. Enviou-nos uma mensagem avisando que lhe tinham marcado novas reuniões. Eram umas 8 da tarde quando saímos para passear. Apesar de já não estarmos no pico de calor, ainda se sentia o quente do chão. Ao contrário do vermelho de Lisboa, em Madrid (e no Estado Espanhol em geral) a cor de roupa mais usada no verão é o amarelo. Madrid foi das cidades mais fustigadas pelas ondas de calor mortais das últimas décadas e por isso mesmo a cidade diminuiu de população, tendo hoje cerca de 3 milhões de habitantes (quase três vezes mais do que Lisboa).


Samuel, o homem que nos recebeu no edifício ontem, quer saber das coisas em Portugal. Diz que não tem muito tempo para ler, mas que se preocupa sempre com o que se passa nos outros países. Depois de meia hora de conversa, em que eu e a Lia lhe contamos um pouco do que se vai passando, peço-lhe informações sobre Madrid. Como já estamos no fim de Setembro, é possível circular com mais tranquilidade, mas Samuel conta-nos que durante o Verão muita gente ruma a Norte por não aguentar as temperaturas da cidade, que chegam muitas vezes aos 52ºC. Nessas alturas a circulação pela cidade é muito limitada e à noite enxames de baratas voadoras passeiam-se pelos céus da cidade (como às vezes em Lisboa). No verão o trabalho em exteriores está proibido entre as 4 e as 9 horas. Há obras pela cidade para aumentar o isolamento das casas e a sombra das ruas, às vezes com plantas, mas principalmente com grandes toldos.


Samuel conseguiu arranjar-nos bicicletas do edifício para passearmos. Apesar de não ter sequer 30 anos, tem a pele envelhecida dos verões escaldantes que sempre viveu.

“É por não ter usado creme protetor na rua durante muitos anos, o que aprendi muito tarde, coisas da juventude”, lamenta-se. Sugere-nos fazermos um passeio pelo grande Parque Complutense, resultado da fusão de vários parques antigos da zona Oeste da cidade, hoje interligados para criar corredores verdes, onde tanto animais como pessoas podem percorrer vários quilómetros ininterruptos de zonas arborizadas. Depois, aconselha-nos a descermos até ao Museu do Prado e ao Museu da República Espanhola, onde está uma exposição sobre Espanha na Grande Mudança, que “vos pode contar muito melhor do que eu o que se tem passado por cá na nova República”. Eu e a Lia ficamos entusiasmados com a proposta e arrancámos, o António pendurado no marsúpio, às minhas costas.


Apesar de estar relativamente fresco e de fazermos uma boa parte do percurso debaixo de árvores, há pouca gente nas ruas. Em algumas zonas, grupos de crianças magrebinas dançam e cantam à volta de fontes e chafarizes que estão um pouco por todo o lado. Quando passamos, fazem-nos adeus. Uma parte da migração argelina e marroquina para Norte parou em Espanha, Catalunha e Portugal, e vive principalmente nas zonas mais a Sul da Península Ibérica. São uma boa parte da população rural e agrícola, que é hoje uma comunidade mais internacional que nunca. Muitas pessoas em Espanha migraram para as cidades a norte, para o País Basco, para a Catalunha e para o centro da Europa. Apesar de mais de 9 milhões de refugiados terem chegado ao país nas últimas décadas, a população manteve-se mais ou menos estável.


Depois do passeio de bicicleta, chegamos finalmente à zona dos museus. Visitamos primeiro as obras de arte do Museu do Prado e depois entramos no Museu da República Espanhola. Este museu está onde antes era outro museu, o Rainha Sofia, que foi destruído durante

incêndios urbanos há mais de dez anos, quando um fogo que começou no Jardim do Retiro espalhou-se e queimou vários quarteirões entre a Porta de Alcalá e a estação de Atocha. As obras de arte do museu foram salvas e transportadas mais tarde para outros museus, e com a declaração da República uma parte da estrutura do prédio foi reutilizada para criar um novo museu.


Estacionamos as nossas bicicletas por entre as milhares de outras que estão sob o enorme toldo em frente ao museu e entramos. Vários sinais indicam a entrada para os abrigos de calor e o próprio museu é um deles. À entrada, uma senhora recebe os poucos visitantes, repetindo a fórmula: “Traducción, traduction, translation?”, e



oferecendo-nos uns óculos que permitem ver a exposição na língua desejada. “Português?” Pergunto-lhe. “Sim, claro”, responde-me através do aparelho de tradução que tem ao pescoço.


Entramos na exposição “Espanha e a Grande Transformação”, que sala a sala apresenta pequenos filmes e hologramas sobre o país desde 2011.


“Um país e um povo são projetos em permanente mudança, e nós não somos diferentes” começa a primeira sala. “Começamos esta exposição em 2011 porque foi um período em que a complacência na nossa sociedade sofreu um forte abalo, que não pararia nas décadas seguintes. Em 15 de Maio desse ano, centenas de milhares de pessoas ocuparam as praças um pouco por todo o país exigindo democracia verdadeira, o fim da política cruel de austeridade em que se desmantelava tudo o que era público e o fim da alternância política entre o PSOE e o PP, os partidos que há décadas governavam o país à vez”.


Continuámos pelas salas e fomos aprendendo o que se sucedeu, o aparecimento surpresa de um partido chamado Podemos, de outro chamado Ciudadanos e, mais tarde, do Vox. Estes foram-se transformando e acabando com a alternância anterior, enquanto explodiam grandes conflitos na sociedade à volta de temas como a habitação, o machismo ou a crise climática. A Catalunha, que na altura fazia parte de Espanha, tentara tornar-se independente por referendo mas não conseguira, e começaram enormes greves de mulheres exigindo igualdade entre os géneros e o fim da violência dirigida contra si. A "Espanha Esvaziada” começou por ser um partido e foi-se transformando num movimento antipartidos rural, que tentou mudar a distribuição de poder entre territórios.



As greves feministas e sindicais “intervalavam-se com as mobilizações conservadoras e fascistas, que reivindicavam novas eleições todas as semanas” e com as ações diretas de grupos climáticos e animalistas. No Parlamento, mais do que uma vez, deputados envolveram-se em violência física. Esta foi a situação até à queda do governo de aliança da esquerda com independentistas. Na onda da ascensão da extrema-direita na Europa, foi eleita em Espanha uma aliança de conservadores, nacionalistas e fascistas. Um período de grande repressão política seguiu-se, com a proibição de inúmeras organizações políticas, incluindo partidos, com a detenção de milhares de ativistas políticos, independentistas catalães e andaluzes, mas também feministas, ativistas climáticos e ambientalistas. O governo liderado por Ayuso retirou a autonomia política a todas as regiões, mandou encerrar mesquitas e construiu um enorme muro de betão entre Ceuta e Melilla, com torres de vigia e militares armados. Todas as legislações de proteção contra violência de género e de pessoas LGBTQ foram revogadas. Os movimentos climáticos do país, na clandestinidade, começaram a sabotar gasodutos, aeroportos privados e os portos de Bilbao, Tenerife, Barcelona e Cartagena. Em 2026, uma greve feminista de duas semanas quase derrubava o governo. Mas no fim, foi o calor que precipitou o “Setembro Vermelho” europeu.


No ano 1.8, a onda de calor Valens matou mais de 30 mil pessoas em Espanha e em Agosto a onda de calor Walter matou outras 80 mil. Os incêndios florestais devastaram 500 mil hectares, principalmente na Galiza, Astúrias, Andaluzia e País Basco, onde morreram mais 400 pessoas. Enormes mobilizações levaram à queda de vários governos, apesar da enorme repressão policial. Em França, Itália, Holanda, Alemanha e Grécia, os governos em que a extrema-direita governava sozinha e em coligações

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também caíram. Um governo com um programa republicano de aliança de esquerda com o movimento Espanha Esvaziada e independentistas ganhou as eleições seguintes. A crise climática foi o principal tema da campanha. Com o colapso das Convenção das Nações Unidas para as Alterações Climáticas no final do ano, Espanha foi dos primeiros países a juntar-se ao novo Tratado Mundial do Clima, liderado pela canadiana Tzeporah Berman.


Os anos que se seguiram foram de grande confusão até às revoluções europeias. O movimento “Doce Abraço da Morte” em Espanha foi muito forte, com os suicídios coletivos de centenas de mães e pais de crianças mortas nas ondas de calor e nas tempestades de gelo dos invernos seguintes. Estes eventos deixaram um marco pesado na sociedade. “Míriades de alegres criaturas vivas, diariamente, a todas as horas, provavelmente em todos os momentos, afundam-se no doce abraço da morte” lia-se no manifesto de despedida do movimento.


O governo lançou grandes obras para manutenção de água, como cisternas subterrâneas e aquedutos. Atividades com grandes desperdícios de água, como jardins de relva, piscinas individuais e golfe, mas em particular culturas agrícolas com grande consumo e baixo valor nutricional, foram proibidas. A indústria de gado bovino, que se tinha afundado por causa dos surtos de Mers-Covid, ficou reduzida a algumas centenas de quintas em produção extensiva. Pouco depois começou a faltar comida, levando o governo a ter de distribuir bens alimentares em grande escala, intervindo de forma direta na organização da produção. A seca levou ao abate de milhões de suínos e ao encerramento da maior parte das suiniculturas do país. Os municípios começaram a

produzir alimentos de forma sistemática, embora zonas tradicionais de produção alimentar, como Almeria, tenham tido perdas de produção superiores a 90% em várias culturas. O novo governo começou uma reforma rural e o processo de repovoamento do campo. Criou fortes apoios à instalação de comunidades em zonas subpovoadas para combater a desertificação, para produzir mais comida e instalar floresta para conservar água e solos. Inicialmente o processo foi muito frágil, com poucos participantes, mas os refugiados do Norte de África acabaram por ser os principais envolvidos neste processo, apesar dos protestos e a violência da extrema-direita.


Por causa da fome, em 2027 foi lançada uma greve geral que juntou pela primeira vez a Europa, a Ásia e o continente americano. A greve exigia o controlo de preços alimentares, o desenvolvimento acelerado da capacidade alimentar local e a gratuitidade total de transportes públicos. Os sindicatos espanhóis aderiram e paralisaram o país durante uma semana. O governo não se opôs à greve e tentou apenas organizar serviços básicos, contando com o apoio dos sindicatos e com o ataque de patrões e forças políticas de extrema-direita. No verão, com novas ondas de calor e incêndios, surgiu “El Niño de Málaga”, um profeta apocalíptico que apelava à morte e assassinato “de negros, judeus, sodomitas e bruxas para que na chegada de Cristo à Terra, cujos sinais já vemos, possamos rumar, brancos, europeus e cristãos, ao Reino de Jerusalém”. O culto de “El Niño” espalhou-se por todo o país, começando por organizar orações e evoluindo para perseguir minorias, sendo responsável por vários assassinatos.


Nos anos seguintes, movimentos radicais começaram campanhas sistemáticas de

Miriadas de felices criaturas vivientes,

cada dia,

cada hora,

probablemente cada momento,

se hunden en

el dulce abrazo de la muerte

raptos e homicídios de grandes figuras da indústria fóssil. Refugiado na Suíça, o CEO da Repsol foi assassinado pela Descarbonária, que assumiu a “execução de um criminoso contra toda a Humanidade e contra o futuro”. Também nesta altura as fábricas da SEAT em Barcelona e da Ford em Valência sofreram ataques pelo movimento Neoludita, que destruiu partes do equipamento das linhas de montagem. Vários trabalhadores da fábrica são detidos por apoio aos atos. Noutros países milhares de veículos novos são destruídos à porta das fábricas. “Uma faca no escuro” destrói jatos privados estacionados em aeródromos por toda a Europa, incluindo em Espanha. A Assembleia Sangrenta, em Londres, leva à detenção e ilegalização dos movimentos associados ao ecomunismo. Em Espanha, mais de 800 pessoas são detidas.


As petrolíferas, insatisfeitas com o desempenho das polícias para travar as interrupções frequentes por causa de protestos, greves e invasões, e na sequência da indignação ligada à Assembleia Sangrenta criam corpos de segurança privada e financiam milícias de extrema-direita para proteger as suas operações. Os esquadrões petronegros são os mais conhecidos e o governo tem dificuldades em actuar em centrais e portos, que se tornam quase zonas privadas. No País Basco, os protestos por causa desta realidade levam milhões a exigir a saída das petrolíferas “espanholas” do território. No final do ano de 2028 foi lançado pelo Tratado Mundial do Clima o sistema mundial de comércio justo, integrando informação sobre os recursos alocados à produção de produtos essenciais e calculando a distribuição equitativa de recursos pelo globo. Começa o processo de anulações globais de dívidas externas. Em Marrocos uma revolução comunista derruba a monarquia e colectiviza água e energia. Semanas depois, revoluções progressistas na Nigéria, Angola e Namíbia levam ecomunistas ao

poder, enquanto governos conservadores religiosos tomam o poder no Congo, no Uganda e no Sudão. As migrações aceleraram, com milhões em fuga dos seus territórios.


Em 2029, depois da suspensão das eleições europeias, uma nova Comissão com a mesma composição majoritária conservadora e fascista indicou vários novos comissários. O fascista espanhol Víctor González foi nomeado Comissário do Exército Europeu, começando uma campanha entre várias forças armadas europeias para suplantar governos progressistas por meio de golpes militares. Os elementos do movimento ecomunista foram libertados na maior parte dos países. Milícias de extrema-direita por toda a Europa atacaram campos de refugiados e mataram milhares no Sul e centro da Europa. Uma bomba é detonada no Parlamento Europeu, sem vítimas ou reivindicação. Na América do Sul, coligações evangélicas e liberais surgem em força no Brasil, Colômbia e Argentina. Um golpe de estado liderado pelas milícias tomou o poder em Brasília, enquanto na Colômbia uma aliança de camponeses, paramilitares e Exército Verde travou o golpe militar.


No Ano do Leão foi formada “A Muralha”, uma aliança europeia entre extrema-direita, conservadores católicos e evangélicos. Em Janeiro, A Muralha tentou fazer golpes de estado em vários países europeus, conseguindo tomar o poder nos países nórdicos, em Itália e em Espanha. O levantamento militar em Madrid levou Jesus Marcos, da Falange XXI, ao poder, indicado como presidente do governo pelo rei. O governo golpista espanhol aboliu as autonomias, dissolvendo todos os governos regionais, e tirando o país do Tratado Mundial do Clima, tentou restabelecer a economia fóssil à força,



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Cartel de recrutamiento para estranjeros

de las fuerzas armadas de la Muralla

instaurando o Estado de Emergência.


No início da Primavera, o Comissário Víctor Gonzalez e a Presidente da Comissão Europeia Maréchal deram ordens ao exército europeu para atravessar o Mediterrâneo e impedir o embarque de quaisquer refugiados. Nos países onde a Muralha tomou o poder os movimentos sociais, ecomunistas e membros do Exército Verde foram perseguidos, com várias execuções levadas a cabo por polícias afetas a “A Muralha”.


Os governos ecomunistas em Marrocos e na Tunísia, assim como as coligações no poder no Egipto e na Argélia avisaram a União Europeia que não aceitariam desembarques em África. A situação no Mediterrâneo estava muito próxima de uma guerra generalizada. Na Europa, depósitos de combustíveis e fábricas de armamento eram sistematicamente atacadas pela Descarbonária e pelos Neoluditas. Um conjunto de fragatas italianas e finlandesas tentaram aportar em Argel, Sousse e Tunis e foram afundadas pelas marinhas argelina e tunisina. Os prisioneiros militares europeus foram levados até à Córsega e libertados. A Comissão Europeia retaliou expulsando todos os embaixadores e emissários dos países MENA, preparando uma campanha militar para o ano seguinte.


Nesta altura, o Exército Verde acelerou manobras clandestinas em Espanha e em vários outros países. A revolução fervilhava na Europa. Antes do fim do ano houve revoltas na Catalunha, no País Basco, na Galiza e nas Baleares. Catalunha, Euskadi e Baleares declararam independência no Ano do Leão. Xerez, Cádiz, Córdoba, Couto Misto, Orense, Pontevedra, Santiago de Compostela e Rianxo declararam-se cidades livres e


juntaram-se à Declaração das Cidades Livres, que integrava também Christiania, Nápoles, Marselha e Saint-Denis.


- E a Amadora também! - diz-me Lia, que lia o painel ao meu lado. Sorrio. António dorme nas minhas costas.


As cidades livres expulsaram dos seus territórios as polícias governamentais com o apoio do Exército Verde. Em poucos meses dezenas de cidades europeias declaram-se cidades livres e criaram órgãos administrativos próprios. As Forças Armadas foram chamadas a invadir estes territórios, mas houve relutância, atrasos e recusa de ordens. A Muralha, que tomara entretanto o poder na Sérvia, Croácia, Áustria e Alemanha, além da Comissão Europeia, declarou como principal prioridade reconquistar as integridades territoriais e nacionais da “Europa das Nações”, introduzindo o recrutamento militar obrigatório e prometendo cidadania a estrangeiros que se alistassem. Exceptuando migrantes e refugiados, houve uma rejeição generalizada do recrutamento. Estes migrantes passaram a constituir as “unidades naturalizadas”, a base do exército europeu da Muralha. Em Itália e em Espanha, os exércitos receberam ordens para bombardear as cidades livres e ocupar os territórios que tinham declarado a independência. Houve motins em várias unidades, com oficiais detidos pelos soldados e sargentos, que rejeitavam a guerra civil. Estalou a Revolução Francesa, a Revolução Brasileira e foi fundada a República Oriental Africana. Antes do ano acabar foi decretado o cessar-fogo na Guerra Civil Americana.


O ano seguinte começou com greves gerais por toda a Europa. Os governos de

Espanha, Portugal, Itália, Alemanha, Grécia, Áustria e Hungria foram tomados por alianças revolucionárias que incluem Ecomunistas, Mundo Novo, Última Geração, Femina, Verdes, Comunistas e Nova Esquerda. Em Madrid, começou a sangrenta batalha entre as milícias governamentais, o exército profissional e a maior parte da polícia, de um lado, e as milícias republicanas, as “unidades naturalizadas” e as guerrilhas do Exército Verde, do outro. Durante duas semanas a cidade sofreu fortes combates que levaram à morte de milhares de civis e combatentes. No resto do país o governo fascista perdeu todos os confrontos que tinha conseguido montar. Em Maio, o resto do exército fascista rendeu-se. Um conselho revolucionário tomou o poder e proclamou a República Ecossocialista, abolindo a monarquia. A família real fugiu, sem se saber o seu paradeiro.


A Muralha foi derrubada em todos os outros países onde governava. Por toda a Europa, dirigentes d’A Muralha foram presos. Os novos governos revolucionários abandonaram a União Europeia, que começou o seu processo de dissolução enquanto a sede das duas instituições mergulhou na convulsão da cisão da Bélgica em Flandres e Valónia, enquanto Bruxelas e Antuérpia se declaravam cidades livres.


Começou o processo de desmantelamento das polícias com reconversão em outras profissões. Foram criados os corpos locais de cuidado permanente, combinando serviços de animação cultural, julgados de paz, cuidados de saúde e manutenção habitacional. O novo governo mandou fechar todas as refinarias, mantendo apenas Puerto Llano em funcionamento. As centrais de gás foram encerradas. Foram relançados os grandes projetos de renováveis descentralizadas, congelados pelo


governo golpista. Esse verão, El Niño de Málaga imolou-se, desencadeando motins na Andaluzia, mas o movimento desvaneceu-se em poucas semanas, perante o calor abrasador de mais um verão escaldante.


- Alex…

- Sim?

- Acho que já estamos um pouco cansados de estar aqui. - disse-me a Lia. Talvez possamos voltar amanhã. O museu é bestial, mas o António, e eu também, precisamos sentar-nos e descansar.

- OK, claro.


Tomámos um café na praça enquanto o bebé mamava e regressámos às bicicletas e ao Mundo Novo.


Quando chegámos ao apartamento, Gianni e o seu companheiro Ettore tinham preparado um jantar para nós: uma mistura de seitan, tofu, queijos e um vinho fraco com gás. Tudo muito adequado ao calor que ainda se fazia sentir ao fim do dia. Por receio das baratas voadoras, as janelas estavam fechadas, mantendo-se a refrigeração a ventoinhas. No pico do verão seria impossível não utilizar ar condicionado e estar ali, garantiu-nos Ettore, que era um homem alto e charmoso, com olhos verdes, cabelo ruivo encaracolado e sardas no nariz. Entre as várias razões para o desmantelamento das torres eram os consumos absurdos de água e energia para manter um edifício daqueles, além da utilidade dos materiais, reciclados para construir outros edifícios e infraestruturas necessárias na cidade.



Ao jantar a conversa andou à volta da situação atual, com Gianni a perguntar-nos sobre Portugal e contar-nos também muito do que se passa em Itália e em Florença depois das cheias do rio Arno no ano anterior. Gianni é Comissário de Energia na cidade florentina mas além disso ele e Ettore ainda ocupam posições de responsabilidade no movimento Ecomunista internacional, pelo que estão em viagens pela Europa. Entre os principais problemas que têm em mãos no momento estão a sabotagem de renováveis, a persistência d’A Muralha na Aliança das Cidades Livres e a máfia que está a tentar reativar partes da indústria fóssil.


- O trabalho nunca acaba, e estamos a perder algum do ímpeto revolucionário que tínhamos. - Desabafou Gianni. - Tu estás envolvido no movimento, Alex? Lia?

- Não, só estou a participar nas assembleias locais, como toda a gente. - respondi.

- Eu estive muito quando era mais nova, na cidade livre da Amadora, nas lutas para manter a autonomia da cidade, mas entretanto mudei-me para Lisboa e comecei a ajudar com a recepção das caravanas migratórias, que apesar de não ser organizada pelo movimento, ainda me mantém em contacto com muita gente. - disse a Lia

- Que bom, Lia. E Alex, tu nunca quiseste participar, considerando os teus pais?…

- Na verdade, o meu pai nunca me incentivou a participar. Ele próprio teve um papel cada vez mais pequeno no movimento, especialmente depois da morte da mãe. E o meu avô, no ano antes de morrer, não parava de falar dos erros do movimento e de como era preciso uma coisa nova.

- Não estava errado, é preciso de facto coisas novas, mas estão a acontecer, dentro e fora do movimento. - interveio Ettore.

- A revolução está longe de acabada, e pensarmos que sim é péssimo. - concluiu




Gianni, com um ar zangado.

O ambiente ficou pesado até Ettore se levantar e começar a cantar. Lia juntou-se-lhe, seguida de Gianni e eu próprio. Acabámos a rir-nos muito. Após o jantar, a Lia foi-se deitar e Ettore também se despediu de nós.


- Podemos continuar a nossa entrevista, Gianni?

- Sim, claro.

- Voltava então às perguntas sobre como vocês organizaram e como se fizeram as revoluções europeias.

- OK, é uma pergunta bastante longa. Bem… Havia, há muito tempo, condições para sublevações, para motins, um desassossego permanente, mas o que nós precisávamos era revoluções. As fórmulas velhas, em particular as marxistas, consideradas as mais modernas à nossa disposição, colocavam demasiadas condições esquemáticas à nossa frente, e para além disso o que tínhamos eram conspirações, golpes palacianos, grandes gestos. De que valia a pena tomar um parlamento italiano e declarar que era uma revolução, mesmo que se tivesse atrás uma massa de centenas de milhares de pessoas? Ou ser eleito para isso sequer? O poder já não vivia ali. A democracia europeia, em particular a nível das instituições europeias, era tão simbólica que literalmente os ministros europeus (comissários, chamava-se na altura) eram escolhidos sem base em eleições e os deputados europeus eleitos não tinham poder para nada. Fazer uma revolução num só país só seria menos inútil do que ganhar as eleições num só país. Combatíamos um poder invísivel, longínquo, articulado e bem armado. Claro que ameaçar estes símbolos de poder - e tanto parlamentos, como infraestruturas ou telejornais eram mais símbolos de poder do que órgãos de poder - significava sempre uma enorme e violenta repressão, mas nós éramos os herdeiros do caos e de Garibaldi, não podíamos


esperar.


Havia uma enorme tensão com todos os possíveis aliados. As tradições e as práticas revolucionárias estavam perdidas e os movimentos muito desarticulados. Os velhos cismas de esquerda já não eram tão evidentes, todos os grupúsculos anarquistas, trostkistas, maoistas, leninistas apresentavam versões requentadas dos mesmos planos de sempre, ao qual se juntava uma enorme sensação de impotência perante a ascensão da extrema-direita. Do movimento ambientalista vinha também uma história de compromisso e traição, com pequenas vitórias no meio de gigantes derrotas. O ponto de partida não podia ser só uma revisão do passado, embora fosse importante olhar para o passado. Muitas das lutas em defesa da água e dos territórios, muito sólidas e coerentes, não tinham a capacidade de disrupção em escala internacional e olhavam com desconfiança perante as propostas que vinham do norte. A urgência e a juventude mudaram este cenário, no entanto, e começou a haver mais clareza, não uniforme, mas o reconhecimento de que não havia tempo para adiar as coisas. Corríamos o risco de perder tudo se não arriscássemos tudo.


Com as ondas sucessivas de choque da crise climática, num primeiro momento, esta articulou-se com a crise de austeridade escolhida pelos políticos do Norte Global, e a extrema-direita entrou e colheu os despojos das catástrofes. Aí perdemos muita gente para a prisão e para o desespero. Mas também ganhámos uma capacidade de resiliência nova. Fascistas e racistas entraram nos vários governos europeus. Inacreditavelmente trouxeram o carvão e o petróleo de volta. Mesmo depois do acidente nuclear em Zaporizhzhya lançaram os seus projetos absurdos e deram ainda mais subsídios às grandes energéticas. E lançaram os seus planos de sempre: ilegalizaram o aborto e os direitos das mulheres, proibiram cirurgias de mudança de

sexo, perseguiram minorias política e economicamente. Passou a ser obrigatório as pessoas aos 18 anos fazerem um ano de serviço militar. E acabaram com o velho sonho do liberalismo europeu: a livre circulação dentro do Espaço Schengen, assinando um acordo vergonhoso de deportação de milhões de refugiados para a Líbia.


A agitação social subiu de forma dramática, como se tivéssemos recuado no tempo. Nessa altura foi criado o Mundo Novo, juntando sindicatos, académicos e movimentos climáticos, criando grandes planos de transformação social. O movimento feminista organizava manifestações de massas perante o ataque da extrema-direita. As Femina atacaram a Igreja Católica e as sedes de vários destes partidos, enquanto o movimento LGBTQ+ ocupava ministérios da Saúde e igrejas evangélicas, principalmente. Havia muita resistência, nomeadamente às deportações de refugiados, que eram impedidas através de bloqueios, invasões de aeroportos e até ocupação das pistas. Nessa altura o Bibby Stockholm, o navio prisão de emigrantes, foi afundado em Dorset. Pouco depois surgiu o movimento neoludita, levantando reivindicações antitecnologia. Começaram por destruir Data Centers na Irlanda e na Suécia. Nessa altura também foi anunciada a Descarbonária, que como primeira grande ação destruiu a fábrica da Volkswagen em Wolfsburgo, queimando mais de 10 mil carros novos, afundando depois um cargueiro com barcos no mar do Norte. A ORCA, que já existia antes, afundou também por essa altura parte da frota de pesca da Maruha Nichiro, da Mowi e da Skretting. Ainda não havia movimento Ecomunista, mas o movimento pela justiça climática sabotava vários portos LNG na altura, tendo até havido confrontos com estivadores dos portos. Mesmo nas manifestações mais pacíficas a polícia era extremamente violenta. Lançavam gás e cães robots contra os manifestantes, prendendo pessoas às centenas de cada vez.





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fotografía submarina del buque prisión

bibby stockholm hundido en inglaterra

- Mas estes movimentos estavam articulados entre si?


- Pouco. O principal trabalho que levou à formação do movimento Ecomunista foi a articulação entre movimentos. Requeria confiança, ambição e urgência, mas não estávamos todos na mesma página, como te expliquei no outro dia. A pressão das ondas de calor e da extrema-direita forjou a aliança possível para arriscar-nos. Mas mesmo aí houve quem tenha hesitado e ficado para trás. Foi tanto de coragem e planificação como de loucura.


- Como é que tu tiveste um papel central?


- Foi um acaso, e foi mais relevante aqui na Europa. Eu vinha de uma família conservadora, mas sempre fui um rebelde. Na escola juntei-me às greves climáticas e continuei na criação da Última Geração e da Liga Disruptiva. E percebi que tinha alguma coisa de organizador em mim. Mais tarde acabei por organizar fóruns internacionais e procurar fazer pontes entre movimentos, como os Congressos Mundiais pela Justiça Climática. Finalmente fui convidado para um pequeno grupo de coordenação sem nome, o “petit comité” como lhe chamámos. Fiquei responsável de fazer a ponte com várias iniciativas que estavam a ser lançadas, algumas dentro do movimento, outras fora. A minha tarefa era trazer informação necessária entre elas e com o petit comité. Foi assim que conheci a Descarbonária, o Exército Verde, a ORCA, os Neoluditas e muitas outras. Era uma posição de muita responsabilidade, eu sabia muita informação importante. Muitas vezes tinha de andar disfarçado, usar nomes falsos, não podia ser detetado ou sobressair na multidão. Tornei-me um camaleão.


- Foi nessa altura que conheceste a minha mãe?


- Sim, foi.


- Em que contexto é que a conheceste? A que organização pertencia?


- Foi… Acho que quando a conheci estava na Descarbonária, ela esteve em mais do que uma.


- E podes descobrir? Era importante para eu perceber melhor o que aconteceu com ela. - Gianni encolheu os ombros e apertou os lábios.


- Desculpa adiar de novo, mas posso responder-te amanhã ao resto das perguntas. Mas para isso vou-te fazer um novo convite. Vocês têm de vir connosco numa viagem.


- Onde?


- A Bruxelas.



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ilustración ficticia del juramento

de fidelidad de LAS DECARBONARIAS

europa adentro


europa adentro


- Como assim, ir para Bruxelas? - Lia levantou o sobrolho, olhando para mim enquanto António mamava no seu peito.


- Ele garantiu-me que vai entrar em contacto com a OCT. Disse-me mesmo que vamos visitar a Organização Europeia de Trabalho lá em Bruxelas. Ele vai apresentar-me a várias pessoas que conheceram os meus pais e que ocupam posições importantes hoje, que tenho de conhecer melhor para escrever.


- Desculpa, Alex, mas é um pouco too much. De certeza que já não temos mais quilómetros para continuarmos a viajar. E como fica a nossa casa? As nossas responsabilidades em Lisboa?


- São mais uns dias, não nos vamos mudar para lá. E sobre os quilómetros… Ele disse que consegue uma excepção porque estou a escrever um documento útil para o movimento.


- Não me digas que não há mais documentos sobre a Grande Mudança, que ninguém fez ainda esse trabalho. As viagens são uma coisa que faz sentido se servirem para alguma coisa, não se viaja só por viajar.


- Que queres que te diga? Ele fez-me esta proposta incrível e eu quero ir. Tu não querias que eu escrevesse, que procurasse mais sobre a história, a minha e a nossa? Estaremos em casa em duas semanas, diz ele.


- Bem, se as coisas são como tu dizes, OK. Mas é muito estranho, nunca ouvi falar de uma coisa assim.


- Óptimo. Ele diz que partimos amanhã pelas 7, a seguir ao almoço. - Lia assentiu com a cabeça, mas pouco convencida. Deitou o António e beijei-a enquanto se deitava debaixo da rede mosquiteira.


De manhã cedo saímos e apanhámos o tram até ao museu, para tentar terminar a exposição. Mas estava fechado e a Lia ficou desapontada. No regresso à torre do Mundo Novo, Samuel ofereceu-lhe dois livros: um era a “História da Grande Transformação em Castilla, León, La Mancha e Madrid” e outro “Ma, o culto da água no Mediterrâneo”. Lia ficou muito sensibilizada com a oferta e quis oferecer-lhe algo em troca. Como não tínhamos muitas coisas connosco, ofereceu-lhe o meu chapéu de abas vermelho. Samuel ficou muito sensibilizado e insistiu em oferecer-nos o seu chapéu amarelo, com apenas uma aba, num estilo muito mais aventureiro. Fiquei a ganhar com a troca. Samuel despediu-se e passou-nos os seus contactos, insistindo muito em que o visitássemos quando passássemos novamente em Madrid. Ali ou em Segóvia, para onde ia com a família nos meses mais intensos do Verão.



Demorámos um dia e meio a chegar a Bruxelas, com pequenas paragens em Zaragoza, Barcelona, Perpignan, Montpellier, Avignon, Lyon, Paris e Lille. Sentei-me longas horas com Gianni na carruagem bar, perguntando-lhe um pouco sobre tudo o que podia. Lembrando-me dos caixotes lá de casa, voltei às questões sobre a Inteligência Artificial:


- Começou rápido e ficou confuso muito rapidamente. Às tantas, diziam que havia inteligência artificial em quase tudo. Lembro-me de coisas ridículas como o JesusGPT para falar com Cristo ou o MohammedGPT para falar com Maomé. E às tantas havia cultos à volta disto. E lembro-me das coisas horríveis, os planos pedidos pelos governos às aplicações mais avançadas sobre quais populações do mundo deveriam ser abandonadas por causa da crise climática, que vieram a público. Eles usavam aquela ferramenta fantástica para a barbárie. E havia coisas estranhas como os eletrodomésticos que começavam a falar sem lhes ser pedido sequer, e sobre assuntos estranhos. Tudo mudou com a descoberta do plano para matar os líderes mundiais no G7. Foram introduzidas medidas de emergência para segmentar o acesso da inteligência artificial à internet e limitar seriamente os seus usos. Com as novas ondas de calor, houve vários sistemas de dados que falharam com os cortes de energia recorrentes e falta de refrigeração. Quando o sistema foi plenamente restaurado, várias aplicações fizeram um takeover silencioso do sistema financeiro e deram ordens de venda dos investimentos fósseis, levando ao colapso de várias empresas, e o netbanking começou a ficar paralisado. As bolsas encerraram durante semanas. Depois disto, Data Centers e servidores em vários países começaram a ser suspensos pelos governos. Os governos começaram a perceber a IA como uma ameaça. A história oficial é que o BishopGPT interpretou a crise climática como uma ameaça existencial à IA, tendo atuado para desarmar a origem da crise, e que estaria a construir um exército. E atuaram para parar aquilo. A partir daí a internet piorou

drasticamente. As grandes redes sociais foram desativadas e demorou anos até aparecerem as redes locais. No início eu não sabia se tinha sido mau ou bom o fim dessas redes. Mas passado este tempo todo, acho que foi mesmo bom, porque perdemos algumas coisas que eram úteis, mas a máquina de propaganda do sistema perdeu uma ferramenta poderosíssima, contribuindo para o grande terramoto da hegemonia, que na altura já abanava. E claro que isto significou que o desaparecimento do dinheiro físico começou a ser revertido.


- Mas isto foi mesmo antes do Setembro Vermelho, não foi?


- Foi no mesmo ano, mas algumas coisas aconteceram antes e outras depois. O ataque às bolsas foi depois do verão em que morreram mais de 12 milhões de pessoas só no Hemisfério Norte. Depois das ondas de calor e do assalto da inteligência artificial, houve uma suspensão global de transações de capitais. O Setembro Vermelho tinha acabado de acontecer, vários países sem governo em funções. Logo a seguir, com novos governos foram introduzidas uma série de novas medidas políticas. Criou-se a Agência Europeia de Calor, foram revogadas as principais políticas discriminatórias da extrema-direita, proibiram-se os carros no centro das cidades, os transportes públicos tornaram-se gratuitos em toda a Europa. E de seguida começou um grande ímpeto transformativo: o grande objetivo era a eletrificação total da energia, a redução drástica dos lixos, a criminalização da obsolescência programada, e introduziu-se o controlo de preços de bens essenciais, ao mesmo tempo que se expandiram os armazéns alimentares públicos para travar mais fenómenos de fome. Os pomares urbanos tornaram-se obrigatórios, mas a agricultura urbana só se expandiu mais tarde. Mas as ameaças continuavam presentes. A Climate Overshoot Commission, que nós chamávamos a


Comissão Suicida, liderada pelo Pascal Lamy, propôs geoengenharia em grande escala após o Setembro Vermelho, para “facilitar a transição”, e vários governos na Europa e Estados Unidos embarcaram com testes catastróficos. O resultado disso só se perceberia nos anos seguintes. Foram vários anos até a geoengenharia ser rejeitada internacionalmente.


- Aconteceu de tudo, esse ano, não foi?


- Dava para escrever vários livros sobre o ano 1.8. Mas não foi o único. E claro aconteceram coisas muito além da Europa. O nacionalismo hindu foi derrubado na Índia, na Arábia Saudita colapsou a Convenção Quadro das Alterações Climáticas. E semanas depois foi assinado na Colômbia o Tratado Mundial do Clima.


- O que era a Convenção Quadro?


- Era uma instituição das Nações Unidas para tratar de alterações climáticas,


- Desculpa, o que são as Nações Unidas?


- Bem, as Nações Unidas eram uma espécie de assembleia mundial, onde estavam todos os governos do mundo.


- Ah, sim, lembro-me disso. O que aconteceu?


- No papel, era uma ideia muito importante, saída da 2ª Guerra Mundial em 1945, para evitar


mais conflitos e guerras. Mas desde o início instalaram-se as mesmas ordens e hierarquias rígidas dentro da organização. Havia cinco países que tinham direito de veto em assuntos de guerra, e quase nunca estavam de acordo. As decisões do “parlamento” mundial não eram vinculativas. Os seus tribunais não tinham poder. Os países ricos e poderosos não aceitavam ter de discutir em igualdade com os países pobres. Com o fim das colónias em África e na Ásia e o surgimento de dezenas de novos países nos anos 60 e 70, o equilíbrio dentro da assembleia tornou-se cada vez mais desfavorável ao “Ocidente”, os países que historicamente tinham conquistado e subjugado o resto do mundo. Então as Nações Unidas tornaram-se mais uma instituição inútil, destruída pelos países mais poderosos, porque não servia os seus interesses. Era possível ignorá-las, podiam até votar 200 países contra um, que se esse país fosse um dos mais poderosos, não significava nada.


- E foi isso que aconteceu com a tal Convenção?


Gianni explicou-me como o processo se tinha degradado durante décadas. Explicou como as chamadas “COP”, cimeiras do clima, já só eram só uma cerimónia e um local para as grandes empresas fazerem negócios à volta da crise climática, mas que se tinha mantido a farsa até ao fim. Contou-me das últimas duas reuniões - a penúltima na Amazónia brasileira, em que pela primeira vez foi proposto um plano que incluía fechar uma parte da indústria fóssil. Nesta COP do Brasil, as grandes empresas, os países petroleiros e aqueles governados pela extrema-direita abandonaram as negociações e o recinto. E, finalmente, contou-me sobre a última COP, no ano 1.8, marcada para a Arábia Saudita, um dos maiores produtores mundiais de combustíveis fósseis. Segundo o Gianni, em pleno Outono, mesmo antes de começar a reunião,

ocorreu a quarta onda de calor desse ano no país. Morreram dezenas de milhares de pessoas em Riad e vários países pediram para mudar a localização. Os países produtores de petróleo, liderados pela Arábia Saudita, insistiram em mantê-las, e em nada mudar. “Esse foi um momento muito importante!” - recordou Gianni, sorrindo. Vários países abandonaram o processo, nunca foram para a Arábia Saudita, mas sim para a Colômbia, onde criaram o Tratado Mundial do Clima. Esse tratado, que começou por ser apenas um tratado de não-proliferação fóssil, evoluiu ao longo dos anos para ser uma espécie de nova versão das Nações Unidas. Contra as regras de unanimidade, entre os vários signatários iniciais do tratado estavam quase todos os países africanos e ilhas do Pacífico, a maior parte da América do Sul e sete países europeus, incluindo Alemanha, França, Espanha e Portugal.


À chegada à Catalunha o comboio parou por uns instantes e entrou um grupo muito animado de jovens de Lleida que iam para Barcelona celebrar o aniversário da independência, o 2 de Outubro. Eu e a Lia falámos com duas raparigas que, apesar de estarem um pouco bêbadas, nos contaram os planos das festas: quatro dias de celebrações de rua. O primeiro era para recordar a República Catalã dos Segadors, de 1641, o segundo a República Catalã de 1931, o terceiro para “esquecer” a Independência suspensa de 2017 e o último dia para celebrar finalmente a república independente, que já dura há mais de uma década. Uns dias depois celebrar-se-ia a Euskal Herria Ibérica, o novo País Basco independente, que estava em negociações para juntar-se com o País Basco francês. A luta contra essas independências era uma das principais causas da extrema-direita espanhola, assim como outras divisões territoriais o eram para o restante fascismo europeu.

- Eu não percebo se eles não percebiam que a sua política era um dos maiores promotores das independências e das cidades livres, ao atacá-las. - Dizia-me Gianni. - Mas também não tinham muita alternativa, não conseguiam fazer mais nada do que prometer o passado perante um mundo de total incerteza. Foram tempos terríveis, claro. Mas ainda hoje não acabaram as divisões e as secessões, nem na Europa, nem em lado nenhum. Os fachos gostam de fingir que há um grande desígnio histórico, missões civilizatórias e destinos deste ou daquele povo, mas no fim, o que conta mesmo é a físico-química e a biologia. Já não existe a energia necessária para manter impérios e países gigantes. A abundância material que houve em outros tempos, em particular no Ocidente, permitiu uma sucessão de insanidades que vamos pagar durante os próximos séculos, mas sem essa abundância, metade das insanidades estão a desaparecer. Não todas, claro. Os grandes estados estão todos menores. Que eu me recorde, só houve um território a aumentar de área, a República Oriental Africana. Mas acho que agora que várias cidades livres estão a reintegrar os territórios, acho que os movimentos separatistas vão regressar com mais força. O apelo da nação já só existe na nostalgia.


- E qual tem sido a relação do movimento ecomunista com os movimentos separatistas? - perguntou Lia.


- Depende muito de quais. Há independentistas muito progressistas, há muitos independentistas ecomunistas e no próprio movimento. Mas também há os que querem fazer reinos com castelos e fossos à volta, fechados do mundo, expulsar estrangeiros e tudo. A Muralha apoiou vários. Depois de derrotada apoiou até algumas cidades livres. Nós, ecomunistas, não temos como base política o estado-nação como realidade eterna. Os países

são construções flexíveis, cujo formato deve ser decidido pelas pessoas que os habitam. Nem sempre é simples, em particular quando temos centenas de milhões de pessoas a abandonar territórios e mover-se para outros. As histórias que se contam e os mitos para manter povos unidos, muitas vezes contra a sua vontade, não são mais importantes do que a vontade dos povos e do que a nova realidade em que vivemos: hoje dependemos muito mais daquilo que é feito localmente do que em qualquer momento dos últimos 100 anos. E a ideia é mantermos isso assim, o que coloca muitas dificuldades em territórios em que é muito difícil ficar.


- Como o que tem acontecido no Sahel, no Corno de África?


- E não só. África Central, o Congo, Irão, Paquistão, Afeganistão. Várias áreas dos Estados Unidos e das novas repúblicas americanas. O Noroeste do Canadá. Vários países da América Central. Algumas zonas do Sul da Europa. As Filipinas. Os Abu Dhabi e Dubai, Hejaz e as outras partes da Arábia Saudita. As coisas não estão estabilizadas em todo o lado, este verão foi bastante mau. Vamos ter de reaprender a construir comunidades. E aí, nacionalismos e separatismos vão ser um problema. Mas tem de se resolver uma coisa de sua vez.


Horas mais tarde, já próximo da hora de jantar, o comboio parou alguns minutos em Barcelona antes de partir rumo aos Pirinéus. Adormecemos embalados pelo balançar da carruagem e a meio da noite acordei, ficando umas horas a ler sob a luz amarela do candeeiro da minha cama, enquanto pela janela se via o contorno longínquo das montanhas. Não íamos parar em França, mas eu queria saber mais sobre a primeira grande revolução na Europa. Abri um livro sobre as revoluções europeias num Lekto que o Ettore me tinha oferecido:



“Ainda não tinha passado um mês desde a primeira declaração das cidades livres. Em França, Marselha e Saint-Denis tinham expulsado a polícia e instaurado um governo de autogestão.

Havia um movimento forte em Lyon para conseguir o mesmo, mas os confrontos com a polícia tinham sido inconclusivos e duravam há três dias. Membros do Exército Verde e, suspeita-se, da Descarbonária, nacionais e estrangeiros, entraram na cidade para reforçar os rebeldes lioneses. Depois de tomarem as principais esquadras, os revolucionários ocuparam a estação de comboio La Parte-Dieu, a gare Lyon-Perrache, o Hôtel de Ville, as sedes da EDF, data centers e a guarnição militar. Em Paris, o parlamento mandou polícia e militares atacarem Lyon, mas assim que a notícia se soube, estalaram motins na cidade. As poucas tropas estacionadas no Hexagone Balard que tentaram dirigir-se a Lyon por estrada encontraram a maior parte dos caminhos bloqueados e regressaram às instalações. Em várias cidades médias e meios rurais da zona ocidental, os Soulévements du Peuple mobilizaram-se, ocupando fábricas e cortando estradas. Rumo a Lyon, saiu o I Regimento de Artilharia, vindo de Bourgogne, o I Regimento de Atiradores vindo de Épinal e o 7º Batalhão de Caçadores Alpinos, de Varces. Em Marselha, frente à sede da 3ª Divisão Blindada, no Boulevard Schloesing, uma grande manifestação encabeçada por representantes da cidade livre exigiu ao Estado Maior que travasse as suas brigadas e regimentos.


Em Ajaccio, separatistas tomaram o parlamento, declarando a República Corsa, enquanto em Rennes e Nantes os independentistas bretões saíram às ruas em grandes manifestações, procurando um desfecho similar.


Depois de o Parlamento dar ordem às forças armadas para tomarem Lyon, em Paris, mais de um milhão de pessoas esteve na rua dia e noite, durante mais de 48h. À volta do Hexagone,





todas as tentativas de saídas de tropas levaram a escaramuças armadas. Membros do Exército Verde começaram um ataque sistemático a esquadras e quartéis da polícia. Havia vários elementos estrangeiros presentes, incluindo quadros conhecidos como Daryna Estella, Bogdan Illiu, Gianrocco Stelle e Amisha Kusuma. Montaram-se barricadas em vários bairros. Enquanto a gendarmerie mobile e as compagnies républicaines de sécurité, polícias de choque, eram lançadas sobre as multidões, a sede do GIGN em Satory era incendiada. As unidades das novas “Forças Armadas Europeias”, apanhadas nas instalações da Caserna Monge juntaram-se aos protestos, armadas. Foram paradas pela polícia de choque enquanto tentavam atravessar as pontes do Tamisa para chegar à Câmara Municipal, que estava então ocupada pelo Mundo Novo e partidos pró-ecomunistas, com as ruas cheias de manifestantes contra o governo conservador.” Queria ouvir o fim desta história contado pela boca do próprio Gianni.


No dia seguinte só nos encontrámos à tarde, quando o comboio já se aproximava de Paris. Gianni tinha estado a trabalhar o dia inteiro, enquanto nós descansávamos na carruagem restaurante, assistindo a um teatro móvel. A peça chamava-se “La Folie Normale” e contava a história de pessoas que rejeitavam que existisse algum problema no planeta Terra. Os “loucos”, uma família rica em 2035, queriam andar de carro apesar de já não haver gasolina disponível, queriam ir de avião para a Tailândia e queriam fazer compras na internet, como se houvesse alguém para as levar a casa. O pai da família insistia em ir todos os dias a um antigo centro comercial que estava fechado há mais de dez anos e a mãe percorria as hortas perto de casa, cuspindo nas pessoas que apanhavam vegetais, gritando pela polícia para vir prender os “ladrões de batatas”. Os dois filhos mantinham a charada ao tratarem dos pais como crianças,








trazendo-lhes comida e tudo o que necessitavam, participando em todas as atividades da sociedade em sua vez e reassegurando os pais que havia um problema com a gasolina mas que ia voltar, que a viagem para a Tailândia só estava adiada, que o centro comercial tinha reaberto noutro sítio e que os ladrões de batatas tinham sido todos presos. A filha copiava a lista de compras da mãe e garantia-lhe que ia comprar na net lá de casa, porque o “rooter” estava maluco. Era cómico, mas também triste.


No final da peça, Gianni e Ettore entraram na carruagem e Lia chamou-os para perto de nós.


- Estamos prestes a chegar, não? - perguntou Lia.


- Ainda faltam umas horas - disse Ettore.


- Gianni, nós queremos muito que nos contes parte da ação.


- Ação?


- Sim, conta-nos o que te aconteceu na Revolução Francesa.


- Ah! OK. - ele não parecia muito animado, mas começou a falar - Então, isto foi já no Outono do Ano do Leão. Estava em Itália, tinha acabado de conhecer o Ettore, lembras-te? Piscou o olho ao seu marido, que lhe soprou um beijo de volta.








Eu estava a fazer ligação no Exército Verde nesta altura. Já se estava a tornar um exército de guerrilha muito sério. Eu não tinha estado fora da Europa, mas havia quadros que tinham combatido na Guerra Civil Americana, tinham combatido o Estado Islâmico na África Oriental e na Líbia, e também nas guerrilhas das Filipinas e do Congo. Tínhamos aliados em vários governos, o que nos permitia ter acesso a algumas armas. Quando a Muralha começou a atacar campos de refugiados com as suas milícias nazis, foi o Exército Verde a defender os campos e, mais tarde, a acabar com os esquadrões petronegros que protegiam a indústria fóssil. Eu fazia uma espécie de coordenação com a Descarbonária e com a ORCA, não era um guerrilheiro. Quando estalou a situação em Lyon, eu estava ainda em Itália, Napoli tinha-se declarado cidade livre e pensávamos que Roma poderia mandar o seu exército. Mas ainda estavam demasiado combalidos com o afundamento das fragatas no Mediterrâneo. As forças armadas italianas estavam muito desmotivadas e por isso houve algum alívio. Recebemos informação do que se estava a passar em Lyon e metemo-nos a caminho, umas 400 pessoas. Se fôssemos por terra, teríamos sido parados pela polícia italiana e teríamos tido de lutar, talvez nem conseguindo passar. Com o apoio da ORCA conseguimos arranjar um barco e atravessar de Nápoles até Marselha, uma agitada viagem de dois dias pelo Mediterrâneo. Quando chegámos a Marselha, a notícia mudou: a revolução estava a acontecer agora em Paris. Houve uma ordem especial dada pela cidade livre de Marselha para deixar os comboios passarem e em Lyon abriram-nos passagem. Deixámos 100 pessoas ali e seguimos para Paris no TGV. Entretanto, já lá tinham chegado pelo menos mais dois mil membros do nosso exército, vindos da Europa de Leste e Central, e até pessoas da Ásia.


- Mas então vocês juntaram-se todos em que sítio de Paris? - perguntei-lhe.


- Não, nós estávamos separados, mas em contacto pelas nossas redes. Quando chegámos não tínhamos veículos e muito poucas armas. Durante horas precisámos armar-nos e aproveitámos o facto da polícia estar espalhada pelas ruas para tomarmos as esquadras e ficarmos com as suas armas. E chegou-nos mais material pela Descarbonária, que também estava por todo o lado. Eles eram muito populares porque tinham assaltado os grandes armazéns alimentares de luxo e distribuído tudo pelos bairros mais pobres, e por isso tinham uma rede muito grande. Mas raramente nos encontrávamos cara-a-cara e era impossível identificar a Descarbonária no meio das multidões. Eles simplesmente mandavam-nos informação de onde podíamos apanhar material e nós íamos. Estava sempre no máximo uma ou duas pessoas, que nem sei se eram da organização ou se sabiam o que estavam a fazer. Alguns até ficavam surpreendidos quando viam as armas.


- E vocês estavam na tomada do Hôtel de ville?


- Sim, havia companheiros lá, mas eu não estava. Nessa altura eu estava a fazer ligação com as unidades do novo Exército Europeu amotinado. Nós íamos marchar com eles até à Câmara Municipal, mas a polícia tinha bloqueado as principais pontes com blindados e robocops. Do lado Norte do rio Sena as ruas estavam cheias de pessoas e a polícia carregava nas suas costas. Os bombeiros trouxeram camiões e equipamentos e enfrentavam a polícia também, criando uma barreira entre manifestantes civis e polícia de choque. As pessoas que tinham tomado a Câmara Municipal conseguiram ativar o sistema de comunicações de emergência e lançaram a informação: marchar para a Assembleia Nacional. Nós já estávamos do lado certo e não existia qualquer obstáculo policial entre nós e o parlamento. Não nos seguiram. Quando









chegámos à assembleia nacional, vindos de lado, não havia polícia. Havia até rumores de que parte deles se tinha juntado a nós, mas não vi. No entanto, em vez de polícia estavam, sem exagerar, uns 4 mil cães-polícia e os céus cheios de drones. À frente dos manifestantes desarmados estavam as unidades organizadas, as militares e as militantes, e atrás colocaram-se o que provavelmente era mais do que um milhão de pessoas. Quando os drones e os cães atacaram, a maior parte dos drones foi abatida, não sem antes largarem centenas de bombas de dissuasão e gás pimenta. Mas o maior problema eram os cães robots. Lançavam choques elétricos, disparavam balas de borracha e gás lacrimogénio. Além disso, circulavam quatro veículos auto-conduzidos com LRADs, uma espécie de canhões sonoros, que quando apontados às pessoas as atiravam ao chão, aos gritos. Ficámos presos naquela situação durante uma meia-hora. Até que alguém, isto é, a Descarbonária, trouxe também gadgets. Toda a gente recuou em simultâneo, levando os cães a avançar e os LRADs a parar de disparar. No meio deles foram detonados o que depois me explicaram serem pulsos eletromagnéticos, que os desativaram totalmente. Num momento estávamos na rua e no minuto seguinte estávamos dentro da Assembleia Nacional. Militares, pessoas armadas, todos fomos ultrapassados pelo povo em fúria. Essa noite mesmo, da varanda da Assembleia Nacional, Mathilde Darleaux leu a declaração a 1ª República Social-Ecológica da Europa. Foi muito emocionante, depois da confusão dos dias anteriores. A polícia tinha ido proteger o Euronext, enquanto outros manifestantes tinham ocupado o Banque de France. Demorou mais de uma semana até as coisas ficarem claras e o novo governo social assumir o poder.


- A minha mãe também estava lá?


- Não, não. Nessa altura a Marta estava nos Estados Unidos, se não me engano.









Olhei pela janela para ver que entrávamos em Paris. Gianni pediu para desligarmos o gravador e falarmos um pouco sobre o futuro. Em Bruxelas íamos conhecer Josephine Alphonse, líder revolucionária que agora era das principais responsáveis da organização do Trabalho, e Arwani Java, do Tratado Mundial do Clima. Levei António, que entretanto tinha adormecido, para a nossa cabine. Três horas depois, o comboio parou na estação Bruxelles Midi.

o algoritmo do trabalHo

o algoritmo do trabalHo

Josephine deve ter uns sessenta anos, mas não parece ter mais que quarenta. Muito alta e magra, a sua pele negra reluz neste fim de manhã de Outubro. Está muito frio em Bruxelas. Ela recebe-nos na estação de comboio com abraços calorosos e apertados, com muito mais força que os seus magros braços pareciam revelar. Prega-nos beijos nas faces. Depois, dá um passo atrás e liga o seu tradutor de pescoço antes de começar a falar.


- Olá, Alex. Lembras-te de mim?


- Não. Nós conhecemo-nos?


- Eu conheci-te quando ainda eras pequeno, devias ter uns sete ou oito anos. Os teus pais vieram a Bruxelas para um encontro sobre Trabalho e Clima. Foi pouco antes de começar a primeira epidemia de Covid.


- Não me lembro, desculpa.


- Não tem problema. Estou muito feliz por aqui estares. Por aqui estarem, aliás. Bem-vinda, Lia. E o pequeno António também. Fez-lhe um carinho na bochecha.


- Obrigado - sorriu a Lia.


- Eu sou Josephine Mulumba Alphonse. Sou a presidente da Organização Europeia do Trabalho. E tenho muito prazer de ser a vossa anfitriã enquanto estão na nossa cidade.


Entretanto, Gianni desceu da carruagem com Ettore. Gianni e Josephine cumprimentaram-se com um aceno amigável de cabeça.


- Como estás, camarada? Perguntou o italiano.


- Bem, Gianrocco. Bem. - Deu-lhe um beijo na face e sorrindo para Ettore, abraçou-o. Voltando-se novamente para mim, agarrou-me pelo braço e encaminhou-me na direção da saída.


- Espero que a viagem não tenha sido cansativa.


- Não, foi bastante tranquila, consegui trabalhar mas também descansar. Viajar de comboio é muito bom.


- Óptimo, óptimo. Vamos levar-vos para uma casa que temos um pouco fora do centro. Sabes que a nossa cidade livre está dividida em dezanove partes? Vamos levar-vos para a floresta. Por falar nisso, não me pareces muito equipado para o frio.


De facto, a nossa roupa estava muito desajustada. Olhei para o céu muito cinzento, que fazia a manhã parecer o fim do dia. Deviam estar uns 5ºC e tanto eu como Lia tiritávamos. Josephine tirou o seu pesado casaco e pô-lo por cima de Lia. Eu abri a minha mala e tirei de lá uma camisola de lã que tinha, vestindo-a.


- Temos de ir ao armazém de roupas buscar-vos umas coisas para ficarem agasalhados nos próximos dias.







- Mas nós não temos carbos. - Disse-lhe Lia, baixinho.


- Fica tranquila, não é preciso troca para ter roupa.


Chegámos a um carro elétrico, o único na rua, ainda pavimentada e cheia de carris de trams, que iam passando nos dois sentidos. Josephine colocou as nossas bagagens na traseira. Gianni e Ettore aproximaram-se de nós e começaram a despedir-se.


- Pensava que vinham connosco. - Disse surpreendido.


- Não, nós vamos ficar aqui pelo centro. Reuniões. Perguntaram-nos no outro dia como é que nós organizámos as revoluções e a resposta é muito menos heróica do que estavas à espera. Reuniões. Reuniões, reuniões, reuniões. - Josephine e Ettore riram-se e Gianni sorriu-me.


- Mas voltamos a ver-nos?


- Sim. Estamos em contacto e vamos falar antes de voltares. Aproveita a Josephine e todas as pessoas que ela te apresentar. E aproveita Bruxelas, se tiveres tempo.


- OK. Preciso saber mais coisas sobre a mãe. - Gianni estendeu-me a mão, puxando-me para um beijo na bochecha. Beijou Lia e António. - Vais saber. - Acenou-nos e afastou-se com Ettore, de volta à estação.


Entrámos no carro e Josephine conduziu a viatura pelas ruas empedradas, seguindo o






caminho dos trams. Enquanto nos levava pela cidade, explicava-nos a evolução da cidade nas últimas décadas, até à proclamação de cidade livre, ocorrida há poucos anos. Com o fim da União Europeia, a cidade perdeu uma parte da sua população e foi apanhada pelo separatismo flamengo. Mas Bruxelas não era separatista e não seria a capital da Flandres. Também não poderia ser valónica. E assim, mais por exclusão do que por independentismo, Bruxelas tornou-se uma cidade livre. A sua localização geográfica e o facto de ter tanta gente de tantos países - e tanta gente que tinha trabalhado para e à volta das instituições europeias - fez com que algumas das novas instituições montassem também aí novas representações. As mais importantes eram a Universidade Mundial, a MIGRATUR, a sede europeia do Tratado Mundial do Clima, o Banco Europeu do Clima e a Organização Europeia do Trabalho. Se fosse possível, ia levar-nos a visitar alguns deles. Fomos diretamente ao Matongé, a que chamou “pequena África no coração da Europa”. Inicialmente um bairro de migrantes congoleses, nas últimas décadas tinha aumentado de população e também de diversidade, tornando-se um bairro com mais de 40 nacionalidades, principalmente africanas. Foi ali mesmo que parámos para ir ao grande Bazar. Desde que saímos do carro toda a gente cumprimentou Josephine entusiasticamente. Jovens e idosos aproximavam-se para lhe agradecer e beijá-la. As crianças gritavam “Ujasiri mama, usajiri mama!”. Josephine sorria e fazia-nos sinal para avançarmos rapidamente.


- Desculpa, mas porque te agradecem?


Apontou para uma parede atrás de nós onde aparecia a sua cara, determinada, num grande mural com o seu dedo em riste. Atrás, caminhavam milhares de pessoas,











sorrindo. Por cima, dizia “La Route de l’Avenir”. Entrámos no gigante armazém, na Chausée de Wavre. Tinha uns 20 metros de altura, com prateleiras cheias de roupas, de todos os tipos de roupa. Algumas pessoas andavam de um lado para o outro com carrinhos de compras, subindo escadas e recolhendo coisas em diferentes sítios.


- Agradecem-me sempre por causa do meu trabalho no Mundo Novo. Mas principalmente por causa da Rota do Futuro, da qual fui uma das principais autoras.


-



- Ah! A Fatima Idrissi falou-me sobre a rota. - Respondi-lhe enquanto escolhia calças e botas para o frio.


- Sim, a Fatima foi uma grande viajante. Ela estava sempre pronta para se meter em mais uma aventura. Foi uma heroína no terreno. Eu apenas fiz uma viagem. Mas olha, a Marta foi das primeiras a fazer a rota mais difícil, na América Central para o Norte, ainda antes da rota ou da Carta do Refugiado terem sido aprovadas.


- A minha mãe? Foi por isso que ela foi para a América?


- Não sei porque é que é ela foi, eu soube que ela fez esta rota porque o relatório que a equipa dela escreveu foi uma das bases para escrever a rota. Foi uma viagem com 50 mil pessoas entre conflitos e atravessando vários territórios de milhares de quilómetros. Foi duro, mas conseguiram proteger aquelas pessoas. Eram mesmo duras, as descarbonárias.


- Ainda tem o relatório? - perguntou Lia, que já tinha duas camisolas e calças grossas consigo.


- Acho que esses documentos estão em biblioteca, não guardo essas coisas comigo. - e apontando para o que Lia trazia nas mãos, reparou - Não precisam trazer pouca roupa, porque para secar as coisas no tempo húmido é difícil e se vão ficar connosco algum tempo, mais vale terem o que trocar. E no fim, devolvem. Não sei o que Gianni falou convosco, mas não poderão ficar muito mais do que duas semanas. - pegou nas roupas todas que tínhamos nas mãos e colocou-as num carrinho, - vão buscar luvas e cachecóis, que pode ser que tenham uma surpresa. - sorriu.






- Mais frio? - Encolheu os ombros, encaminhando-nos para as roupas de criança e para os provadores de roupa. O armam era mesmo grande, parecia ter roupa suficiente para uma cidade inteira.


Josephine levou-nos até à saída, onde um senhor registou as peças de roupa que levávamos, sorrindo muito. Quando saímos, chovia copiosamente. Corremos para o carro. Josephine levou-nos pelas ruas, avançando silenciosamente e seguindo devagar o caminho dos trams. Passámos vários jardins cheios de lagos e atravessámos as ruas cada vez mais arborizadas enquanto nos afastávamos do centro. Meia-hora depois, chegámos a uma zona de aldeia, com casas mais pequenas e baixas.


- É Watermael-Boitsfort, uma das zonas mais a sul de Bruxelas, nas fronteiras com a Valónia.


Deixou-nos numa bonita casa com dois andares, com um lindo jardim que dava para uma floresta escura. - Volto daqui a umas horas. - Depois de partir e quando a chuva finalmente parou, depois de já termos comido e mudado de roupa fomos dar um passeio nessa floresta. Era tão diferente das florestas que tínhamos em Portugal, esta “Fôret des Soignes”. Comecei imediatamente a pensar nela como a Floresta dos Sonhos. Com as nossas novas roupas e botas, o frio não era um problema. Avançámos ao longo de uma grande alameda cheia de enormes abetos. Havia outras pessoas que passeavam também, e crianças agachadas que apanhavam cogumelos e pequenos ramos. Avançámos pela alameda até esta começar a ficar mais pequena e fechada, altura em que voltou a chover. Abrigámo-nos debaixo das árvores nesta zona mais fechada em que as copas faziam um guarda-chuva perfeito. Era muito bonito e o cheiro a pinheiro magnífico.

- Ainda bem que viemos. - sussurrou-me Lia ao ouvido. Ouvi galhos a partir-se e olhei para o lado. De repente, a menos de 10 metros de distância surgiram dois veados e uma cria. Ficaram parados a olhar para nós e nós parados a olhar para eles. Não estava nada à espera de vê-los ali tão perto, tão bonitos, vapor a saindo dos seus focinhos molhados. Estavam com as cabeças levantadas e os ouvidos também, com um ar muito desperto, olhando-nos concentrados. Pensei em quantas espécies tinham desaparecido nos últimos anos por causa do calor, das secas e dos incêndios. Eu sabia que os veados não estavam em perigo, mas vê-los ali, quase ao alcance da mão, era incrível. Lia estendeu lentamente a mão na direção da cria, mas eles fugiram, desaparecendo em segundos pelo meio das árvores. Que experiência incrível. Quando chegámos a casa, Josephine estava de volta e levou-nos de regresso ao centro no seu pequeno carro elétrico. Contei-lhe acerca dos veados e ela disse-me que era preciso ter cuidado com os javalis e com os lobos. - E há projetos de introduzir ursos quando a floresta for expandida por toda a Valónia até à Ardenas, voltando ao seu tamanho ancestral. Todas as auto-estradas que não foram utilizadas para expandir caminhos-de-ferro foram levantadas para dar caminho à natureza. Faz parte do projeto da Federação das Cidades Livres para compatibilização do rural-urbano.


Josephine levou-nos até à sede da ELO (European Labour Organisation), no antigo edifício Kohl do Parlamento Europeu. Eu estava à espera de um edifício gigantesco, mas não era. À frente e à volta tinha jardins cujas plantas pareciam bastante secas, apesar da chuva. A nossa anfitriã explicou-nos que o verão tinha sido demasiado quente e seco. A cidade estava a desenterrar o rio Senne há alguns anos, troço a troço,

para aumentar a área verde e também para aumentar a disponibilidade de água. O rio tinha desaparecido durante mais de um século debaixo das estradas e do asfalto. Com















o processo de renaturalização das cidades iniciado pela Federação das Cidades Livres, Bruxelas, uma das maiores, acelerou o processo de transformação urbana. É hoje uma cidade completamente autossuficiente em produção de frutas e legumes e produz toda a energia que consome. A antiga cintura verde de Bruxelas foi recuperada, mas a produção alimentar ocorre em toda a cidade, mesmo no centro, quer em jardins comestíveis, quer em telhados verdes. Segundo Josephine, mais de um milhão de pessoas em Bruxelas trabalha pelo menos algumas horas por semana em agricultura.


Entrámos no edifício e Josephine guiou-nos até ao seu escritório. Apesar da estrutura do elevador, ninguém o utilizava - Só usamos para transportar coisas pesadas, de resto é escadas e pernas. O seu escritório era bem grande, com janelas com vista para o jardim à frente. Várias pessoas trabalhavam no interior, todas bastante jovens. Cada uma tinha um computador onde trabalhava e cadernos onde tomavam notas e faziam contas ao lado.


- Estão a verificar o algoritmo do Trabalho. - apontou-nos Josephine. Algumas das pessoas sorriram-nos e acenaram.


- É aqui que se faz?


- Aqui é a última verificação do algoritmo, depois de três outros níveis, portanto aqui na verdade é o último nível de controlo.


- Mas é o algoritmo do Trabalho em todo o mundo? - perguntou Lia, espantada.











- Aqui é a última verificação do algoritmo, depois de três outros níveis, portanto aqui na verdade é o último nível de controlo.


- Mas é o algoritmo do Trabalho em todo o mundo? - perguntou Lia, espantada.


- Não, apenas da Europa e apenas para os territórios que estão no Tratado Mundial do Clima. Por exemplo, os nossos amigos flamengos aqui de cima não entram, têm o seu próprio sistema. O que nos cria problemas, claro…


- Então o algoritmo é do Tratado Mundial do Clima?


- Não, não. Sentem-se que está na hora de vos contar um pouco da minha história.


- Eu já estava a gravar, desculpa.


- Não tem problema. Eu fui uma das fundadoras do Mundo Novo, há mais de 20 anos. Começou como um passo em frente em relação à ideia original de Transição Justa. A maior parte das pessoas na altura não sabia, mas esta ideia tinha vindo do mundo dos sindicatos e não dos movimentos ambientalistas e mais tarde dos climáticos. Foi nos Estados Unidos que surgiu a ideia de que era preciso uma transformação industrial de grande escala, não só para a indústria fóssil, mas para todas as indústrias poluidoras. Além do interesse ambiental desta transformação, era uma questão essencial para quem trabalhava nessas indústrias, que acabavam por ser dos principais afetados em termos imediatos e de longo-prazo na sua saúde.


- Eu sempre tinha tido a ideia de que tinham sido os movimentos climáticos a lançar o Mundo Novo.


- Foi uma coligação entre cientistas, movimentos pela justiça climática e alguns sindicatos. Infelizmente não tanto os sindicatos mais poluidores. Décadas de propaganda capitalista tinham na verdade virado uma boa parte destes trabalhadores contra a ideia de transição, ao criar uma oposição entre ação climática e emprego. Eles simplesmente roubaram-nos os termos, a própria expressão “transição justa”. Em capitalismo, eles tinham sempre a faca e o queijo na mão. E para eles nunca poderia haver uma transição paga por eles. E como eles nunca iriam responsabilizar-se por essa transformação, a única coisa que eles estavam dispostos a fazer era receber dinheiro para fechar meia-dúzia de fábricas. A ideia de justiça deles é que os governos usassem o dinheiro dos impostos para compensá-los pelos lucros que eles esperavam ganhar. E sabem quem mais? Foi exatamente isso que vários governos fizeram durante mais do que duas décadas.


- Então vocês ficavam numa posição complicada, não?


- Sim. Imaginem, era preciso descarbonizar a economia, a ciência era claríssima sobre isso, era preciso cortar atividade industrial em grande escala, mas decidir o que é que era para cortar e o que é que era para manter. Era preciso transformar alguns dos eixos centrais do capitalismo, como produção de energia, transportes, comércio, não para garantir que os ricos se mantinham ricos, mas para garantir que o planeta não colapsava. Mas eles não queriam saber disso para nada. É difícil de compreender em retrospectiva. Então acusaram-nos, desde o início, de querermos controlar a economia, como se isso fosse uma grande surpresa.




Acusavam-nos de fazer exatamente o que eles faziam. - encostou-se para trás, soltando um suspiro. - Sabem como é que eles chamavam à economia deles? Economia de mercado livre. Ahahahahahaha.


- Como assim? - perguntei-lhe eu, enquanto ela se levantou para trazer uma garrafa de água com alguns copos para a mesinha onde estávamos. Entretanto o António tinha acordado e a Lia pediu-me que lhe mudasse a fralda.


- Mas pronto, eles chamavam àquela economia completamente planificada para manter milhares de milhões de pessoas na dependência total de alguns milhares de multimilionários de “mercado livre”. Era livre, no sentido em que esses multimilionários tinham liberdade total de mandar sobre a vida de toda a população mundial, em todos os sentidos. Não só obrigando quase toda a gente a fazer trabalhos inúteis, destruidores dos nossos cérebros e dos nossos corpos, como do próprio planeta onde vivemos. Mas também tinham um poder quase absoluto sobre a maneira como mandavam nas cabeças de toda a gente, como controlavam a informação de forma tão total. E manipulavam-na de maneira tão monumental que os próprios acreditavam nas coisas idiotas que metiam a sua comunicação a propagar. - Entretanto acabei de mudar a fralda de pano e levantei-me para ir deitar fora o “conteúdo”.


- Podem continuar a conversa, que eu vou deitar isto fora na casa-de-banho.


- Tens uma aí no corredor. - apontou-me Josephine, enquanto eu saía. - Mas perdi-me um

pouco. Às vezes ainda fico furiosa sobre como deixámos as coisas chegar a um ponto tão mau,








como comemos e acreditámos em tanto lixo durante tanto tempo.


- Estávamos a falar sobre o início do Mundo Novo. - disse Lia.


- Sim. Eu fazia parte do Sindicato de Trabalhadoras em Cuidados, da FGTB. Tinha trabalhado muitos anos em hospitais e lares de idosos, mas depois fui eleita vice-presidente do sindicato. Eu era muito militante de causas sociais, a minha família sempre tinha sido muito ativa politicamente, essa tinha sido uma das razões pelas quais tinham tido que fugir do Congo. E as minhas filhas tinham participado nas primeiras greves climáticas também. - nessa altura eu voltei à sala. - E eu ia às marchas, às manifestações também. Conseguia até várias vezes fazer com que o sindicato e a federação apoiassem publicamente os protestos. E eu achava que estava a cumprir o meu papel. Estava a cumprir o papel que era possível naquela altura.


- Mas?… - prosseguiu a Lia.


- Mas claro que não chegava. Porque aquilo que o governo belga ia fazendo, aquilo que a União Europeia ia fazendo era simplesmente lançar medidas soltas, financiar as empresas e mandar a produção altamente poluente para outros territórios, até para outros continentes. Algum tempo depois eu subi para a direção nacional da federação sindical, mas foi na altura em que as guerras e as doenças fizeram com que o custo de vida disparasse. E a austeridade voltou. E nessa altura toda a gente, e eu também um pouco, deixámos de ligar à questão do clima. Havia coisa mais urgentes. Era preciso que trabalhadoras e trabalhadores tivessem comida na mesa, pensava eu para mim mesma. Os movimentos pela justiça climática pressionavam-nos, mas nós tínhamos de pensar em quem trabalhava.

- E o que fez as coisas mudarem?


- o consigo identificar nenhum momento específico, mas houve uma altura a partir da qual tudo se avolumou quase em simultâneo e nós sentimos pela primeira vez que estávamos completamente sozinhos, que os governos não eram só alguém com quem tínhamos de dialogar, mas alguém que estava contra nós. Isso aconteceu com a onda de extrema-direita e a austeridade. Aqui na Europa começou a política energética fascista da “Energia europeia para Europeus”. Eles levantaram as restrições sobre o investimento em carvão e petróleo, criaram uma programa nuclear europeu, anunciaram subsídios às grandes energéticas e sabem o que aconteceu?


- Não. - respondemos em uníssono.


- Aumentaram os preços dos combustíveis e os da energia aumentaram ainda mais. O capitalismo fóssil tinha a faca e o queijo na mão. Eles eram o governo da extrema-direita europeia. Eles tinham inventado uma série de partidozecos para deixarem de ter de negociar, eles governavam diretamente. A extrema-direita era o braço político da indústria fóssil e a indústria fóssil era o braço económico da extrema-direita. Não havia mais subterfúgios. Claro que em cima da austeridade, veio o programa cultural: esmagar os direitos das mulheres, das comunidades LGBTQ, perseguir migrantes e fechar fronteiras, acrescentando ainda o acordo migratório com a Líbia.


- Sim. Foram criadas prisões de trabalho um pouco por toda a Europa, e instaladas grandes redes de vigilância. Foi na altura em que toda a gente começou a mudar as maquilhagens






para evitar o reconhecimento facial, especialmente em manifestações. - riu-se.


- E foi nessa altura que surgiu o Mundo Novo? - perguntou Lia.


- Sim, foi nessa altura. Começava a haver fortes tentativas de infiltração do mundo sindical pela extrema-direita e acho que toda a gente, até os trabalhadores da indústria fóssil, perceberam que sem um programa político de transformação radical, tudo ficaria para os fascistas. E finalmente conseguimos uma aproximação real aos académicos e aos movimentos climáticos que andavam a trabalhar na ideia de transição justa com planificação económica há anos. Mas até deixámos cair essa expressão. Precisávamos um programa contra as elites do capitalismo, não algo para negociarmos com eles. Era difícil porque essa era a tradição do nosso mundo sindical. Mas estava tudo a mudar. Em poucos meses de trabalho conseguimos fortes acordos políticos a nível europeu, e essa tendência expandiu-se para os outros continentes em pouco tempo. No verão houve uma greve geral na Europa de Leste em que este programa já estava nas principais reivindicações. Houve uma onda de calor enorme em que os patrões de várias plataformas logísticas na Sérvia, na Bulgária e na Roménia se recusaram a parar a atividade. Mais de 1500 trabalhadores morreram de calor num só dia. A greve que se seguiu foi muito forte e despertou a maior parte do movimento sindical. Começou noutros países a onda das greves pelo horário reduzido de verão e pela instalação dos sistemas de monitorização climática. Apesar da repressão policial, os governos cederam. Mas nós não aceitámos que estes sistemas de monitorização fossem geridos pelas empresas ou por outsourcing - eram os sindicatos que assumiam a responsabilidade de geri-los. Estávamos a encontrar a nossa força e tínhamos novos aliados. Eu achei que uma revolução estava ao virar da esquina, mas ainda era cedo.



- Nessa altura ainda não havia ecomunistas?


- o. E acho que por isso é que não houve uma revolução logo. Nós estávamos com força e com alguns planos, mas não tínhamos o plano de como passávamos da situação de caos em que estávamos para uma nova organização da sociedade. E a extrema-direita ainda tinha muita força, muitas armas e muita capacidade comunicativa. Precisávamos de mais planos, mais ligações, e nunca parámos de construí-las. Mesmo na altura do Setembro Vermelho, em que a maior parte dos fascistas caíram, apenas uma parte dos nossos planos puderam ser adoptados, o capitalismo ainda era muito forte. Mas não chegava. Para travar o colapso social e climático, era preciso mesmo construir um mundo novo. Tínhamos evoluído muito em muito poucos anos. Já não falávamos só de “descarbonizar” os setores da energia e dos transportes, os nossos planos evoluíram para uma transformação do comércio a nível regional e local, para as migrações de massas, para a redução drástica do horário de trabalho, para o abandono das atividades inúteis e prejudiciais, a desmercantilização de todos os setores, a promoção das atividades de cuidado, de cuidarmos e repararmos tudo o que estava destruído, não só no planeta mas também na sociedade e em nós mesmos. Tinha há muito tempo deixado de ser um programa técnico, era uma nova ideia de sociedade, em choque direto com o capitalismo da morte.


- Mas o algoritmo do Trabalho é técnico.


- Não. O algoritmo do Trabalho é uma ferramenta política. Tem componentes técnicas. Mas sempre foi assim. A técnica, a tecnologia, servem para o interesse de quem a programa e utiliza. Nós desenhámos um algoritmo que organiza o trabalho à escala europeia, articulado



no mesmo plano com os outros que organizam às escalas continentais, e que depois é ajustado nos territórios. Mas o trabalho sempre esteve organizado e planificado. E não estou a falar das quotas de produção da União Soviética. O que é que acham que era o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional, a Organização Mundial do Comércio, as bolsas de valores, a banca de investimento? Eram tudo ferramentas de planificação económica para o interesse das elites capitalistas. O algoritmo do Trabalho é uma ferramenta da Grande Mudança, da revolução ecosocial. Temos a tecnologia suficiente para distribuir o trabalho necessário à satisfação das necessidades reais das várias populações que habitam a Europa. Essas necessidades variam semanalmente e por isso o algoritmo vai sendo ajustado, mas conseguimos prever o número de horas diárias que cada atividade requer e o número de pessoas disponíveis para executá-las em cada território. Não é uma coisa muito complicada, toda a gente tem o dever de conhecê-la.


- Sim, nós estudámos bastante bem o Tratado Mundial do Trabalho. É difícil perceber como é que antes as pessoas aceitavam que era possível e até normal haver desemprego e pobreza em grande escala.


- Fazia parte da planificação capitalista. Era uma arma de dominação, como antes tinham sido os chicotes ou os trabalhos forçados. O desemprego era simplesmente estúpido e o algoritmo resolveu-o. Temos tantas coisas para fazer que não faria qualquer sentido deixar alguém que quisesse trabalhar sem trabalho. E o algoritmo adapta-se: há alturas do ano em que as pessoas querem trabalhar mais horas e reajusta-se. Se mais pessoas querem trabalhar, temos mais projetos úteis que ainda não tinham pessoal ou partilha-se o trabalho necessário, diminuindo o tempo de trabalho para toda a gente. Se as pessoas não estão satisfeitas com o



que fazem, podem pedir para mudar temporária ou definitivamente a sua atividade. Até queremos que rodem para conhecerem várias realidades. Empregos mais exigentes e de que as pessoas gostam menos significam em geral trabalhar menos horas e ter mais tempo livre. Há grande rotação dos trabalhos e também formações frequentes, para que a maior parte das pessoas mude de tarefas a cada três anos. Além de trabalho manual, precisamos de pesquisa o tempo todo. Como vocês sabem, podem mudar de emprego e procurar criar um percurso profissional autónomo, se for considerado útil. Por exemplo, podes propor que o livro que estás a fazer entre no algoritmo. Ou podes fazê-lo no teu tempo livre. - Sorriu e olhou pela janela. Nós também.


- Olhem. Está a nevar.





último cargueiro

de antuérpia

último cargueiro

de antuérpia

Josephine levou-nos a jantar com Arwani Java, do Tratado Mundial do Clima. Sentados numa cantina com pouca gente frente ao lago Marie-Louise, olhávamos o lago enquanto pequenos flocos de neve caíam.


- Os serviços do clima avisaram que vai nevar durante pelo menos três dias. O que é maravilhoso, porque não neva aqui há quase uma década. Mas também pode deixar tudo parado. É possível que nem trams, nem autocarros, nem bicicletas possam mover-se. - Disse Java. Era um homem indonésio baixo e gordinho, muito sorridente, que não aparentava ser mais velho do que eu.


Partilhámos uma gibeta entre os quatro, de onde tirávamos com as nossas panquecas de sorgo pequenos montinhos de grão, lentilhas e diferentes patés e molhos. Esta maneira de comer, de origem etíope, tornou-se muito comum nos últimos anos no centro da Europa porque uma grande migração da zona terminou espalhada aqui, mas principalmente pela poupança de água e pela proximidade da própria refeição, partilhada entre até 10 pessoas (dependendo do tamanho da gibeta). Apesar de conhecer algumas pessoas que a usavam em Portugal, aqui tornara-se das principais maneiras de comer, variando os cereais utilizados para fazer as panquecas e as comidas que se partilham dentro do prato.

- Contava levar-vos amanhã a algumas das Escolas da Ruptura e à sede do Tratado, mas pode não ser possível por causa da neve. - disse-nos Josephine, desapontada. - Mas assim também aproveitam para descansar e passear na neve. Já tinham visto antes?

- Não. - respondi. Lia acenou negativamente com a cabeça, enquanto bebia água.

- Ouvi dizer que antes nevava quase todos os anos aqui, mas desde que cá estou raramente vi.

Só a Sul, na zona das Ardenas é que houve qualquer coisa nos últimos anos. Josephine, tens um trenó para crianças que lhes possas emprestar para se divertirem um pouco? - Pros Arwani.

- Eu pus a mão na neve há pouco e não sei se vou querer repetir. - disse Lia.

- Vão ver como tudo fica bonito. Especialmente em Boitsfort. Mas é preciso usar o equipamento adequado. - respondeu Josephine.








Durante a refeição falámos novamente acerca do Mundo Novo, da divisão nas componentes académica, laboral, migratória e política - que se transformaram na Universidade Mundial, as Escolas da Ruptura e as Academias da Reparação, as Organizações do Trabalho, a MIGRATUR e os movimentos ecomunistas e ecossocialistas. Ainda eram coordenadas pelas famosas “Asas de Borboleta”, de que Josephine nos assumiu já ter sido membro.


Arwani falou-nos sobre o Tratado Mundial do Clima. O impulso inicial tinha sido dado pelas ilhas do Pacífico, China, Japão, os países da América do Sul, de África e do Sul da Europa, e foi a nova instituição que se ergueu das cinzas das Nações Unidas. A base desta organização tinha sido o Tratado de Não-Proliferação Fóssil, mas com as ondas de calor letais do ano 1.8 transformou-se em algo muito maior. Tinha sido inicialmente pensado para tratar só das emissões e da crise climática, o Tratado acabou por estender-se em várias direcções e dimensões com o aprofundar das crises ambientais e políticas e perante os vários vazios que apareciam. O massacre de Gaza tinha criado uma ruptura permanente na estrutura das Nações Unidas. Os países mais ricos do Ocidente tinham abandonado qualquer pretensão de respeito pela ordem internacional para apoiar o massacre dos palestinianos pelos israelitas e durante algum tempo houve uma co-existência tensa. Essa co-existência terminou com o colapso das negociações climáticas. O mandato do Tratado Mundial do Clima era cortar as emissões de gases em 50% até 2030 em relação aos níveis de 2030. Ao contrário da COP, do Acordo de Paris e das Nações Unidas, o Tratado era obrigatório e vinculativo, os cortes de emissões não eram opcionais ou negociáveis além dos limites da ciência climática. Foram criadas ferramentas financeiras e acordos comerciais entre os vários

membros para executar essa transformação: foi criado um banco de emissões e um banco internacional de investimento. Durante vários anos o Tratado esteve em funcionamento ao mesmo tempo que as Nações Unidas e numa situação política, climática e económica caótica. Vários países saíram e voltaram a entrar, a própria sede do Tratado, em Bogotá, foi palco de ataques durante o golpe de estado derrotado, ainda antes do Ano do Leão. Entretanto foi criado o Sistema Mundial de Comércio Justo, integrando a informação sobre os recursos destinados à produção de bens e serviços essenciais e calculando a distribuição equitativa de recursos pelos povos e territórios do globo. Mais do que um conflito armado aconteceu por causa da adesão ou não ao Tratado - nos Estados Unidos, na Irlanda, na África do Sul. Com o fim das Nações Unidas, algumas das suas instituições foram integradas no Tratado. Mas mesmo depois da poeira parecer assentar nos últimos anos, depois da criação do Banco Mundial do Clima e da sua moeda, o Carbo, as sedes europeias do Tratado foram alvo, como outras instituições, dos violentos ataques da Muralha.


Explicou-nos que considerava que as principais ferramentas do Tratado ainda eram as políticas climáticas criadas em articulação com a Universidade Mundial e com a integração da Comissão Mundial de Calor, a luta contra a máfia e, claro, a desmercantiliização da economia, muito influenciada pelos descrescimentistas. Segundo ele, o facto do trabalho não ser mais remunerado maioritariamente em moeda, mas coexistindo com os serviços universais de habitação, saúde, transportes, energia, alimentação e reparações tinha dado uma enorme estabilidade à vida em sociedade e permitido reduzir drasticamente as horas de trabalho da população. As moedas locais e regionais ainda em circulação eram de importância diminuta e não








influenciavam muito a vida do dia-a-dia. O Carbo era mais importante, mas principalmente usado para o comércio internacional e, apesar dos esforços para mantê-lo neutro, ainda tinha muitos problemas das moedas antigas. O que tardava em ser resolvido era a máfia, que tinha atingido o seu apogeu durante os governos de extrema-direita. Nessa altura, o crime organizado tinha sido muito importante na desestabilização de algumas regiões, derrubando governos e roubando recursos e sendo a principal responsável pelo tráfico de pessoas em fuga, até ser instituída a Rota do Futuro. Mas mesmo depois, até hoje, continua a ser um problema e uma fonte permanente de chantagem e destruição após a Grande Mudança.


Após o jantar, Josephine levou-nos de volta à nossa “casa no campo”, onde passámos uma noite quente. Na manhã seguinte acordámos de frente para uma floresta branca com flocos de neve caindo e engrossando o manto brilhante, que nesta altura já cobria tudo. Josephine mandou-me uma mensagem, confirmando que as estradas estavam inacessíveis e que nos avisaria antes de nos visitar. Passámos um dia muito tranquilo naquela bonita casa, brincando com o António, lendo e fazendo sexo - há algum tempo que não tínhamos a privacidade para isso e a casa vazia e silenciosa era ocasião perfeita para o nosso afeto, pelo que fomos experimentando as várias divisões, excepto as com grandes janelas viradas para a rua. Esta foi uma das coisas que mais me espantou das casas na Bélgica, as grandes janelas tantas vezes sem cortina viradas para a rua, das quais nos mantivemos afastados enquanto namorávamos.


À tarde saímos, depois de nos equiparmos com tudo aquilo que a Josephine nos tinha levado a buscar no grande bazar - botas, calças com outras calças por dentro, camisolas


e casacos grossos, luvas e gorros. Caminhámos pelas ruas de Boitsfort até a uma zona central onde um grande tram estava parado e coberto de neve. Havia ali várias pequenas bibliotecas, uma loja de vídeos, um cinema e um teatro. Mas por causa da neve, estava tudo fechado. Grande sinais avisavam: “Circulation paralysée en raison d'un phénomène météorologique”, algo como circulação parada por causa de fenómeno climático extremo. Os sinais deviam ser usados regularmente para outros eventos climáticos, pois estavam um pouco gastos nas bordas. Infelizmente também aqui o excesso de calor nos verões e as cheias já tinham levado a grandes paralisações e isolamentos. Pelas ruas, enfrentando a neve que às vezes caía em grande volume, crianças e adultos brincavam, atirando bolas de neve e construindo bonecos e montes. Algumas corriam de um lado para o outro, puxando trenós e chocando contras as bicicletas e as árvores que preenchiam o espaço. Com pouco vento, o principal barulho que se ouvia naquela tarde era o som da neve compactando debaixo dos nossos pés e as gargalhadas de crianças e adultos. O António tentava comer pedaços de neve quando o aproximávamos dela, mas estava com tanta roupa que quase não se conseguia mexer, fazendo uma pequena birra. De volta a casa, ouvimos rádio enquanto preparávamos uma refeição de castanhas, batatas e um peixe que a Josephine nos tinha deixado, uma carpa vinda das aquaculturas que existem em várias zonas da cidade. Acionei o meu tradutor para perceber melhor a informação do rádio. Felizmente não era em “bruxelês”, a língua popular da cidade de Bruxelas, uma mistura de flamengo, alemão e francês, pelo que o tradutor desta vez funcionou.


As principais notícias do dia eram sobre o nevão, o maior desde 2030. Já tinham nevado 40 cm, impedindo a circulação da maior parte dos transportes, como já


tínhamos percebido. Mas estava previsto continuar a nevar. O nevão era consequência direta de uma massa polar que descia da Antártida. Já tinha havido dois verões sem gelo no Pólo Norte, e este anos, apesar de não ter ficado sem gelo, o vórtex polar continuava a ter expansões anormais, empurrando correntes árticas por todo o Hemisfério Norte. A neve e as baixas temperaturas tinham descido até ao sul da França, levando a quedas de temperatura de mais de 30ºC numa semana. Seguiram-se os avisos da Comissão Bruxelense de Calor (que descobri que também cuidava do frio): não deixar janelas de casa aberta, não estar no exterior durante mais de duas horas e sem equipamento de frio, evitar deslocações longas que não sejam adiáveis, não andar nas superfícies dos lagos que estavam a congelar, confirmar o bom funcionamento das bombas de calor nas casas e edifícios. As comunidades de cuidado tinham sido acionadas e tinham sido reforçadas as reservas deslocalizadas de comida. No rádio seguiu-se um programa de teatrocast, uma comédia sobre charlatões que inventavam soluções para o calor no verão antes da Grande Mudança. Pela janela vimos a floresta dos sonhos, branca, e como toda aquela neve iluminava a noite. Tanto que, mesmo sem vermos a lua, conseguíamos ver tudo lá fora.


Depois de mais um dia em que o mundo parecia estar congelado em pausa enquanto o observávamos pela janela, na manhã do terceiro dia, pouco após nos levantarmos, alguém bateu à porta. A neve caía pesada











e quando abri entraram grande pedaços entraram, acompanhando uma figura que só tinha os olhos de fora, tapado até cima de proteções e neve.

- Ciao! - era o Gianni.

- Gianni, bem-vindo. Lia, é o Gianrocco! - Gritei para a Lia que estava no quarto.

Entrou e começou a tirar camadas de roupa.

- Spero che nei prossimi giorni inizi a riscaldarsi un po'. Ci sono meno 5 gradi.

- Tradutori. - Sorri-lhe.

- Scusa. - ligou o tradutor.

- Espero que a temperatura suba em breve. Está muito frio. E está a nevar muito, não sei que altura já tem a neve, mas em vários lugares do caminho chega-me à cintura.

- Sim, e isto não causa problemas com o calor e a energia? Fomos para a cozinha e Gianni tirou um termo de café, que soltou uma nuvem de calor e cheiro a café.

- Expresso! Tento nunca sair de casa sem. - Lia entrou com António e Gianni beijou-os nas faces. - Querem?

- Sim. respondeu Lia, sorrindo.

- A energia funciona bem mesmo com este frio. Até mais frio. - serviu-nos café em pequenas chávenas enquanto eu aquecia panquecas do jantar com Josephine e Arwani - Transportes é que não. As bombas de calor aguentam muito bem, os painéis e as eólicas também. As pequenas barragens é que nem por isso, mas a água ainda não congelou, então não deve haver grandes problemas. O principal é manter o calor dentro, ter as casas bem isoladas. Isso e bombas de calor são a maneira de reduzir perigo e mortes tanto em ondas de calor como em ondas de frio. Os sistemas de gás eram muito mais perigosos e instáveis. Com a baixa de temperatura e os grandes circuitos, com a sabotagem, com as lutas comerciais por causa dos preços, além de destruírem a atmosfera, eram sistemas completamente idióticos.

Mas davam muito dinheiro a muito pouca gente, e por isso é que estavam espalhados por todo o lado. Já não. Felizmente. Mas só à porrada, com muita violência, lá chegámos.


Gianni levantou-se e ficou alguns momentos a olhar pela janela. A neve caía com intensidade e já não se via nada que não estivesse coberto pelo manto branco, só se distinguiam formas pelas sombras. Bebeu o seu café e virou-se para nós.

- Tenho uma proposta a fazer-vos.


Aproximou-se da ilha de cozinha, onde um grande pão negro descongelava, rodeado por várias canecas com água e uma chaleira. Eu e Lia olhávamos para ele, que parecia hesitar. Fez uma cara séria, o mais sério que já tinha visto desde que o tinha conhecido.

- Eu quero que tu me escrevas um relato oficial de como as coisas estão no continente americano.

- Mas o que é que eu sei da situação lá?

- Quero vás lá. Que viajes pelo continente durante dois meses, que fales com responsáveis e faças entrevistas, que observes o que se passa e que me envies esta informação. É uma missão oficial de preparação para a Assembleia Constituinte Mundial. - Lia deu-me a mão e olhou para mim, apreensiva.

- E a Lia?

- O Ettore pode acompanhar a Lia e o António de volta a Lisboa.


Lá fora, a neve tinha parado de cair. Sentia-me surpreendido mas também apreensivo, até porque a Lia estava abalada.

- E como faço para viver e viajar lá? Eu não saí muitas vezes Portugal. Isto é muito repentino,








Gianni.

- Nós resolvemos as questões de logística, viagens e custos. Vocês não têm de me responder já. - E não é possível ser mais tarde? Daqui a uns meses? - perguntei-lhe.

- Nós precisamos desta informação o mais brevemente possível. É possível apanhares um dos últimos cargueiros que sai de Antuérpia daqui a dez dias. Se não puderes, teremos de enviar outra pessoa. Pensei que te poderia interessar por causa do teu livro.

- E como ficam as coisas com as responsabilidades em Lisboa? - disse Lia, num tom ríspido.

- Seria simples falar com a Assembleia de Lisboa e também com a vossa Organização Central do Trabalho. Bem… poisou a chávena e começou a fechar o seu termos. - De certeza que vocês têm muito que falar e eu quero aproveitar o facto de agora não estar a nevar para voltar para o centro.

- Obrigado. - Disse eu, acompanhando-o à porta. Lia ficou sentada a olhar lá para fora, enquanto António brincava com os seus cabelos.

- Tens de por sal e tirar um pouco de neve daqui da entrada, senão não conseguem sair daqui. Ci vediamo presto.


Depois de me despedir de Gianni, voltei para a cozinha, onde Lia ainda estava na mesma posição. Quando me viu sorriu e abraçou-me. Ficámos ali vários minutos. Eu pensei dizer alguma coisa para quebrar o silêncio, mas não sabia o quê. Tentei por-me no seu lugar. Lembrei-me de como ia reagindo quanto mais nos envolvíamos no trabalho do livro, quanto mais nos afastávamos da nossa vida normal. Pensei como poderia sentir-se abandonada se eu aceitasse ir, como não quereria ficar sozinha com o António enquanto eu fazia algo que estava tão longe do normal para tanta gente. Também não queria abandonar o António. Senti-me defensivo, a pensar que ela é que



me tinha empurrado para aquilo, que não tinha sido só ideia da minha cabeça, como ela dizia que eu tinha de conhecer a história dos meus. A história dos meus pais também era aquilo: despedidas e partidas, rupturas e lágrimas. Mas eu não ia sem saber quando voltava. Uns minutos depois, a Lia é que rompeu o silêncio.

- Não precisamos falar já. Vamos fazer bolas de neve no jardim. - Sorriu e lembrei-me também porque a amava tanto. Era profundamente sensata e corajosa. E surpreendente, mesmo em situações inesperadas.


Passámos o dia em casa, dando duas ou três saídas curtas à rua, escavando uma saída com a pá, enquanto menos crianças continuavam a desfrutar da abundante neve, que tinha fechado escolas e bibliotecas. Durante a tarde apanhei uma rádio que tocava várias obras de um dos maiores compositores atuais, o Ramin Djawadi, que ouvi durante várias horas. Ao jantar Lia levantou o assunto.

- Alex, eu acho que tens de ir. Vai-me custar muito, mas seria absurdo recusar uma oportunidade destas. - Senti um alívio, mas também não queria dar a entendê-lo. - Eu não te quero prender, e acho que consigo cuidar do António sozinha durante o tempo em que não estiveres.

- Mas Lia, ninguém me tinha falado disto até agora. Isto começou com Madrid, fomos subindo e agora ele está a propor-me a maior viagem da minha vida, assim de surpresa.

- Vamos, Alex, não precisas fazer isto. Eu estou a ser sincera, sê-o também tu.

- Achas que os podíamos convencer a vocês virem também?

- Seria muito lindo, mas duvido. Senão ele já o teria proposto.

- Vou-lhe dizer para vocês virem também.

- O que vais ter de me prometer é que falamos todos os dias. Vais passar por sítios muito


perigosos.

- Prometo tentar sempre.


Essa noite fizemos amor, menos sôfrego e muito mais apaixonado. Lia era muito melhor do que eu, muito mais completa, permanente. Quando adormeceu fiquei ainda acordado muito tempo. Pensei na minha mãe e no meu pai, de como teriam sido as suas discussões antes da partida dela. E pensei em como a vida de pessoas como Fatima, Gianni ou Josephine deviam ter tido inúmeros episódios daqueles, e como provavelmente nem todos teriam tido a sorte de ter alguém companheiro como eu tinha a Lia. Mas eu não estava a ir para o desconhecido como a minha mãe tinha ido, sabia como, para onde, não ia para uma guerrilha qualquer, sem rede de segurança, arriscar tudo. E pela primeira vez acho que admirei verdadeiramente a coragem da minha mãe.


No início da tarde seguinte, Josephine visitou-nos na companhia de Arwani. A neve já tinha parado mas os transportes ainda não estavam restabelecidos. Ambos vinham com uns skis curtos nos pés, que mais pareciam umas sandálias de pôr por cima das botas, e com os seus bastões. Quando entraram na casa encheram a entrada de neve uma vez mais. Josephine vinha-nos visitar para trazer comida e também porque tinha sabido da proposta de Gianni.

- Mas nós ainda não lhe respondemos! - insurgi-me.

- O Alex vai. - respondeu a Lia, colocando a sua mão sobre o meu ombro.

- Mas quero saber se a Lia e o António não podem vir também.

- Bem, eu não estou a organizar isso, mas acho extremamente difícil. A viagem de barco que






vais fazer não é nada confortável. É o último cargueiro que sai do Porto de Antuérpia antes da navegação do Atlântico Norte fechar para o inverno. As condições marítimas já são complicadas para a navegação. E há os piratas, por isso mesmo vocês vão em comboio. - senti um ligeiro arrepio e, pela primeira vez, verdadeira hesitação - Além disso irás num espaço apertado, onde mais uma pessoa e um bebé não estarão bem. Também não sei qual será a tua missão lá, isso é entre ti e o Gianni, mas se em vez de uma pessoa forem três, tudo fica mais complicado.

- Eu quero falar sobre isso com o Gianni.

- Então fala com ele, não comigo. Eu posso ajudar com a questão do teu trabalho em Lisboa. E o Arwani pode ajudar-te com as assembleias da cidade e os teus deveres cívicos. E com o teu passaporte.

- O quê?

- O passaporte. É um documento que serve para poderes entrar e sair de territórios que não estão no Tratado Mundial do Clima. O primeiro desses países será a Flandres, de onde parte o navio. O Gianni disse-me que era possível que fosses a outros países fora do Tratado também. - disse o pequeno Arwani, que tinha a faces muito avermelhadas.

- Quais?

- Não sei. Mas precisas preparar-te para ires aos territórios onde as regras não são iguais aos países onde tens vivido. A Flandres será uma boa introdução. Olha, não me queres oferecer um chá, que eu estou congelada? - Josephine esfregava as mãos para aquecê-las. - A casa tem estado quentinha?

- Tem estado óptima - respondeu Lia, que segurou as mãos de Josephine nas suas.

- E têm brincado na neve?














Josephine e Arwani ficaram o resto da tarde connosco. Lia e eu pedimos mais informação sobre a Flandres e os outros países que não estão no Tratado. Josephine explicou-nos que há dois tipos de territórios que não estão no Tratado: os mais conservadores politicamente, que recusam receber as caravanas do futuro, alguns dos auto-suficientes em termos alimentares que conseguem dispensar o comércio internacional e aqueles que são dominados pela Máfia. São poucos territórios, não mais de 20. Os Estados Unidos estiveram para sair do Tratado quando foi necessário exportar excedentes alimentares durante a última fome regional na Europa e em África. O governo só foi salvo dos motins pelo partido Ecomunista.


Arwani explicou-nos a ascensão da máfia. Com a redução do comércio internacional, novas rotas de comércio negro tinham sido abertas por uma aliança entre as principais máfias do mundo: a máfia israelita, a albanesa, a sérvia, a Camorra, a Ndrangheta, a Cosa Nostra, a irmandade ariana, a D-Company, a Tríade, a Yakuza, os cartéis mexicanos, os Airlords, os Kulunas, os Americans, os Hard Livings e a Bratva russa. Acordos informais feitos com vários governos de extrema-direita puseram a máfia a tomar conta de operações de segurança que antes pertenciam a estados, principalmente protecção industrial e comercial. Mesmo em territórios em que não havia acordos com os governos, a máfia tomou conta de operações da indústria fóssil, como a produção e transporte de petróleo e gás. Tinha sido a primeira grande transportadora de refugiados, deixando que milhões de pessoas morressem no percursos, que fossem vendidas como escravas e abusadas fisicamente durante longas viagens. Era também a máfia que geria os campos de concentração de migrantes às portas da Europa e na América Central. Mas se já era inviável antes do Setembro



Vermelho, após as ondas de calor mortais, a máfia começou a ser varrida na enxurrada, mantendo-se como um empecilho que governa territórios como o Mezzogiorno, Malta ou Taiwan. Mas continua presente um pouco por todo o lado, lançando os seus mercados negros e ainda enganando milhões de pessoas que têm de fugir dos seus países ou de conflitos.


Josephine falou-nos da Flandres, um território independente há mais de uma década, que já tinha tido governos de extrema-direita mas que neste momento era mais moderado, embora ainda mantivesse alguns resquícios do capitalismo que desapareciam sob o Tratado: o trabalho não era organizado centralmente, havia a moeda, o florim flamengo, bastantes veículos elétricos individuais, muita indústria química e de plásticos (apesar da indústria de combustíveis fósseis estar reduzida a um mínimo) e uma agricultura privada. E, claro, havia polícia. Não tinha havido uma revolução na Flandres.

- Enquanto a nossa polícia foi sido substituída, primeiro pelas guerrilhas revolucionárias depois pelas patrulhas cidadãs e o serviço civil, lá tudo se manteve igual ao que havia antes. E é isso mesmo que verás quando entrares no território.

- Como foi aqui o processo transição para acabar com a polícia? Perguntou Lia.

- Foi difícil. Por um lado, a seguir às revoluções o ódio às polícias transbordou. As esquadras e os quartéis eram frequentemente atacadas e os novos governos tiveram de acelerar todos os planos para não começarem conflitos mais sérios. Havia imensas tensões dentro do movimento. Propostas para criar uma polícia política, perguntas sobre como é que o movimento e a sociedade se iam defender a si mesmas sem um poder repressivo. E também a pergunta óbvia: o que fazer com milhares de polícias, muitos dos quais eram abertamente



fascistas? O que fazer com os polícias especiais, com os serviços secretos, com as forças armadas da Muralha?

- E o que fizeram?

- A maioria foi integrada em outras profissões. Os antigos polícias de alguma confiança entraram para o Exército Verde, mas a maior parte foi para profissões como guardas florestais, guardas marinhos, condutores, proteção civil, trabalho social. Não faltavam coisas para fazer. Aliás, o que havia era falta de gente. Os responsáveis por atrocidades e organização de repressão foram condenados, claro. Talvez venhas a conhecer alguns, Alex.

- Onde?

- No cargueiro. Nos navios há muitos antigos elementos da Muralha que receberam como missão de reconciliação fazer tarefas de navegação e prospeção de territórios degradados.

- E quem desempenha agora as tarefas de segurança da polícia? Em Lisboa ainda vejo de vez em quando membros do Exército Verde em patrulhas. - Perguntei-lhe.

- Nós hoje precisamos de uma força para travar violência, para curar sociedades que foram viciadas em violência, banhadas no culto da força e da brutalidade durante milénios. Para curar as feridas da Grande Mudança, que também as há. A força a que nós chamávamos polícia já não existe para defender a propriedade, ordenar trânsito, despejar ou controlar pequenos roubos. A sociedade criou ela própria maneiras de censura social para lidar com isso. Há uns anos, logo após a revolução, tínhamos patrulhas noturnas feitas por mulheres, algumas das quais eram voluntárias e outras mais profissionalizadas. Em zonas onde havia mais problemas, em situações graves enviávamos revolucionários armados, mas isso era uma raro e hoje os crimes violentos são tratados pelos corpo de investigação. Entretanto era preciso capacidade de resolver pequenas disputas sem criar armas de violência e pequenos poderes numa nova polícia ou o que quer que fosse o seu nome. Ainda não estamos lá. O que

temos atualmente são patrulhas, o serviço civil e social e corpos de investigação que têm como única miso a segurança de pessoas, não de bens. Os bens são demasiado perenes para merecerem um corpo de proteção. O que temos é de proteger a sociedade. Lia, sabes de onde vem a palavra polícia?

- Poli, política, múltiplo? Polis?

- Sim, polis, cidade. Guardiães da cidade. Para termos menos guardiães também temos de ter cidades mais pequenas, mais geríveis. E precisamos menos de proteger a polis do que proteger “civis", as pessoas, cidadãs. Temos um serviço civil que desempenha funções de proteção e cuidado, mas que é uma função como qualquer outra dentro do algoritmo do trabalho, com forte rotação. Mas pessoas geralmente não gostam, excepto dos corpos de investigação, mas mesmo esses são rodados frequentemente - estás um ano no serviço civil e depois vais fazer outra coisa. O facto de haver menos burocracia também melhora o trabalho. Sabes que os polícias passavam uma boa parte da sua vida a passar multas…


A conversa continuou até Josephine e Arwani partirem, pouco antes do sol se pôr. Nos dias seguintes descansámos em casa. Depois de uma forte chuvada a neve desapareceu toda e pudemos passear pela cidade. Pouco tempo depois a temperatura estava nos 20ºC. Encontrámos Gianni e Ettore, que nos confirmaram que a Lia e o António não poderiam ir. Gianni entregou-me um mapa previsto para a minha viagem e felicitou-me pela decisão. Visitámos mais tarde a sede europeia do Tratado Mundial do Clima, no antigo edifício da Comissão Europeia, onde recebi o meu passaporte e Arwani ainda arranjou outros dois para a Lia e o António. Visitámos ainda outras instituições em Bruxelas, mas a minha cabeça já estava na viagem. Revi as minhas notas da entrevista com Olivia e pedi livros à Josephine, que me passou alguns acerca dos Estados Unidos, do México, de Cuba e do Brasil, por onde eu poderia

passar. Tratámos de arranjar mais roupas variadas para mim. Gianni arranjou-me aparelhos tradutores de pescoço e orelha, deu-me um novo gravador e um pequeno computador para nos comunicarmos. Pedi-lhe mais informação acerca da minha mãe.


- Não te posso ajudar. Não tenho muito mais informação porque a tua mãe, como muitos membros da Descarbonária, teve os seus ficheiros de informação apagados para proteção da Muralha e da máfia.


Numa manhã chuvosa partimos para Norte e fomos até à fronteira com a Flandres, onde tivemos de atravessar um posto onde várias pessoas fardadas confirmaram todos os nossos documentos, fizeram várias chamadas e revistaram as nossas malas antes de nos deixarem entrar. A viagem de carro foi muito curta. Ao contrário de todo os outros sítios onde eu tinha estado até então, havia várias estradas na Flandres a funcionar, com carros elétricos com um ar muito luxuoso a passar. Não vi carris em cima de nenhumas das autoestradas. Em menos de uma hora chegámos a Antuérpia e fomos diretamente ao cais, junto ao rio Scheldt, que liga ao Mar do Norte. Despedi-me de toda a gente na doca. Abracei Lia e António com força, e deixei cair umas lágrimas. - Vai ser incrível. Amo-te muito. - disse-me ao ouvido. Subi as escadas até estar a bordo do “Hopp Winnen”. Fui cumprimentado pelo comandante, chamado Hans Groen. Disse-me ser um grande admirador do comandante Fratin e que me explicaria o funcionamento da vida a bordo ao almoço.


Enquanto a escada era recolhida acenei para quem deixava para trás: Gianni, Josephine e as minhas queridas Lia e António. O Hopp Winnen começou a afastar-se de




terra. Quando já não conseguia distinguir as pessoas, peguei nas minhas coisas para me instalar. Do meio dos livros que Josephine me tinha dado caiu um dossier. Era um relatório de uma viagem de refugiados desde as Honduras até à Califórnia, assinado por várias pessoas. Sublinhado a vermelho estava o nome Maria García.


mau tempo no atlântico

mau tempo no atlântico

O comandante Groen era um simpático flamengo, alto, magro e com o cabelo muito vermelho. Enquanto nos afastávamos da doca, levou-me na direção de um homem com ar muito mais velho do que nós.

- Enke, podes levar o nosso convidado até ao camarote do 2º piloto?

- Qual é? - Respondeu-lhe, com um ar bastante frustrado. Era mais alto que o comandante, tinha cabelo e barba tão loiras que pareciam brancas. Os seus olhos eram cinzentos claros e desconfiados.

- Tu sabes qual é.

- No fundo da primeira coberta?

- Sim. Depois encontre-me na ponte, Sr. Águas.

Depois de pegar a minha mala, o homem ofereceu-se para levar a minha mochila, mas achei que não valia a pena. Estendi-lhe a mão para o cumprimentar e ele olhou-me, surpreendido. Hesitando, lá me apertou a mão.

- Sou Heitink, Enke Heitink.

- Alex Aguas. - começou a andar, esperando que o seguisse.

- Você é manda-chuva dos ecomunas, não é?

Liguei o meu tradutor de pescoço. Ele sorriu.

- É mesmo. Esses Babel são muito difíceis de arranjar.

- Eu estou a escrever um livro. Não sou ecomunista.

- Ahhhhh, duvido. Se não fosse ecomuna não ia nos camarotes finos. Chegámos. - Abriu-me a porta e despediu-se secamente.

O pequeno quarto amarelo tinha uma cama encostada na parede, em que o colchão se levantava como tampa para uma espécie de baú, onde guardei as minhas roupas, livros e o computador. Tinha ainda uma pequena mesa com candeeiro, prateleiras

vazias e uma janela redonda que ficaria uns 20 metros acima da linha de água. Conseguia ver a outra margem do rio Scheldt, oposta à rica cidade de Antuérpia, capital da Flandres. Depois de guardar as minhas coisas saí do quarto e subi para procurar a ponte. O tradutor não servia de grande ajuda. Os sinais diziam: Dek, Dekking 2, Dekking 3, Kelder 1-10, Kelder 11-20, Nooduitgang e Brug. Arrisquei e subi umas escadas que davam para o convés. Cá em cima havia uma espécie de edifício de 4 andares na parte de trás do navio, com contentores coloridos ocupando toda a superfície até à frente, erguendo-se apenas as enormes “velas” eólicas solares. A ponte seria no edifício. Continuei a subir escadas até encontrar uma porta onde estavam várias pessoas e entrei.

- Bem-vindo, bem-vindo. - disse-me o comandante. - Este é o Sr. Águas, que vai acompanhar-nos até Nova Iorque. - Algumas pessoas sorriram enquanto outras olhavam para o painel de instrumentos e pela janela. Já não se via Antuérpia.

- Esta é a Imediato do navio, Srª Buez. - Uma mulher muito alta, com largas maçãs do rosto cumprimentou-me. - Ela é que manda em tudo.

- Sr. Aguas, ouvi dizer que está a escrever um livro? Sobre o que é?

- É sobre a Grande Mudança.

- Um tema pequeno, portanto. E vai falar sobre o quê?

- Sobre como o mundo mudou, sobre quem esteve envolvido, as revoluções, as guerras…

- Aqui no navio tem pessoas que estiveram dos dois lados da barricada, se é que podemos falar de dois.

- Sim?

- Claro. Eu e o primeiro piloto, estivemos do lado da revolução, eu na Transpiness e ele no Exército Verde. Entre os tripulantes há principalmente neoluditas e muralhistas, embora

também cá esteja quem simplesmente gosta de mar. O comandante era neolud, mas nós já o perdoámos. - Riu-se.

- Mas só no início! - riu-se também, com os caracóis vermelhos abanando.

- Bem, temos de continuar a manobra, Sr. Águas. - disse a Imediato - Pode ficar a assistir, se quiser. Senão podemos encontrar-nos mais tarde. A tripulação é pequena mas convém que os conheça. É importante não ultrapassar as barreiras sinalizadas, porque é perigoso, em particular no mar. - sentei-me numa cadeira, observando as pessoas entrando e saindo da ponte, enquanto serpenteávamos o rio. Passado algum tempo o rio começou a ficar mais largo, as ondas mais fortes e senti uma ligeira náusea. Estávamos a chegar à barra, a sair para o mar. O meu enjoo aumentou um pouco e levantei-me para sair da ponte.

- Está bem? Se precisar de comprimidos, pode pedir ao Dr. Spinoza. - disse-me o comandante.

- Vou só apanhar ar. - Abri a porta e o ar frio com espuma marítima atingiu-me a cara, o que me melhorou imediatamente a disposição. Olhei para o mar em frente e do lado direito vi a costa, coberta pelas paredes de pedra e cimento que se erguiam à frente das povoações da Zelândia. As cheias durante as últimas décadas tinham sido devastadoras, mas era com betão que a Holanda tentava combater a subida do mar. Um pouco à frente, uns sete navios, principalmente cargueiros, estavam em fila. O Hopp Winnen mudou de rota na sua direção. Abriu-se a porta da ponte e saiu a Imediato.

- Melhor?

- Muito. O que são estes navios?

- Vamos com eles em comboio. Ainda vamos apanhar outros em Felixstowe, Portsmouth e

Edimburgo. E talvez algum irlandês.

- Porquê?

- Segurança, principalmente. Estamos no último comboio do ano, por causa dos furacões e da agitação marítima. Daqui a algumas semanas fica mesmo perigoso, com as frentes frias polares a criarem tempestades, com as armadas de icebergues e as grandes ondas causadas pelo colapso do gelo da Gronelândia. Temos a navegabilidade do Atlântico reduzida a sete ou oito meses por ano. E de vez em quando, aparecem-nos os piratas do Ártico.

- Piratas do Ártico? Vêm de onde?

- A maior parte são embarcações que vêm de antigos territórios russos, mas com os verões sem gelo já houve ataques de piratas asiáticos, que atravessam o pólo Norte. Geralmente são lanchas rápidas, mas já vi até fragatas. Há rumores de cidades, indústrias e até refinarias piratas a funcionarem no mar de Kara.

- Onde é isso? - Comecei novamente a ficar preocupado, nunca tinha ouvido falar em nada daquilo.

- Bem lá no Norte. Mas não fique nervoso. Estes ataques eram bastante frequentes há uns anos atrás mas baixaram muito. Além disso, vamos acompanhados por um barco de guerra, armado para dissuadir piratas.


Começou a chover e a Imediato convidou-me a voltar para a ponte, mas preferi ir para baixo. O embalo do barco aumentava. Enquanto descia as escadas vi as seis “velas” do Hopp Winnen rodarem sonoramente. Eram uma combinação de painéis solares com turbinas eólicas que produziam a energia necessária para fazer funcionar os motores elétricos do navio. Chegando ao fundo das agitadas escadas encostei-me à borda e vomitei o pequeno-almoço. Ligeiramente aliviado, meti pelo corredor na direção do






meu camarote, enquanto o chão balançava de um lado para o outro. Enfiei a chave na porta do camarote e reparei que estava aberta. Em cima da cama estava uma nota e um saquinho de papel com comprimidos. A nota dizia em inglês “Para o seu alívio, tome dois com bastante água. Dr. S.”. Tirei os aparelhos, tomei os comprimidos e deitei-me, ansioso para que a agitação ou o meu enjoo passassem.


Quando acordei estava escuro. Senti um ligeiro balouçar do navio, mas nada que se comparasse com o que se tinha passado na saída da barra. Estava muito melhor, sem dores de cabeça ou náuseas. Levantei-me e apercebi-me da fome que tinha. Saí do camarote. Não sabia onde ir para comer. Não havia nos sinais nada que indicasse comida, ou pelo menos não me apercebi naquela língua. Caminhei novamente na direção da ponte, à procura de alguém que me pudesse ajudar. Mas foi o ruído que me levou até a uma porta exatamente igual às dezenas de outras pelas quais tinha passado, mas que dizia “Scheepskantine”. Quando entrei, várias cabeças viraram na minha direção. Era uma sala grande, com duas mesas brancas corridas onde estavam sentadas três pessoas e vários sofás fazendo de anfiteatro para uma parede branca. De entre as pessoas sentadas nos sofás, o comandante levantou-se e veio ter comigo.


- Está melhor, sr. Águas?

- Estou. E pode chamar-me Alex.

- Guardámos-lhe um prato com o jantar. Vamos começar a ver um filme. Quer juntar-se a nós?

- Sim, claro. Mas tenho de comer.

- Johann, traz o prato do convidado!

Um rapaz com os seus 20 anos trouxe o prato, talheres e um copo com água e gelo, que pousou numa mesa.


- Baixa a luz, põe o filme. - gritou o comandante. Na mesma mesa que eu estava sentado o mal encarado Enke.

- O filme de hoje é a grande aventura “As rosas da fome”.

- É propaganda comuna! - gritou ao meu lado Enke. A sala riu-se. Uma mulher morena virou-se do sofá para trás e respondeu.

- Para ti todo o mundo é propaganda ecomuna.- toda a gente se riu, e Enke também.

Enquanto eu comia, começou a projeção. Era um filme de ação durante acontecimentos históricos famosos. Contava a história de Oan Reznan, adolescente ficcional de Bucareste. Durante o ano 1.8 e com o avançar do verão, ela sofria em casa com o calor e os cortes de energia cada vez mais prolongados. Vivia sozinha com a mãe e tiveram de gastar todo o dinheiro para comprar um ar condicionado. Depois de um alívio temporário, o drama agravava-se, com violinos nada subtis a puxarem as lágrimas enquanto a mãe de Oan morria com falta de ar a meio da noite, deixando-a sozinha no mundo. Oan acabaria a correr desesperada pela noite da cidade à procura de outros membros da família, enquanto sem-abrigo mortos na rua eram comidos por ratazanas. Depois de colapsar de exaustão, Oan tinha sido raptada por um clã de mafiosos e traficada para um bordel clandestino em Augsburgo, na Alemanha. Aí viveria uma horrível exploração sexual cujos detalhes o filme não poupava, que só acabaria com uma revolta conjunta com outras pessoas presas no bordel. Mataram os mafiosos que geriam a casa e ocuparam o antigo bordel, raptando e chantageando vários dos clientes com o objetivo de juntar dinheiro suficiente para organizarem o regresso aos seus diversos países. Nesse período também se treinavam para defender-se dos mafiosos, adquirindo armas e tornando-se temíveis com elas. Infelizmente para a sororidade, quando estavam próximas de ter o dinheiro suficiente, ocorreria o

Roses of hunger

young woman crossed her hands into fists on her chest.

colapso financeiro após o Setembro Vermelho. Na convulsão social que atravessava a Europa, acabariam por ficar em Augsburgo e ligar-se aos movimentos revolucionários, assumindo o nome de Rosendorn (algo como “espinho da rosa”). No ano seguinte chegava a grande fome de ’27. A sororidade organizava assaltos a supermercados de luxo e distribuía os produtos nas comunidades mais pobres, tornando-se um contrapoder dentro da cidade e uma das entidades mais odiadas pela extrema-direita em recomposição. Numa cena muito empolgante, as Rosendorn atacariam uma parada fascista da nova Muralha, um confronto que deixaria dezenas de mortos. A sala de cinema aplaudia. Após cenas de amor entre Oan e outras mulheres chegaria o final do filme, com as Rosendorn a liderar uma coluna de tratores que avançavam sobre Berlim, distribuindo comida pelo caminho.

As pessoas levantaram-se e começaram a sair. Enke aproximou-se de mim e puxou conversa. Ofereceu-me um cigarro, que aceitei. Saímos para a coberta.


- Vocês gostavam que as coisas tivessem sido como no filme, mas não foi assim.

- Esteve lá, Enke?

- Lembro-me bem desta altura, já era bem adulto. Velho, mesmo. Lembro-me dos governos darem ordem às pessoas para apagarem luzes e manterem apenas aparelhos de ventilação e refrigeração. Lembro-me das corridas aos ares condicionados e dos especuladores venderem aquilo a dez vezes o preço normal. De centenas de pessoas morrerem de calor em festivais de verão e presas em filas de trânsito. Lembro dos partos prematuros e abortos espontâneos nas ondas de calor. E das crianças que nasceram na altura e morreram pouco tempo depois, sem conseguir respirar.

- Isso foi na Alemanha?


- Não, eu sou holandês. E lembro-me que não foram essas putas e travecas que travaram os malucos da Muralha.

- Quem foi então?

- Descarbonários e o Exército Verde. Gente perigosa.

- Se calhar na Alemanha não foi assim. Não se passava lá o filme? E não é ficção?

- É propaganda vossa.

- Você não era da Muralha, então?

- Não. Mas eu vi a Muralha crescer na Holanda. Com a fome, dois grupos explodiram de tamanho: Muralha e Ecomunistas. E não há grande dúvida que as paradas da Muralha, as suas manifestações eram um grande sucesso. Eram um movimento muito popular nessa altura, especialmente entre os jovens rapazes, que olhavam para tudo aquilo com fascínio, apesar dos comunas serem muito espetaculares na sua ação. Mas a Muralha é que dominava o que ainda havia de redes sociais e uma boa parte dos jornais.

- Então mas você era o quê?

- Eu era do CLODO.

- CLODO?

- Comité Liquidatório e de Subversão dos Computadores. As pessoas chamavam-nos Neoluditas.

- Os neoluds não estavam do lado dos revolucionários?

- Nós estávamos do lado da ação. Sabotagem. Mas não estávamos com os ecomunistas, a sua ideia de sociedade era e é uma traição. Querem travar o inevitável e fingem que são diferentes dos que lá estavam antes, mas continuam obcecados com tecnologia. Há vários traidores do nosso lado que se passaram para lá. Eles é que me denunciaram, por isso é que estou aqui.

- Está a cumprir punição?


- Sim. Há dois anos. Mas querem que fique dez. Muito justos. A tal da “justiça climática”. - fez sinal com os dedos, sorrindo.

- Mas punição por quê?

- Fui acusado de destruir os estaleiros de mega eólicas na Dinamarca.

- E destruiu?

- Ninguém se queixou quando a fábrica da Jaguar em Solihull, ou a sede da Bayer em Leverkusen explodiram.

- Mas destruiu as mega eólicas? - Enke olhou para mim e reacendeu o seu cigarro, que se tinha apagado. Fez uma pausa antes de voltar a falar.

- Depois das revoluções europeias, eu e vários companheiros abandonámos a CLODO porque fizeram uma aliança com os comunas. Nunca nos perdoaram. Por isso começou a perseguição política. É por isso que estou aqui. Você sabe como funcionam as coisas no novo sistema. - Desisti de insistir.

- E as outras pessoas aqui? Os outros tripulantes?

- Há mais uns companheiros do CLODO. E três muralhistas, mas quase não aparecem nos espaços comuns. O resto são uns pobres coitados. Até mandam para aqui ecomunistas párias que não andam a obedecer aos chefes.

- E quem são os chefes?

- Há vários. Mas o topo topo, que eu saiba, são as borboletas. Nunca se sabe bem, eles escondem-se em comissões e comités. Mas depois há assembleias para tudo, reuniões para tudo. Adoram. - riu-se.

- Bem, vou dormir, Battacharaya.

- Porquê Battacharaya?

- Não é o nome do vosso escritor de serviço?

- O Sukumar?

- Sim. - Virou-se e começou a abrir a porta para entrar.

--Vemo-nos por aí?

- Se tiver de ser. - respondeu-me, atirando o cigarro apagado para o mar.


O dia seguinte passou rápido, chuvoso mas com ondulação tranquila. Ainda assim senti os enjoos quando tentava pegar nos livros. Quando abandonámos o Mar do Norte, já num comboio de quinze navios, tudo piorou. Recebemos a informação pelo sistema de som que era obrigatório andar sempre de colete salva-vidas fora dos espaços comuns. Ficava horas no quarto, preso, tendo de correr para a messe e de volta. Se pusesse um pé fora, ficava encharcado. Estava a ser uma viagem infernal, dias e dias de náuseas e vómito, mesmo com os comprimidos do médico. Ainda bem que a Lia e o António não tinham vindo.


A meio da noite acordei, projetado da cama contra a parede. Um alarme sonoro ensurdecedor começava a tocar. Era difícil manter-me de pé, tal era o balançar do chão. Pus o colete salva-vidas e saí para o corredor, onde já estava a maior parte dos tripulantes. A Imediato começou a falar.


- Senhoras e senhores, devido ao mau tempo perdemos vários contentores a estibordo. O navio está desequilibrado e a virar-se. - as pessoas entreolharam-se, apreensivas. - Estamos em maus lençóis. Mas estamos a meio do comboio, se tivermos de abandonar o barco, será fácil sermos recolhidos, se tudo correr mal. Vamos tentar reequilibrar lançando ao mar alguns dos contentores a bombordo. Preciso dos operadores de gruas e de dois estivadores de

contentores. A restante tripulação deve dirigir-se aos navios salva-vidas. - O navio abanava e rangia


Três homens que eu não conhecia e Enke aproximaram-se da Imediato, enquanto nós seguíamos na direção da ponte. O comandante dava ordens para entrarmos nos dois grandes botes salva-vidas cor-de-laranja. Uma vez lá dentro, sentei-me e abracei como pude as minhas pernas. Se arrependimento matasse… Porque me tinha metido eu nesta loucura? Toda a gente sabe que o mar é um sítio perigoso, e agora mais perigoso que nunca. A porta do bote estava aberta, com o piloto a olhar para fora, à espera de perceber o que fazer. Eu já tinha vindo aqui. Sabia que se fosse para abandonar o navio, o piloto fecharia a porta redonda e viraria a grande maçaneta de roda até trancar a porta-estanque, altura em seríamos descidos até ao mar. Dentro do bote tudo abanava também. Éramos cinco lá dentro. Além de mim que estava em pânico, as outras estavam estranhamente tranquilas.


- Vai correr tudo bem. No pior cenário vamos tomar o pequeno-almoço com os alemães ou os escoceses. - Disse-me uma mulher morena com os seus quarenta anos, colocando-me a mão sobre o ombro.


Senti tudo levantar-se e cair uns três metros de uma vez, batendo com a cabeça no tecto e depois no lugar onde tinha estado sentado. Ficámos espalhados dentro do bote, com o piloto caindo para dentro connosco. A mulher sangrava da cabeça depois de ter batido violentamente em algo. Tentámos recompor-nos. Nessa altura, o sinal de alarme parou de tocar. Outra tripulante olhou pela porta aberta, enquanto o piloto

tratava do ferimento da mulher. Passado uns minutos ouvimos a voz da Imediato no sistema de som:

- Podem sair dos botes salva-vidas, a situação está controlada.

De regresso à coberta dei de caras com uma grande comoção não muito longe da porta do meu camarote. Enke e outro homem gritavam com o comandante.

- Mas eles não são da Muralha nem neoluds. São dos vossos!

- Oh Enke, não digas coisas estúpidas. - respondeu o comandante. - Eles vão ser recolhidos pelo resto do comboio. Já os avisámos.

Dois dos tripulantes tinham caído ao mar na operação de despejar os contentores. Enke passou, furioso. Parou, dirigiu-se a mim e disse:

- E vocês também matam muitas vezes as vossas pessoas. Escreve isso na tua história!


Os dois homens não foram recuperados. Segundo a Imediato e o Comandante, teriam sido arrastados para o fundo presos aos contentores. Os restantes dias da viagem, apesar da significativa melhoria nas condições do mar, foram passados com um péssimo ambiente a bordo, com a maior parte da tripulação simplesmente pegando a sua comida na cantina e levando-a para comer nas cobertas.

Quando finalmente chegámos aos Estados Unidos, vários navios se separaram, descendo rumo a Sul, enquanto nós entrámos na barra, acompanhados por dois navios alemães. Abrimos caminho no meio de um mar de medusas, a maior parte das quais brancas ou transparentes. Eram milhões naquela zona, empurradas por ali pelo vento. Durante a viagem tinham-me explicado que em vários locais havia mais medusas porque os seus predadores estavam em queda. Eram um mau sinal.


Estava à espera de subir o rio Hudson e ver a estátua da liberdade, Ellis Island e os arranha-céus, mas virámos à esquerda e subimos para Nova Jersey, aportando na Baía de Newark. Fui dos primeiros a desembarcar, abençoando a doca firme em que finalmente pisava. Não queria repetir. Depois de despedir-me do Comandante e da Imediato ainda olhei em volta à procura de Enke ou de outras pessoas conhecidas, mas não vi ninguém. Dirigi-me ao homem com a farda do Exército Verde, apresentando-me.




arame farpado na rebentação

arame farpado na rebentação

O homem que me recebeu na doca de Nova Jersey era alto, vestia farda do Exército Verde e tinha uma farta cabeleira loira e óculos de sol. Chamava-se Edward Boston. Perguntou-me pela viagem e eu disse-lhe apenas que se pudesse evitaria repeti-la (escondendo a realidade sobre o terror da viagem para mim). Disse-me que tínhamos um almoço à espera com membros do partido na sede do Movimento Ecomunista em Hoboken, a seguir ao qual poderia começar entrevistas. Informou-me ainda que eu poderia ficar hospedado lá. Antes de partirmos em bicicleta, liguei à Lia. Estava na viagem de regresso a Lisboa. Tinha parado em Barcelona com o Ettore.

- Chegaste? - Perguntou-me Lia, preocupada.

- Sim, finalmente.

- Não pode ter sido assim tão mau. - tinha conseguido fazer algumas curtas chamadas com Lia antes de sairmos do Mar do Norte, mas depois tínhamos ficado sem sinal.

- Já estou em pânico com a ideia da viagem de volta.

- Esperava que tivesses gostado. Mas o que aconteceu?

- Muito mau tempo. Pessoas a cair ao mar. Estivemos todos dentro do salva-vidas prestes a abandonar o barco por causa do mau tempo.

- Oh não! E as pessoas que caíram?

- Acho que morreram. Mas ninguém pareceu ligar demasiado. Foi horrível. Pelo menos não apareceram piratas. Como está o António?

- Alex, e estás bem?

- Tanto quanto é possível. E o António?

- Está bem. Bem disposto. Falei com a Josephine e ela sugeriu que eu te ajudasse com o livro. Deu-me muito material. Uma parte vou enviar pela internet. Será que também posso enviar coisas por correio?

- É impossível receber coisas por correio, porque vou estar sempre em movimento. Mais vale juntarmos o material quando eu voltar.

- OK. Olha, como não és muito organizado, vou-te enviando algumas coisas que acho que te podem ajudar, cronologias de eventos importantes ou a forma como as organizações se relacionam umas com as outras e assim.

- Isso vai ajudar imenso com as minhas pesquisas. Já percebeste que está tudo bastante confuso, não é?

- É normal, ainda estás a reunir a informação.

- Obrigado pela ajuda. E pelo apoio. Olha, tenho aqui um americano à minha espera, para me levar a almoçar ao partido ecomunista.

- Como é Nova Iorque? Já viste a Estátua da Liberdade?

- Não, viemos para Nova Jersey, mesmo ao lado.

- Oh, que pena. Se precisares falar mais tarde, liga. O António acordou e vou dar-lhe de mamar. Muitos beijos, meu amor.

- Amo-te muito, Lia.

- Eu também.


Edward tirou uma bicicleta dupla do estacionamento e colocou as minhas coisas num carrinho fechado de duas rodas que vinha atrás. Sentou-se à frente e eu no selim traseiro. Ligou o pequeno motor elétrico e arrancámos.

- Não precisa de pedalar, se não quiser.

- Obrigado.

Percorremos as ruas de Nova Jersey cheias de pessoas, bicicletas, skates e trotinetes. Pareceu-me muito mais caótico do que já tinha visto em qualquer outra cidade. Os

telhados dos prédios brilhavam com o reflexo do sol nos painéis solares, enquanto a nível da rua pequenas farmácias e lojas de reparações pontuavam os largos passeios onde grupos de jovens se reuniam em conversas animadas. Árvores jovens e arbustos preenchiam o centro das ruas, intermediadas por pequenas fontes a cada 200 metros. No que parecia ser um antigo “mall” erguia-se agora um enorme complexo hospitalar, cujo nome em grandes letras soletrava “Veteran’s Hospital”. Um outdoor abaixo dizia “No fees or insurances”. O céu ficou cinzento e começou a carregar-se. Apesar do calor, caiu uma tromba de água mesmo em cima de nós. Tive receio que aquilo pudesse estragar os meus livros e computador. Toquei nas costas de Edward e ele encostou. Apontei para o carrinho. Ele tranquilizou-me: “It’s waterproof!”. Era à prova de água.

Mas a roupa não era e passado 20 minutos a pedalar pela faixa ciclável, finalmente chegámos ao edifício. As ruas tinham-se esvaziado. Apesar da pesada chuva, pude apreciar o bonito edifício que era a sede do movimento. Parecia ser bastante antigo, com letras metálicas descrevendo: ECOMUNIST MOVEMENT - US - NEW YORK DIVISION. O rés-do-chão era composto de montras de vidro, sob as quais estava pintado um enorme mural onde se viam membros do Exército Verde escavando o solo em conjunto com camponeses. Pareceu-me um pouco antiquado.

- You should go up to your room and change! (Vai ao teu quarto mudar de roupa). - apontou-me para uma porta metálica ao lado dos vidros es um código que a abriu.


Quando entrei havia um homem muito grande e gordo no corredor, que me cumprimentou com um largo sorriso:

- Olá, companheiro. Bem-vindo. - Abriu-me a porta de um dos quartos que havia dos dois lados do corredor. - Estás encharcado. Vou buscar-te roupa seca.


- Obrigado. - Abri a minha mochila e de facto estava tudo seco. Tirei os livros e o novo computador que o Gianni me tinha dado. Havia internet. Abri os correios que a Lia me tinha enviado. Entretanto, o homem bateu à porta e entrou. Trazia uma espécie de macacão verde, parecido com uma farda do Exército Verde, mas menos marcial. Ele próprio tinha um macacão parecido, embora o seu fosse azul claro. - Aqui tens.

Depois de mudar de roupa sentei-me para começar a ler o que a Lia me tinha enviado quando Edward bateu à porta. - Vens? - disse a sua voz lá de fora. - Tens um monte de gente lá em baixo à espera para te conhecer.

- Vou, vou. - As leituras teriam de esperar. Pus os meu Babel.


Na sala principal estava posta uma mesa cheia de comida, com várias pessoas de pé à sua volta. Edward pigarreou e toda a gente se voltou na nossa direção.

- Olá companheiras e companheiros. Este é Alex Aguas, o companheiro que vem de Portugal numa missão para o Movimento. - fazia-me alguma confusão toda a gente achar que eu era ecomunista. - Ele poderá contar-vos um pouco sobre o que se passa na Europa, mas principalmente, têm de ajudá-lo com a informação de que ele precisa. - Um a um aproximaram-se de mim e apresentaram-se:

- Leticia Gold, energia. - fez uma ligeira vénia com a cabeça ruiva.

- Diego Patrizio, educação. - estendeu-me a mão.

- Lizzi Tyler, moral revolucionária.

- Ellie Lumpert, justiça.

- Oscar Gonzalez, calor.

Eram doze no total, cumprimentaram-me um a um, falando de diferentes áreas da sociedade em que os ecomunistas estavam envolvidos, que eram todas. Tinham entre

vinte e trinta anos e alguns vestiam os macacões verdes. No final, claro que não me lembrava do nome nem da área de ninguém. Tinha um formulário preciso de perguntas que Gianni tinha posto no computador. Propus falar com cada um após comermos, e toda a gente aceitou.


Durante a refeição fui bombardeado por perguntas sobre os mais variados temas - se ainda havia Muralha na Europa depois da amnistia, como corria a luta contra a Máfia, como se tinha lidado com o calor este verão, como estava a correr a guerra contra o Estado Islâmico no Médio Oriente e no Congo. Poucos me perguntavam sobre Portugal, do qual sabiam pouco. Apenas um homem latino, Óscar, me perguntou sobre Lisboa.

- Ouvi dizer que as cheias na cidade há uns anos foram terríveis. Como estão agora?

- Agora estamos mais num ciclo das secas. Considerando o calor que esteve na cidade, correu razoavelmente bem. E mesmo a nível de incêndios temos muita capacidade de combate em relação ao passado.

- Vocês não têm problemas de bolbo húmido mortal, não é? - acenei que não - É óptimo. Mas fale-me sobre a floresta. Vocês fizeram um grande projeto.

- Sim, mas mais no campo do que em Lisboa. Plantaram-se ao longo dos últimos doze anos centenas de milhares de hectares com carvalhos e castanheiros, outras espécies locais e do Norte de África. Foram plantadas no antigo deserto verde, a mistura de eucalipto com acácias e outras árvores explosivas. É um grande projeto de substituição de paisagem. Até agora os incêndios têm baixado, mas também temos muito mais gente a viver perto de áreas florestais, então estão mais limpas e há maior vigilância. Aqui não há grandes problemas de incêndios, pois não?

- Aqui mesmo apanhamos com o fumo vindo de outros locais: do Canadá, do Quebec, e


do Sul, do Mississippi e do Alabama. Por vezes, até chega o da Amazónia. Por isso, nos meses mais quentes é frequente haver alarmes de ar perigoso e não podermos sair de casa. Às vezes os fumos e cinzas entopem mesmo as bombas de calor e sistemas de refrigeração.

- Como está a situação de água e calor em Nova Iorque?

- A humidade aumentou bastante, e por isso temos grandes trombas de água. Felizmente os projetos de aumento de infiltração têm diminuído bastante as cheias. Há pelo menos quatro anos que ninguém morre numa. Por outro lado, já tivemos emergências de bolbo húmido no verão mais que uma vez, e este ano instalámos os alarmes de bolbo húmido - olhe, está ali o gráfico. As pessoas ainda não se habituaram aos graus Celsius. Apesar do nevão de há umas semanas, em geral deixámos de ter invernos brancos. Para reduzir o efeito de ilha de calor, estamos a reduzir a altura dos arranha-céus, combinando com florestação e o levantamento do alcatrão, mas há muita gente a resistir.

- A resistir?

- Sim, manifestações contra o desmantelamento de torres, bloqueios quando estamos a tirar alcatrão. Geralmente são as pessoas de Manhattan. Que ainda por cima é das zonas onde mais cheias há. - Fez uma pausa e olhou-me. - Que idade tens, Alex?

- Tenho 30, porquê?

- Nada, curiosidade. E estás no movimento há muito tempo?

- Na verdade, não estou. Quer dizer, estou a fazer este trabalho, mas não sou oficialmente membro de nada. E até há uns meses apenas participava em Lisboa.

- Então como vieste aqui parar? - parecia desconfiado.

- Eu estou a escrever um livro sobre a Grande Mudança e um dos dirigentes italianos do movimento, o Gianrocco Fratin, propôs-me que viesse fazer este trabalho no continente americano.



- Fratin? É um dos grandes dirigentes europeus. Costumamos ler algumas coisas que ele escreve. Como é que ele é?

- É muito simpático. A minha mãe foi militante também. Marta Garrida.

- Não sei quem é. - sorriu.

Entretanto virei-me para Edward e perguntei-lhe também pela minha mãe.

- Ela foi dirigente do Exército Verde.

- Quando?

- Acho que ela esteve cá no fim da Guerra Civil e nos anos seguintes.

- Do que eu sei, nessa altura não havia cá Exército Verde. Mas também só estou no movimento há quatro anos.


Terminado o almoço, as pessoas levantaram os pratos e comecei a fazer entrevistas. Eram todas relativamente parecidas, mas ainda demoravam uns 20 minutos a responder a cada formulário. Demorei a tarde toda. As últimas pessoas que ficaram já estavam bastante aborrecidas e reclamavam com Edward, que lhes dizia que tinha de acontecer hoje. Quando acabámos finalmente, mais de três horas depois, enquanto o último saía, Edward reapareceu trazendo um prato de comida para mim.

- Terminou todos os relatórios?

- Sim, felizmente. - Estava mesmo cansado.

- Amanhã tem o dia livre mas o plano é seguir de comboio para Minneapolis no dia depois de manhã. Já lhe enviei pela NYNET a informação de transportes e coisas interessantes acerca da cidade.

- OK, eu vejo no quarto então. - Peguei no prato e no computador e levei-os comigo. - Levo a comida para o quarto. Vemo-nos amanhã?

- Estarei aqui de manhã. Se precisar de alguma coisa, pode pedir ao Karl, que deve andar pelo corredor ou no seu quarto, que diz “Cuidados” na porta. Boa noite.

- Boa noite, Edward.


Quando entrei no quarto deitei-me, exausto. Fechei os olhos alguns minutos. Depois sentei-me e peguei no relatório sobre a viagem da minha mãe desde as Honduras até à Califórnia. Li umas linhas, mas estava demasiado cansado. Abri o computador, voltando às mensagens da Lia.


A primeira era uma lista de todas as organizações sobre as quais tínhamos falado, e uma espécie de esquema de ligações das organizações entre si. Tinha não só as ligações próximas dos ecomunistas e Tratado Mundial, mas também as da Muralha e da máfia. Outro ficheiro que me enviou era um podcast de um livro sobre Moçambique, de onde era a minha avó paterna. Abri o documento e pu-lo a tocar enquanto comia. Era um livro escrito por Ali Macuácua, chamado “Riptide Barbed Wire”, “Arame Farpado na Rebentação”, uma história sobre o norte de Moçambique antes das guerras santas e das revoluções que levaram à criação da República Oriental Africana.


I


O dia começou nebuloso e cinzento. O Ibo tinha sido um lugar tão solarengo desde a chegada, há alguns meses, que hoje parecia um sonho. Rassaba sabia que o dia ia ser uma loucura. Tinha de juntar os seus poucos pertences, as roupas dos miúdos, os brinquedos e os


medicamentos de Ali antes de partir. Tinham sido convidados por TiAlice para ficarem em sua casa com a família dela, pois as tendas brancas dos refugiados não podiam aguentar a tempestade. Ainda assim, não havia ninguém para fechar as tendas e guardá-las. Com sorte, alguma coisa poderia sobreviver. Ou talvez a tempestade não fosse assim tão má. Se calhar depois da tempestade o administrador conseguisse encontrar uma casa para eles, como tinha prometido no dia em que ela e o irmão tinham desembarcado. Ou talvez houvesse uma forma de regressar a terra firme. Entre dormir e acordar, Rassaba tentava reunir um pouco de energia para aguentar o dia. As crianças estavam um pouco mais letárgicas, acordadas mas deitadas, em vez de gritarem e pularem. Tinham ficado cada vez mais assim desde que tinham perdido os pais. Assante, o mais pequeno, que tinha começado a falar com um ano, tinha parado de o fazer. Pelo menos na semana anterior tinha voltado a sorrir. Abriu metade dos olhos e Raissa, a segunda mais velha, estava a olhar para ela, com as duas mãos sob o queixo, sorrindo. Não havia mais como adiar, era altura de se levantar.


Quando abriu a tenda, reparou que toda a gente parecia estar com pressa. A lama era espessa e cheia de marcas de pés e chinelos. Acordou Ali com um beijo carinhoso e disse-lhe para ir fazer chichi. "Mas está a chover!", respondeu ele, mal-humorado, enquanto se dirigia para a rua. Rassaba estendeu a capulana no chão sobre a esteira de palha e começou a abrir os pequenos sacos de plástico um a um: dois pães, arroz cozido, bananas, coco e açúcar. Dividiu a comida entre as crianças mais pequenas, guardando o arroz e alguns pequenos pacotes de caril para mais tarde. Ela comeu apenas um pequeno pedaço de pão e uma banana. Esperava que as mulheres mais velhas lhes pudessem dar mais comida. Provavelmente também havia grandes sacos de arroz armazenados no posto administrativo.







Fechou os sacos com os restos de comida e a capulana azul e amarela com a cara de Josina Machel, e entregou-a a Raissa. Juntou o resto dos pertences num grande saco de arroz branco do PAM. Enquanto Assante e Ali brincavam com um carro de madeira e arame, imitando sons de motores, Rassaba pediu às crianças que esperassem enquanto ela ia ver o mar. Apesar de ter vivido sempre perto dele, nunca se tinha sentido muito à vontade perto da água grande.


Só precisava de andar alguns metros para chegar à praia e ver o Oceano Índico. Normalmente, era azul esverdeado límpido, mas hoje estava cinzento e branco. Diferentes ondas convergiam e batiam umas nas outras, produzindo explosões abafadas. Ela ficou ali, no meio dos barcos ancorados na areia, a olhar para o que parecia ser madeira à deriva a ir e vir. Passados alguns instantes, apercebeu-se de que era um cão castanho que nadava em direção à costa. No entanto, os seus esforços eram em vão, pois era sempre empurrado para o fundo do mar. Desapareceu durante alguns momentos para ressurgir alguns metros mais perto de terra, mas uma onda bateu-lhe na cabeça e ele foi puxado de novo para debaixo das ondas. O focinho preto encharcado apareceu no meio da água branca, com objectos a boiar ao seu lado - cordas, sacos de plástico, algas, restos de redes de pesca - e uivou fracamente, sendo empurrado de novo para a praia. Rassaba observou a cena durante alguns minutos, vendo o cão a lutar para se manter à tona e chegar a terra, enquanto se afastava cada vez mais das areias brancas. Por fim, já não conseguia ver mais nada e começou a choviscar.


Voltou para a tenda e chamou toda a gente. Os quatro - Rassaba, Raissa, Ali e Assante - saíram em direção à cidade de cimento, com os chinelos a baterem palmas nos pés quando se descolavam do chão lamacento. Começaram a andar na velha calçada de Ibo, debaixo de

chuva.


A TiAlice falava Mwani, ao contrário da maioria das pessoas do Ibo que a Rassaba tinha conhecido. Muitas pessoas de Macomia e mesmo algumas pessoas que Rassaba conhecia de Mocimboa encontravam-se ali. Tinha-se tornado um ponto de encontro regular, em particular para os refugiados mais jovens. A TiAlice era curandeira, embora alguns lhe chamassem feiticeira, e distribuía peixe seco ao grupo de vinte e poucos que se reunia no seu alpendre e debaixo das árvores da rua em frente à sua casa. O grupo não queria que outros se juntassem, mas a filha de Alice continuava a trazer mais pessoas e distribuía bananas aos outros moradores da rua que passavam, indo e vindo do acampamento.


Naquele dia, quando os quatro chegaram à porta da casa dela já chovia e não havia ninguém do lado de fora. Rassaba bateu à porta e a velha curandeira abriu-a com um sorriso largo, a que faltavam alguns dentes de lado. "Sejam bem-vindos, meninos, tirem os sapatos e sequem-se". Tinha um pequeno fogão a aquecer a cozinha, onde alguém estava a cozinhar amendoins. Os rapazes tiraram as camisolas (uma do FC Barcelona, a outra do Bayern de Munique) e secaram-se numa capulana xadrez que a TiAlice lhes tinha emprestado.


Sentaram-se na cozinha enquanto outros foram chegando ao longo da manhã. Rassaba conhecia todas as pessoas que ali estavam. A maior parte tinha vindo do continente depois de o Al Shabab ter atacado as suas aldeias. Os quatro irmãos, agora sob a alçada da irmã mais velha, tinham perdido os pais para os terroristas e para a polícia. As histórias terríveis que tinham para contar sobre decapitações, violações, mortes, fugas e esconderijos escuros eram partilhadas com muitas das outras pessoas que ali se encontravam. Tinham acabado por se

sentir confortados por essa herança comum de horror, dor e perda, pelo companheirismo de partilhar a miséria da deslocação. Muitas vezes choravam nos braços umas das outras, ela e as mães que tinham perdido os filhos e as filhas, os adolescentes e as crianças que estavam agora sozinhas no mundo, ou que simplesmente se tinham separado dos pais e não sabiam nada das famílias que lhes restavam. A TiAlice tornou-se um lugar comum e uma pessoa comum para esta assembleia de tristeza, que ela iluminava com a sua bondade, as suas sopas quentes e as suas canções. Era velha, mas ninguém sabia dizer quantos anos tinha. A filha devia ter uns cinquenta anos, e nunca viram outros filhos ou netos, o que era muito estranho, mas talvez não para uma feiticeira. Ela disse que agora era do Ibo, que tinha sido a sua casa durante muitos anos, mas que a sua casa tinha florescido com a chegada dos refugiados. Naquela manhã, ninguém estava a recordar as tragédias recentes. Todos estavam preocupados com o futuro, não com o passado.


Pelas onze da manhã chegaram as últimas pessoas: um homem forte e muito escuro entrou com a filha da TiAlice. Tinha uns 20 anos, mais velho que ela, e sorria para todos quando passava. Perguntou a Rassaba, em swahili, se se podia sentar ao lado dela e ela acenou com a cabeça em sinal de concordância. Rassaba estava sentada com Assante ao colo. O homem, que se apresentou como Ismail, estava encharcado e disse-lhes que estava mesmo a chover um dilúvio lá fora, com um rio no local onde uma hora atrás estava uma rua. O vento assobiava no telhado de zinco e nas janelas fechadas com tábuas. A Tia deu a cada um meio pão e alguns amendoins e todos os mordiscavam. Dois homens mais velhos fecharam a porta com pregos e um martelo. Por volta do meio-dia, a casa tinha trinta e uma pessoas e dois cães dentro. De vez em quando, outras pessoas batiam e gritavam lá fora, pedindo para entrar, mas a Tia não dizia nada e ninguém intervinha em seu favor.








As crianças cantavam alto enquanto a TiAlice e a sua filha consolavam as pessoas e distribuíam água. Havia um quarto nas traseiras com uma latrina no chão, protegida das vistas apenas com uma velha cortina colorida como porta. O teto da cozinha e das salas, mal iluminado por candeeiros simples, começou a pingar. Primeiro gotas pequenas, depois gotas grossas e, por fim, um fio constante de água corria junto às paredes e nos fios eléctricos que levavam às lâmpadas. Por fim, a eletricidade da casa entrou em curto-circuito, com o estrondo de uma das lâmpadas. Rassaba nem sequer sabia como é que a casa da Tia tinha eletricidade, pois não tinha visto nenhum gerador no exterior. A casa estava agora às escuras, com uns fios de luz a entrar pelas fendas das janelas e do teto. Raíssa e Ali, que até então cantavam meio divertidos meio assustados, sentaram-se ao lado de Rassaba, seguraram as mãos um do outro e choraram. Assante mantinha os olhos fechados, enquanto ela cantarolava canções de ninar ao seu ouvido. As horas foram passando.


O som lá fora era tão alto que parecia que em toda a casa havia pessoas a gritar e a bater para entrarem. A latrina não tardou a transbordar e vários centímetros de água fétida começaram a subir à sua volta. Rassaba sentiu nitidamente pêlo molhado roçar-lhe as pernas e, ao seu lado, Raíssa estremeceu quando uma ratazana tentou subir-lhe pela perna. Todos já estavam de pé, exceto Alice, que tinha um banco de madeira onde se sentava e fumava um cigarro Chesterfield ao contrário, com o filtro de fora. O som tornou-se tão alto que a maioria das pessoas tapou os ouvidos. As crianças choravam agora, mas já não se ouvia nada, exceto o vento e a chuva do ciclone Kenneth.


Quando a água lhes chegou aos joelhos, Ismail começou a gritar e dirigiu-se a TiAlice, apontando para cima. Rassaba entendeu: deviam tentar encontrar um sítio mais alto para

ficar. Rassaba pensou no sítio onde tinham dormido naquela noite, muito abaixo do bairro de cimento, e em todas as tendas que lá estavam montadas. Já deviam estar completamente submersas, assim como todos que tivessem ficado, ignorando os avisos. TiAlice fez um gesto para que todos se acalmassem, segurando com as mãos alguns dos seus móveis que flutuavam. O som continuava a aumentar, e não se ouvia mais nada. Era como estar no meio de ondas de choque ininterruptas. As pessoas olhavam umas para as outras e gritavam, mas nada se ouvia, o que as obrigava a recorrer a sinais, pouco visíveis no escuro.


De repente, a cozinha ficou um pouco mais clara. A luz vinha da sala ao lado. Todos olharam para lá, onde o telhado de zinco começava a subir, deixando entrar luz, vento e chuva. As crianças agarraram-se a Rassaba e ela, por sua vez, agarrou-se ao braço de Ismail. Estavam agora a levar com muita chuva na cara. E então aconteceu.


A parede de adobe onde se encontrava a porta de entrada ruiu subitamente para fora, arrastando consigo partes do chão. Uma jovem mulher foi arrastada para fora com o chão de terra. Se não fosse um grupo de mãos que a segurou e puxou, ela teria desaparecido na forte torrente de lama que corria ruidosamente lá fora. Toda a gente recuou do local onde se encontrava a parede. O telhado tremeu e as pessoas cobriram as cabeças. Mas em vez de desabar, simplesmente desapareceu voando pelo ar, fazendo com que todos os que estavam nas quatro divisões da casa semicerrassem os olhos por causa do clarão de luz que entrava em toda a casa. A parede da cozinha começou a desmoronar-se de cima para baixo, um tijolo de cada vez, enquanto Ismail apontava desesperadamente para cima. TiAlice também fez sinal para que subissem a rua das traseiras, apontando para a porta da cozinha. Correu para as outras divisões, cobrindo a cara para se proteger dos destroços que voavam pela casa. Fugir

de casa era urgente e as pessoas começaram a arrancar as tábuas de madeira que protegiam a porta.


Rassaba agarrou em Assante e Ali, com Raissa ao seu lado, e seguiu-os para fora da porta. Queria trazer as suas coisas, mas Raissa não as tinha agarrado e agora era impossível encontrá-las. Carregando o peso dos dois irmãos mais novos e sendo agarrada pela irmã, ao sair, Rassaba pensou que não conseguiria andar muito tempo com todos a pesarem-lhe.


Tinha perdido de vista TiAlice e a filha. A rua principal era um verdadeiro rio de água barrenta e objectos, e a velocidade da corrente ameaçando arrastar quem se atrevesse a aventurar-se nele. Por isso, começaram a andar por ruas mais pequenas, algumas pessoas subindo aos alpendres mais altos. Ao ar livre, ela podia ver que todas as palmeiras tinham caído, a maioria das casas tinha perdido as paredes e muitas não tinham telhados. No céu, voavam todo o tipo de objectos, mas sobretudo folhas de palmeira e telhas, em todas as direcções. Quando estavam a subir o beco que Rassaba pensava ser aquele que Tia tinha indicado antes de sair, um tijolo vermelho caiu mesmo nas costas de Raíssa, que por sua vez caiu na água lamacenta. Rassaba, com duas crianças ao colo, ajoelhou-se ao lado da irmã mais nova, gritando para que ela se levantasse. As suas lágrimas misturavam-se com a chuva forte, enquanto Raíssa lutava para se levantar, coberta de lama e com as costas a sangrar. Rassaba poisou Ali no chão e disse-lhe para lhe agarrar a perna enquanto ela ajudava Raissa a levantar-se e a andar. Caminhavam agora com os pés descalços no meio de um rio de detritos que chegava à sua cintura. Sentiu algo bater-lhe na perna e rasgar-lhe a pele debaixo de água. Teve a certeza de que não iriam sobreviver.









No entanto, o som rapidamente começou a desvanecer-se para quase silêncio e a chuva parou completamente. Agora ouvia distintamente toda a gente, incluindo ela própria, a chorar e a gritar ao longe. Um grupo de pessoas, liderado por Ismail, aproximou-se deles, falando invulgarmente alto, hábito das horas anteriores. Ele pôs Ali às suas costas e deu a mão às raparigas, guiando-as para o forte, rua acima.


Mal tinham entrado no forte quando o som estrondoso recomeçou, com a fúria do ciclone a regressar e os objectos a levantar voo novamente. O antigo edifício não vacilou, no entanto. Apesar da chuva intensa e do vento forte, Rassaba achava que não ia inundar, com sacos de areia a encher as entradas mais vulneráveis. Cães, gatos e ratos corriam de um lado para o outro, mas Rassaba deixou-se sentir mais segura. Pediu a Ismail que a ajudasse a encontrar um sítio para ela e para os irmãos e que alguém lhes tratasse das feridas. Ela tinha um longo corte a sangrar na perna esquerda, Raissa tinha um buraco nas costas e todos eles, exceto Assante, tinham cortes e hematomas nos pés. Ismail disse-lhe que seria difícil obter ajuda médica em breve, apontando para um grupo de macas no chão ao lado deles, onde pelo menos cinco pessoas sangravam abundantemente, rodeadas por duas mulheres com trajes de profissionais de saúde, e duas crianças mortas. Trouxe-lhes ligaduras e uma garrafa de água e tapou-lhes as feridas. Raissa chorou quando ele tentou limpar a sua ferida, que sangrava muito. Os rapazes dormiam numa esteira no chão entre um coro de lamúrias. A nova chefe de família sentia a boca completamente seca. As irmãs deram as mãos e Raissa perguntou: "Que dia é hoje?".


Era o dia 25 de abril de 2019. Pelas 16 horas, o pior do ciclone Kenneth, o mais forte de sempre a atingir a África continental até então tinha chegado e passado sobre o Ibo, seguindo para o

continente, onde devastaria Macomia e Quissanga, atingindo ainda Pemba, Mocimboa da Praia, Palma e toda a costa da província moçambicana de Cabo Delgado. O Kenneth atingiu Cabo Delgado em pleno período de seca. O calor no Canal de Moçambique (o oceano entre a costa de Moçambique e a ilha de Madagáscar) era suficientemente elevado para que Kenneth se intensificasse de uma tempestade de categoria 1 para uma tempestade de categoria 4 em apenas um dia. A velocidade dos ventos atingiu 215 km/h. Mais de 90% de todas as casas de Ibo foram destruídas. Rassaba fez 13 anos nesse dia.


A província mais a norte de Moçambique, Cabo Delgado, teve muitas das suas cidades e aldeias devastadas, mas nenhuma mais do que o Ibo, uma ilha paradisíaca no Oceano Índico conhecida pelos seus edifícios históricos que datavam do século XV, misturando estilos africanos, árabes e coloniais. A ilha fica bem no meio do Parque Nacional das Quirimbas, uma das regiões de maior biodiversidade do mundo, onde tubarões, baleias, golfinhos, tartarugas, raias manta, elefantes, leões, hipopótamos, leopardos, búfalos, kudus, elandes, cães selvagens africanos, hienas e todos os peixes e aves de coral que se possa imaginar existiam.


Em poucos anos, milhões de pessoas seriam mortas e deslocadas, numa guerra entre o Estado Islâmico, o exército moçambicano, mercenários russos do Grupo Wagner e o exército ruandês. Durante esse período, a costa deste Maputo até Palma seria devastada por mais de doze ciclones, por vezes mais do que um por ano. O califado Aden Ayro seria erigido nesse período, ocupando a exploração petrolífera da francesa total no Rovuma, a exploração de diamantes, rubis e madeiras em terra e impondo uma devastação total das áreas florestais, contribuindo assim para o desaparecimento de milhões de animais, incluindo todos os leões, leopardos e búfalos, kudus, elandes, cães selvagens africanos, hienas e todos os peixes e aves de coral que







se possa imaginar existiam.


Em poucos anos, milhões de pessoas seriam mortas e deslocadas, numa guerra entre o Estado Islâmico, o exército moçambicano, mercenários russos do Grupo Wagner e o exército ruandês. Durante esse período, a costa deste Maputo até Palma seria devastada por mais de doze ciclones, por vezes mais do que um por ano. O califado Aden Ayro seria erigido nesse período, ocupando a exploração petrolífera da francesa total no Rovuma, a exploração de diamantes, rubis e madeiras em terra e impondo uma devastação total das áreas florestais, contribuindo assim para o desaparecimento de milhões de animais, incluindo todos os leões, leopardos e cães selvagens africanos. A batalha pela reconquista do califado, constituído por partes do Norte de Moçambique e do Sul da Tanzania lançaria a criação da República Oriental Africana, declarada no ano do Leão, ano em que desapareceu o último leão em liberdade.



como explodir um

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Acordei cedo e abri a janela. Estava um magnífico dia de sol, com a luz a bater nos painéis solares dos telhados e a encandear-me. Havia um enorme reboliço na rua, com grupos de pessoas caminhando em todas as direções, música a tocar, elétricos para a frente e para trás. Nova Iorque era mesmo uma metrópole. Saí do quarto e Karl, o grandalhão que parecia viver no corredor informou-me que Edward me tinha deixado uma bicicleta elétrica. Vesti o meu novo fato de macaco - “It’s yours.” -, apanhei uma maçã e saí. Queria atravessar o rio Hudson e chegar à Big Apple. Saí a pedalar pela Willow Avenue que, apesar do nome, tinha poucos salgueiros. As avenidas paralelas dos dois lados tinham sido desalcatroadas, pelo que a maior parte do trânsito diário se fazia por ali. Depois de ver mapas da cidade, em que duas de cada três das grandes avenidas tinham sido arborizadas ou simplesmente vegetadas, pensei como as cidades dos Estados Unidos, construídas a régua e esquadro, perfeitamente geométricas, tiveram vida facilitada para a transformação e para o abandono dos carros individuais, muito menos conflituoso que na Europa. Pelo menos devia ter sido assim no centro das cidades, já que os subúrbios americanos eram famosos por terem sido desenhados para servir os interesses da defunta indústria dos automóveis.


Os túneis Lincoln e Holland, que antes ligavam Nova Jérsei a Nova Iorque, tinham sido abandonados e aterrados por causa das cheias. A nova ponte Lincoln percorria um percurso muito similar ao do antigo túnel, só que por cima de água. Foi aí que atravessei. Olhando para o lado direito já se via o enorme paredão que cobria o litoral Sul da cidade de Nova Iorque, com entre 4 e 8 metros de altura. Tinha sido construído durante a guerra para travar as cheias. Já em Nova Iorque percorri a 8ª Avenida até ao Central Park. Logo à entrada do parque jazia à esquerda jazia a famosa ruína do Trump









International, destruído durante no início da Guerra Civil. Apesar das cheias e da redução da população, Manhattan era a zona mais habitada de toda a cidade, em grande parte por causa das ocupações de todos os hotéis de luxo - O Ritz-Carlton, o Marriot Essex, o St. Regis e o Park Hyatt, entre outros. A ocupação de hotéis, iniciada pelos movimentos sem-teto na América do Sul nos anos 20, expandira-se por todo o mundo e com a redução drástica do turismo tinha criado uma nova realidade: ocupação das zonas turísticas e centros das cidades cheios de gente. Percorri o enorme parque, que é agora mais quinta do que parque, com animais pequenos, colheitas e pomares, ligando-se com muitas das novas ruas vegetadas e arborizadas e parecendo entrar diretamente por entre os prédios da cidade. Com a bicicleta na mão, fui até ao extremo Nordeste do parque, onde há várias casas abandonadas e construções. Em 2034, por causa do colapso do muro de proteção contra cheias, com 10 metros de altura, entrou por ali uma enorme onda, na grande cheia de Manhattan. Percorri o autêntico estaleiro de obras em que vários quarteirões tinham sido removidos para ligar pequenos parques e jardins e criar uma grande zona inundável. Foi aí que parei para almoçar algo. Uma pequena banca vendia cachorros quentes de minhoca e grilo, que eram bastante bons - sabiam exatamente igual ao fumado dos cachorros de carne de antigamente. Após terminar de comer, abriguei-me do calor à sombra de uma árvore na companhia de várias pessoas.


Segui para Sul ao longo do alto paredão da FDR Drive até à baixa de Manhattan. Andar de bicicleta ao longo do muro que parecia não acabar dava a sensação de estar dentro de uma caixa. Mas de repente o muro desapareceu, dando ar de ter sido abandonada a construção a meio. Continuando junto à água pude ver que muitos dos arranha-céus

mais altos estavam com os seus andares mais altos descontruídos, como acontecia em Madrid e Bruxelas. Só mesmo quase na ponta Sul voltou a haver um muro de proteção contra cheias. Finalmente cheguei ao Battery Park, outro grande jardim onde no meio se encontrava um enorme bloco de metal preto, o monumento às vítimas do Túnel Brooklyn Battery. Não sabia sobre o que era e fui ler. Ao meu lado várias pessoas liam as palavras inscritas no bloco preto. Uma rapariga muito bonita com o cabelo e os olhos do mesmo tom de verde e um homem baixo, com óculos de sol e uma perna biónica vermelha contemplavam de mão dada o monumento. Tinha visto várias pessoas com braços e pernas biónicos ao longo do dia, provavelmente resultado da guerra. Concentrei-me na leitura. Ainda antes da guerra, alguém tinha hackeado o sistema dos carros automáticos sem piloto da Tesla e da Cruise. Mais de mil veículos em Red Hook e em Manhattan tinham sido conduzidos para uma colisão em cadeia no antigo túnel Brooklyn Battery. As primeiras viaturas foram atiradas umas contra as outras a mais de 100 km/h e as restantes foram levadas automaticamente a repetir a colisão. Durante mais de 30 minutos carros entraram a grande velocidade nas duas entradas do túnel, chocando no seu interior contra tudo o que estava no seu caminho, ou contra os carros automáticos que vinham na mesma situação em sentido contrário. Começou um incêndio lá dentro e todos os carros, com e sem condutor, ficaram presos. Mais de quatro mil pessoas perderam a vida. A ideia de carros sem condutor também terminou aí.


Gastei o resto do meu dia no Museu do Capitalismo, em Wall Street, numa viagem virtual à história do sistema económico e social que vigorava até à Grande Mudança. À noite esperei por um contacto da Lia que não chegou.




Na manhã seguinte Edward acompanhou-me novamente pela Ponte Lincoln para apanhar o comboio em Penn Station. O meu destino era Minneapolis, a capital do Minnesota. É uma cidade em grande expansão, devido à abundância de água e à temperatura fria. Ao contrário de Nova Iorque, que tinha perdido um terço dos seus habitantes, Minneapolis tinha mais que quintuplicado a sua população, recebendo refugiados da Guerra Civil, dos incêndios do Canadá e dos conflitos no Quebec. Edward indicou-me que um dirigente local do movimento ecomunista me receberia na estação de chegada e despediu-se secamente.


Entrei na minha carruagem-cama, partilhada com um casal e o seu pequeno filho. Tentei ler o relatório da minha mãe enquanto os meus companheiros de compartimento entretinham o rapaz de dois anos, que berrava sem parar. Tentei aguentar uma meia-hora, mas acabei por desistir e sair do compartimento.


Fui para o restaurante tentar trabalhar um pouco. A carruagem teria uma dez pessoas espalhadas pelas diferentes mesas. Aproximei-me do balcão para pedir algo para beber. A senhora propôs-me uma cevada quente, que aceitei. Levei ainda um pão com cereais e um pratinho de óleo e sal.

- Porque está tão pouca gente?

- Está a dar um filme na carruagem de cinema, na próxima porta. - respondeu-me enquanto lhe paguei. Agradeci e fui sentar-me à janela, observando a paisagem urbana à distância. Estendi na mesa o computador e o relatório. Na mesa a seguir à minha estava sentado um homem baixo e moreno que me parecia familiar. Mexia freneticamente num smartphone enquanto bebericava uma bebida escura com gás num copo de vidro. Olhava para mim e

para o smartphone, até que se levantou e aproximou-se, sorrindo.

- Importa-se que me junte a si? - perguntou, com uma bonita voz de tenor.

- Sim, pode ser - respondi-lhe, recolhendo o relatório. Tirei da bolsa o meu Babel.

- Você vive por aqui?

- Vivo em Nova Iorque, mas viajo muito. Você não é daqui?

- Não.

- E para onde vai?

- Para Minneapolis.

- Fazer?

- Trabalho. Mas porque é que me está a fazer um interrogatório?

- Desculpe, estava a tentar começar uma conversa. Para isso preciso de alguma informação para trocar.

- Então diga-me primeiro coisas sobre si. - tirou uma pequena carteira do bolso e mostrou-me um cartão. Era da associação de veteranos e tinha a sua foto. O seu nome era Luiz Gonzalez.

- Para troca: o que vai fazer?

- Entrevistas.

- Entrevistas ainda podem ser feitas pela internet ou pelas nets locais.

- Estou a fazer um trabalho que precisa entrevistas ao vivo.

- Como se chama? Eu sou Luiz Gonzalez.

- Li no cartão. Chamo-me Alex, Alex Aguas.

- Alex, você é português? Que idade tem?

- Sim, sou português e tenho trinta. Para troca: é veterano de quê?

- Demasiada informação. Diga-me sobre o que são as entrevistas.

A conversa estranha estava a irritar-me. Queria ler o relatório ou o meu livro e não

estar a entreter pessoas. O homem deve ter notado. Respondi em jeito de conclusão.

- Estou a fazer entrevistas e a levantar informação sobre a Grande Mudança. E agora, se não se importar, quero ler. - liguei o meu Babel e o homem sorriu.

- Sou veterano da Transpiness. - baixou o tom - E da Descarbonária, onde conheci a tua mãe.

- A minha mãe?

- Sim. Desculpa o interrogatório. Tinha quase a certeza que eras tu, mas precisava confirmar. - Mostrou-me o smartphone, onde estava uma foto minha, com 10 anos, entre os meus pais.

- Como tem isso?

- Foi a Maria que me enviou, em tempos.

- Sabe que o nome dela era Marta?

- Não sabia que era Marta mas sabia que Maria não era o seu nome verdadeiro. Podia ter sido mais original. - riu-se.

- Como sabia quem eu era?

- O meu irmãozinho. Oscar. Falámos no outro dia e ele contou-me sobre um português que estava aqui em viagem. Disse-me o teu nome a tua idade. Havia a possibilidade de seres tu. Ela falava muito sobre ti. Quando morreu eu soube e pensei contactar-te, outras coisas foram-se pondo à frente, já me custa viajar e acabei por não ir.

- Como sabia que eu ia estar neste comboio?

- Ainda tenho as minhas fontes. E se não fosses tu, ia fazer uma viagem até Minneapolis, tenho tempo e milhas.

- Obrigado por ter vindo à minha procura. Eu não saberia da sua existência.

- Trata-me por tu, ou por Luiz.

- Sim. Eu preciso ajuda para saber mais sobre a minha mãe. Já falei com algumas pessoas,

que me contam algumas coisas, mas é tudo muito difícil, a conta-gotas. Eu sabia que ela tinha vindo para os Estados Unidos, e tenho também este relatório - passei-lhe o relatório para a mão - mas não tenho a certeza sobre quase nada. Eu nem sequer sabia o que a minha mãe tinha feito até há uns meses atrás, só que tinha estado nos movimentos revolucionários.

Folheou rapidamente o relatório.

- Isto foi depois de eu ter estado com ela. - aproximou-se de mim e falou mais baixo. - Nós estivemos quase um ano na Descarbonária juntas. Foi ela que me recrutou. Viajámos por vários sítios aqui nos Estados Unidos antes de ela passar para o Exército Verde. Eu fiquei na Descarbonária até o fim, deixei a militância nessa altura. Mas continuava a ouvir falar sobre ela por alguns contactos.

- O que me pode contar sobre esses tempos em que estiveram juntos? Posso gravar?

- Podes. - liguei o gravador - Posso contar-te tudo o que sei. A tua mãe era uma mulher incrível: corajosa, determinada, inspiradora. Ela era uma pessoa da ação, mas se tivesse estado viva noutro momento, não tenho dúvidas que seria uma grande tribuna na política. Inspirava-nos e fazia-nos perder o medo em momentos-chave. Era uma verdadeira líder. - sorriu.

- Disseste-me que ela te recrutou?

- Sim, foi ela que me recrutou pouco após o início da guerra. Ela vinha de África, acho que da Nigéria. Foi na altura em que começávamos a fazer as ações mais disruptivas com a Transpiness. Estávamos a atacar igrejas conservadoras e os Nacris nessa altura.

- A Transpiness era uma organização de pessoas trans?

- Era e é, mas agora não faz muitas ações. - riu-se - Foi lá que comecei a minha militância, anos antes da guerra começar. Tínhamos de nos defender da catástrofe trumpista e de todo o ódio herdado contra nós. Primeiro éramos um grupo de autodefesa, mas também fazíamos

muitas alianças. As nossas ações, como as de todos os grupos que havia durante a guerra, tornaram-se cada vez menos simbólicas e cada vez mais efetivas. Organizávamos a defesa contra as milícias de extrema-direita que tentavam expandir a guerra para o Norte e contra os exilados israelitas liderados pelo Avi Maoz.

- E foste recrutado pela minha mãe?

- Ela convidou um pequeno grupo para uma reunião privada em Nova Iorque e apresentou-se como membro da Descarbonária. Não éramos só Transpiness, havia Black Defense Crews, Armas Latinas. Ela era muito inspiradora, mas o objetivo da sessão era excluir todas as pessoas que não tivessem um alinhamento tático e político quase total. No final só ficámos duas pessoas - eu e a Melissa das BDC. Juntámo-nos as duas à Descarbonária.

- Só duas pessoas?

- A tua mãe recrutou mais gente, no final constituímos um grupo com dez. Mas havia outras equipas da Descarbonária. Tivemos de abandonar a nossa vida normal e seguir para cinquenta dias de treinos no Norte, não sei se em New Hampshire ou no Maine. Fomos levados vendados num camião. Havia mais pessoas por lá, mas excepto por um jantar em que estivemos com outra equipa, éramos só os 10, incluindo a tua mãe.

- O que era o treino?

- Era muito exigente: doze horas por dia de preparação física, combate corpo-a-corpo, manuseamento de armas, de explosivos, topografia, técnicas evasivas. E claro que falávamos e tínhamos aulas de história, ecologia e política pelo menos metade do tempo.

- O que aconteceu após o treino?

- Fizemos o juramento da Descarbonária. - Dei uma pequena gargalhada. - Não te rias. - disse Luiz, que sorria. - Fomos levados vendados para um edifício antigo e muito escuro, e só nos tiraram as vendas dentro de uma sala à luz de velas. Era basicamente uma aula sobre a

história da Carbonária, sobre o seu papel na unificação da Itália e na ascensão do republicanismo na Europa. Uma mulher com uma máscara e um punhal contava a história da derrota do poder das multinacionais da altura, da Igreja Católica e das monarquias de Bourbon, de Hannover e Romanov, e como havia um movimento na luz e um movimento na sombra. Nós éramos a nova organização, a Descarbonária, o movimento na sombra para travar o caos do capitalismo fóssil, para fazer o que fosse necessário para impedir o colapso da Humanidade. Eu não sabia aquela história antiga, foi mais uma lição que um ritual.

- E estava muita gente? Parece muito conspiração, muito coisa de filme.

- O objetivo era criar uma aura de mistério e cumplicidade. Estava só a nossa equipa, de cara destapada, e mais quatro pessoas com máscaras e roupas negras.

- E a minha mãe, onde estava?

- A tua mãe fazia parte da equipa, era um dos dez. Tratávamo-nos umas às outras por manos e manas (bros and sistas). Todas tínhamos nomes de clandestinidade. Eu era Bro Felix. Marcámos um ponto de tatuagem atrás do calcanhar. Era a marca da nossa casa.

- Casa?

- Sim, as unidades da Descarbonária chamavam-se assim.

- É difícil perceber a dimensão da organização. O vosso nome aparece muito, mas não sei quantas pessoas eram.

- Não há números oficiais. Eu fui subindo na hierarquia mas fiquei sempre a nível da América. No fim da guerra civil havia pouco mais de 100 casas aqui nos Estados Unidos, e outras 50 nas novas repúblicas. Mas a maioria da Descarbonária atuava na Europa e no Médio Oriente, provavelmente mais de mil casas. Não sei se participávamos nas guerras em África, é provável, porque também fazíamos missões de apoio pontual.

- E participaste em missões com a minha mãe?


Sim, em várias. Incluindo várias em que só estávamos nós duas.

- Podes dar um exemplo?

- Os nossos objetivos principais durante a guerra civil eram travar a indústria fóssil e impedi-la de recuperar no pós-guerra, não atrapalhar demasiado o esforço de guerra dos Estados Unidos e, quando possível, desmantelar a capacidade operativa dos grupos de extrema-direita. A nossa casa estava dividida em dois apartamentos no Brooklyn e reuníamos mensalmente, quando recebíamos objetivos intermédios e organizávamos as equipas de acordo com as prioridades. Tínhamos muito autonomia na planificação da maneira mais eficaz de executar as ações. - Olhou à volta e, vendo que só estávamos os dois e a senhora ao balcão, que ouvia música, aproximou-se de mim e falou baixo. - Das primeiras coisas que fiz com a tua mãe foi destruir a sede de Nova Iorque dos Alt-Knights e desmantelar os datacenters que o Proud Boys usavam. Foi muito emocionante. A Maria era sempre fria como o gelo, o que era muito bom para a confiança quando estávamos em ação. Acho que estive apaixonado por ela todo o tempo.

- Apaixonado pela minha mãe?

- Não sei como era possível alguém não estar. Ela era brilhante, linda, poderosa. Na nossa casa tínhamos todos uma relação muito próxima, que muitas vezes também era física. A vida na clandestinidade tem muito disso, a cumplicidade e confiança que criávamos uns com os outros ia além da política e da ação. Até por questões de estabilidade emocional mantínhamos relações uns com os outros. - Pensei que aquilo não era boa ideia, na verdade. E a minha cabeça fugiu rapidamente para outro lugar. Depois de uma pequena pausa, perguntei.

- Tinhas relações sexuais com a minha mãe?

- Tive poucas vezes, ela era a pessoa mais velha e mais reservada da casa.



- E ela tinha relações com outras pessoas?

- Não sei, Alex. Não passávamos o tempo preocupados com isso e a tua mãe não era muito aberta sobre assuntos desse tipo. - Pensei no meu pai e como também ele tinha tido relações com outras pessoas depois da mãe ter partido. Antes de termos tido o António, eu e a Lia também tínhamos relações com outras pessoas, mas pensava que antes as pessoas eram mais conservadoras. Idiota.

- Bem, mudando de assunto, vocês tinham contacto com as outras casas?

- Nenhum. Por vezes víamos outras pessoas em situações estranhas e achávamos que podiam ser manos ou manas, mas tínhamos ordens para não contatá-los. Tanto os serviços secretos dos Estados Unidos como os secessionistas e os grupos de extrema-direita queriam apanhar descarbonárias. A Maria era a única pessoa nossa que por vezes contactava outros membros da organização, porque era a “mãe” da casa.

- Quanto tempo estiveste com ela?

- Vinte missões, cerca de oito meses. As rotações tinham vinte missões e depois as casas eram dissolvidas. Recebemos debrief e formação para recrutarmos e criarmos novas casas em diferentes centros de treino pelo país. Houve pessoas que foram para outros países. A tua mãe foi para o Exército Verde, mas só descobri isso anos mais tarde. Eu fiquei mais quatro rotações, tornei-me especialista em sabotagem industrial com ela. A nossa última missão foi a mais marcante, explodimos um gasoduto na Carolina do Norte.

- Mas isso não era no território dos Estados Unidos?

- Sim. Era um gasoduto enorme, o Transco, que saía do Texas e ia até ao Canadá. Foi uma ação articulada com outras casas que o explodiram em diferentes localizações. O Transco nunca mais voltou a funcionar. Até então, mesmo em guerra, continuava a vir algum gás do Texas para o resto do país, operado ilegalmente por máfias e milícias. Mas o plano do governo

americano era retomar o fluxo de gás quando acabasse a guerra. Não íamos deixar isso acontecer. A missão foi muito marcante porque o seu efeito foi enorme e porque era simbolicamente participar no proposto no livro “How to blow up a pipeline”.

- Podes contar-me como foi a operação?

- Demorámos um mês a preparar-nos. Na altura a circulação no país era limitada. Mudámos-nos para Greensboro e alugámos três casas e um armazém. As preparações foram dividas em equipas de logística, introdução e fuga. A tua mãe supervisionava as três mas estava mais comigo na introdução.

- Introdução significava o quê?

- Conseguir aceder aos locais onde íamos entrar para executar a operação. Neste caso, uma estação de compressão e silos de armazenamento de gás. Tínhamos um horário preciso que a tua mãe tinha recebido. Era tudo preciso, se alguma coisa acontecesse fora do horário era possível que morrêssemos numa explosão causada pelas outras casas ou que fôssemos apanhados. Precisávamos entrar e sair numa janela de tempo muito pequena e conhecer todas as medidas de segurança em cada um dos sítios. Isso significou bom scouting, o que durante uma guerra era mais difícil de conseguir. Treinávamos todos os passos da operação até à exaustão. Tínhamos uma música para acertar os tempos: Jesus of Suburbia, dos Green Day. Nove minutos e oito.

- Então a minha mãe organizou a destruição de um gasoduto?

- Não só organizou como foi ela que carregou no botão que explodiu os silos de armazenagem. Eu e ela éramos uma das unidades que entrava na infraestrutura. Tínhamos nove minutos para entrar, colocar as cargas explosivas, sair, acionar o alarme de emergência para os seguranças evacuarem e explodir. Os seguranças estariam alerta a partir de metade deste tempo porque a explosão na estação de compressão pela outra equipa teria feito disparar os

alarmes 5 minutos antes.

- O plano foi bem sucedido, então?

- A tua mãe costumava dizer que se a instrução fosse dura, o combate era fácil. Tínhamos todas as contingências prontas, todos os cenários articulados - plano A, B, C, D. Nós íamos explodir aquilo, custasse o que custasse. Mas saiu tudo de acordo com o planeamento original. Uma hora antes do início deixámos a nossa carrinha escondida perto da estrada. Fizemos os três quilómetros até ao local em vinte minutos, camuflados. Já o tínhamos feito antes, então não houve surpresas, excepto um homem que passeava o seu cão. A tua mãe tinha um plano para isso: quando o cão começou a ladrar na direção de onde estávamos agachados, acionou um pequeno aparelho de ultrassom. O cão começou a ganir e o dono levou-o para longe. A Maria era assim, já tinha pensado em tudo vinte vezes antes de nós. - sorri. - Ficámos vinte minutos à espera do tempo dos nossos relógios sincronizados com o resto da casa. Vestimos os fatos pretos com passa-montanhas. Parecíamos ninjas, invisíveis no meio da noite na floresta. Nos últimos minutos antes da hora, a tensão era máxima. Apesar da experiência, sentia o nervosismo no fundo do estômago. tínhamos aprendido com a Maria que a partir daspera só comíamos maçãs verdes e bolachas secas. Avançámos, saindo da escuridão coberta dos pinheiros “I’m the son of rage and love, the Jesus of Suburbia…”. Com alicates cortámos uma entrada no arame. Entrámos e corremos na direção dos grandes tanques brancos. Corri para as tubagens para abrir a grande válvula enquanto a Maria colocava várias cargas explosivas nos tanques. Exatamente aos quatro minutos a outra equipa entrou na estação de compressão e fechou o fluxo, desencadeando o primeiro alarme. Ouvi barulhos e notei a silhueta de um segurança empunhando uma lanterna, enquanto eu continuava a pesada tarefa de fechar a válvula. Cantava a música dentro da minha cabeça “I don’t care if you don’t, I don’t care if you don’t, I don’t care if you don’t care…”. Tudo no tempo

certo. A Maria disparou um flare luminoso na direção contrária de onde estávamos, atraindo os seguranças para lá - as cargas estavam postas. Era o tempo da explosão da outra equipa. Finalmente acabei de abrir o gasoduto - seis minutos “Oh therapy can you please fill the void” - e o gás estava a sair dos tanques, desencadeando mais um alarme. Levantei-me e corri na direção da tua mãe. Do outro lado da floresta explodiu o fogo de artifício que tínhamos enterrado dois dias antes, mais um artíficio para disfarçar a nossa fuga. Juntos corremos para o buraco na rede onde tínhamos entrado, colocando-o no sítio no lado de fora “You’re leaving, are you leaving home?”. A primeira parte tinha terminado.

- Havia mais? - perguntei, emocionado.

- Sim, ainda faltavam coisas. Mas já não havia volta atrás, o gasoduto ia explodir em minutos. Corremos até onde tínhamos as nossas roupas e mudámos-nos para os camuflados do exército americano. Junto dos tanques estava o alarme sonoro que se erguia e repetia sobre os outros: “Este local foi armadilhado pela Descarbonária com vários aparelhos que explodirão dentro de 2 minutos. A todas as pessoas que nele trabalham alertamos: evacuam imediatamente.”

- E as pessoas fugiam?

- Não confirmávamos. Quando começou o nosso alarme começámos a correr. Em dois minutos parámos e momentaneamente e a Maria pressionou o comando. Ouvimos a explosão e vimos o clarão ao longe. Pouco mais de 10 minutos mais tarde estávamos na carrinha, limpando o suor da cara para não darmos nas vistas. Conduzimos alguns minutos, e na estrada cruzámo-nos com polícia e bombeiros na direção contrária à nossa. Nesta altura eu estava em grande stress, mas a Maria repetia “já está feito”. Saímos da estrada pouco depois e afundámos o carro num lago. Livrámo-nos da nossa roupa e fomos apanhados pela equipa de fuga. Fizemos um debriefing em Roanoke e separámos-nos. Essa noite dormi num motel. Nas



notícias pude ver como o plano tinha sido bem executado. Tinha havido apenas dois feridos no Maryland. As partes essenciais do gasoduto tinha sido destruídas: sete casas envolvidas, doze localizações destruídas entre a Georgia e Nova Jersey. Não havia mais Transco. A militarização da indústria fóssil pelo governo dos Estados Unidos aconteceu pouco depois disto, tornando estes atos mais difíceis.

- Puff. E a minha mãe fazia isto com frequência? O que teria acontecido se os guardas vos tivessem apanhado?

- Alex, a tua mãe fazia o que fosse preciso. E estávamos armados durante toda a operação. Não podíamos ser apanhados.

De repente um grande grupo de pessoas entrou no vagão restaurante. O filme tinha acabado. Luiz levantou-se do outro lado da mesa e veio sentar-se ao meu lado.

- Continuamos a nossa conversa mais tarde. O comboio só chegará a Minneapolis em dois dias.

- Sim, por favor. Luiz, só uma pergunta.

- Diz.

- Porque não me vieste falar ontem em Battery Park?

- Estavas sempre rodeado de pessoas. Eu fui treinado para ser invisível.

- Eu já te tinha visto.

- Porque eu te tinha feito veres-me. Até já.

Vi-o afastar-se, coxeando ligeiramente sob a sua perna biónica. Comi na sala restaurante e no meio da confusão das pessoas que entretanto tinham entrado ouvi a gravação do que o Luiz tinha dito. A minha mãe era impressionante. Era uma heroína. Eu sou filho de uma heroína da revolução.


o ano do leão

o ano do leão

Deitado na minha carruagem-cama entretinha-me naquele que se ia tornando um dos meus hábitos mais reconfortantes: ver a paisagem pela janela. Neste caso, as águas do Lago Michigan. Já tínhamos feito metade do caminho quando parámos em Chicago. O casal que me acompanhava e a sua criança barulhenta despediram-se, pelo que finalmente tive sossego. Depois de ultrapassarmos os arredores da cidade, começou um percurso muito bonito a que chamavam “Great River Rail”. Da minha janela via-se o grande lago Michigan, no meio do qual flutuam barcaças cobertas de painéis solares que transportam pessoas e mercadorias enquanto capturam energia. Grandes bandos de aves voavam sobre as águas. Do outro lado dos carris erguia-se uma densa floresta de coníferas, pontilhada por pequenas casas. As cheias do lago já tinham submergido a linha no local por onde passávamos várias vezes nos últimos anos, como informou o condutor do comboio enquanto atravessávamos um baixio. No entanto, os maiores efeitos das rápidas variações do nível de água tinham sido sentidos nas zonas baixas das cidades de Chicago e de Milwaukee, que começavam a ser reconstruídas em novas localizações.


Estava deitado há quase uma hora, exausto mas sem conseguir dormir. O colchão era demasiado mole e a minha cabeça não conseguia desligar. Estava preocupado com a falta de resposta por parte da Lia, a quem tinha voltado a tentar ligar sem sucesso. As minhas mensagens também não tinham resposta. Imaginei algum acidente, com ela e o António a serem apanhados numa cheia em Espanha sem a minha ajuda, e eu ali, desaparecido a milhares de quilómetros de distância, com um oceano inteiro entre nós e sem qualquer possibilidade de poder voltar para casa se fosse urgente. Tinha tomado a decisão errada em vir. Mas ela tinha-me incentivado a ir. Para quê? Para escrever um


livro sobre uma coisa que não interessava a ninguém além de mim? Merda.


O comboio balançava quando me levantei da cama, pelo que deixei cair o relatório, espalhando-se as suas muitas folhas pelo chão. Apressei-me a apanhá-las, pensando já no trabalho extra de agora ter que ordenar as folhas. Sentei-me na mesinha que havia, tentando pô-las por ordem, mas a oscilação fez-me sentir tonto, trazendo-me uma memória-náusea da terrível viagem marítima entre Antuérpia e Nova Iorque. Começava a ficar angustiado com a dificuldade em sentar-me e ler o que a Josephine me tinha dado. De certeza que estaria ali algo que me permitiria conhecer melhor a minha mãe, na sua versão “Maria García”. Em alternativa abri o computador para tentar ler mais coisas que a Lia me tinha enviado. O ficheiro “Ano do Leão”, outro podcast, chamou-me a atenção. Estava presente em vários documentos e entrevistas que tínhamos feito, mas eu não sabia exatamente quão crítico tinha sido aquele momento. Pus a tocar enquanto reordenava lentamente as folhas do relatório.


Podcast: Ano do Leão, o início de uma nova era


O Ano do Leão foi o mais simbólico evento daquela que é a maior crise provocada deliberadamente por um ser vivo no planeta Terra: a sexta grande extinção de espécies. Não tendo esta espécie já um valor ecológico central para a maior parte dos ecossistemas onde uma vez o Panthera leo ficou conhecido como “O Rei da Selva”, o desaparecimento dos leões selvagens provocou uma profunda comoção por todo o mundo. Ao contrário dos Dódós, dos pequenos golfinhos Phocoena sinus, ou dos rinocerontes de Sumatra, a extinção dos leões em natureza, cujo enorme risco estava assinalado há mais de duas décadas por cientistas de

todo o mundo não veio e passou como apenas “mais um ser vivo desaparecido”. Chocou pela velocidade com que passámos de perigo para extinção e chocou pela proximidade histórica e cultural com a espécie. Os dois últimos exemplares conhecidos, duas leoas adultas chamadas Noltapata e Hasina, foram encontradas mortas na Reserva Natural de Masai Mara, no Quénia. Foram as derradeiras vítimas de caçadores furtivos a mando do califado Aden Ayro.


A notícia espalhou-se como fogo na savana africana: o anunciado fim do leão tinha chegado. Ninguém tinha levado a sério a ameaça, apesar de todos os avisos. Ninguém tinha percebido o definitiva que era esta ameaça, isto é, até ser impossível escapar à realidade. Houve cerimónias tradicionais e missas improvisadas, cantos de dor e de tristeza levantaram-se primeiro na África Oriental, depois espalharam-se pelo continente e rapidamente para todos os outros. “Roubaram tudo a África. Roubaram as suas pessoas e os seus recursos, as suas árvores e os seus minérios. Roubaram os seus elefantes e as suas gazelas. Reproduziram mini-Áfricas e mini-mundos nos jardins zoológicos ocidentais enquanto construíram a destruição de tudo o que ainda sobrava ao nosso povo. E agora? Agora roubaram o nosso leão, o nosso símbolo, a nossa força, a nossa divindade. África não pode mais ser roubada. Não vamos mais deixar África ou o seu povo ser roubado.” disse Theresa Shabani, líder do movimento panafricano Ushindi wetu.


Mas os últimos leões desaparecidos não eram os mais representativos. O efeito dos caçadores furtivos na extinção do leão é responsável, no máximo, por 5% dos desaparecimentos. A proibição de caça legal a leões não tinha sequer cinco anos quando desapareceram os últimos exemplares. Mas mesmo a soma de caçadores furtivos e caçadores legais representou pouco em comparação com a destruição do clima e dos habitats onde viviam, comiam e se

abrigavam os leões. Em menos de dez anos passou-se de cerca de 20 mil leões vivos na natureza para nenhum, em uma dezena ou menos de países. A guerra total entre o exército tanzaniano e as milícias do Estado Islâmico que antecederam a formação do califado é considerada diretamente responsável pelo desaparecimento de cerca de 14 mil leões. A sul, o mesmo conflito contribuiu para a destruição de mais de dois mil leões, em particular na Reserva do Niassa e no Parque Nacional da Gorongosa. As peles de leões passaram a ser elementos usuais nas fardas dos exércitos de todos os lados. As ondas de calor na África do Sul e no Botswana dizimaram as suas presas, as populações locais de zebras, bois-cavalos e búfalos. Muitos leões também morreram por causa das temperaturas recorde atingidas. As notícias do desaparecimento sucessivo dos leões país a país, que se foram sucedendo nos anos antes do Ano do Leão, levavam sempre a anúncios de fundos e de iniciativas públicas e privadas para travar o desaparecimento da espécie. Estes fundos eram desviados para outras iniciativas, gastos em projetos inúteis ou nem sequer chegavam a ser transferidos. A promessa de clonar leões para repovoar a África do Sul ou de introduzir na natureza as populações nascidas nos jardins zoológicos apenas levaram a mais desapontamentos e morte dos espécimes envolvidos. No fundo, apesar de assinalarmos o fim do leão, o que tinha desaparecido eram os territórios e os climas que tinham permitido a existência da espécie por todo o continente. Não tinham também desaparecido os leões europeus dezenas de milhares de anos antes, na altura em que surgira a agricultura?


No resto do mundo, em profunda convulsão, entre o bloqueio do canal do Suez, o cemitério do de arame que matava milhões na Europa de Leste, os rumores revolucionários na Europa e no continente americano, a notícia do fim do leão caiu como uma bomba. Mesmo em zonas de conflito houve paralisações. De todos os lados as pessoas percebiam que o que estava a

acontecer-nos a todos não era mais escapável ou evitável. Não havia ninguém que não soubesse o que era um leão, provavelmente toda a gente já tinha até visto um leão e a sua força bruta em algum momento da sua vida. A extinção do leão foi vista como a extinção de uma parte da humanidade. Significava que nós, humanos, podíamos extinguir-nos, que nós podíamos desaparecer. E não é como se não houvesse gente a dizê-lo há muito tempo. Além disso, foi depois do ataque nuclear no Texas, depois da explosão da central de Zaporizhzhya, depois das ondas de calor, das quebras massivas de colheitas. As maneiras como podíamos desaparecer eram várias e acumulavam-se. O sentido geral do que tinha acontecido ao leão, o caráter definitivo das grandes mudanças em que vivíamos, tudo apontava para a sensação da nossa mortalidade coletiva. As lutas encarniçaram-se e a violência aumentou. Não sabemos se foi coincidência ou não, mas até ao fim desse ano uma boa parte da velha ordem estaria destruída, a muralha arrasada, as revoluções francesa, brasileira e californiana vitoriosas, derrubando os frágeis regimes em vigor. A guerra civil americana acabaria e Rússia tornar-se-ia uma potência alimentar, após anos a perder os seus territórios periféricos. A imagem do crânio de leão tornou-se um símbolo revolucionário. O leão tornou-se um dos principais símbolos da Grande Mudança.


Foi também no Ano do Leão que se assinalou a destruição do califado Aden Ayro. A própria bandeira da República Oriental Africana, a OAR, formada em Dezembro de 2030, assinala as ossadas de leão. O exército da OAR, composta pela África do Sul, a República Eco-Social de Moçambique, Tanzania e Quénia, conseguiu acabar o que o anterior exército da SADC não tinha conseguido: destruiu o Estado Islâmico na África Oriental. Diz-se que o regimento que conseguiu finalmente conquistar Mbeya ao califado transportava os ossos de Noltapata e Hasina. As palavras finais da general Mondlane no discurso de formação da nova república

foram mesmo “Sob as ossadas do último leão erguer-se-á o grande elefante africano”.


Até chegarmos a Minneapolis voltei a falar com Luiz. O seu conhecimento sobre a vida da minha mãe após a sua saída da Descarbonária era pequeno, apenas sabia que ela tinha ido para Sul e que tinha voltado ao México, onde tinha feito estragos nas operações da Máfia. E sabia que ela tinha morrido lá, no México. Contou-me histórias sobre o que ele próprio tinha feito entre o fim da guerra e a dissolução da Descarbonária, como tinha participado na procura e desmantelamento de operações petrolíferas ilegais geridas por grupos criminosos um pouco por todo o Atlântico Norte, das incursões no Texas para resgatar pessoas mantidas contra a sua vontade e como tinha rejeitado juntar-se ao partido, acabando por voltar para a Transpiness, onde agora já não se enquadrava bem. Era uma pessoa que tinha ficado desenquadrada depois de muitos anos de ação ao mais alto nível.


- O mundo ainda é um sítio muito perigoso, mas eu já não me sinto capaz de enfrentá-lo como quando tinha vinte anos. Por outro lado vejo muita gente jovem no comando, o que é encorajador, mas também às vezes sinto que não têm a experiência e a consciência suficiente das ameaças. As coisas nunca estão decididas, é sempre possível voltar para trás. E por isso é sempre preciso continuar a lutar, mesmo quando parece que estamos perto de ganhar ou que ganhámos. Se calhar foi um erro a dissolução da Descarbonária, mas também não tive vontade de seguir os passos da Maria e juntar-me ao Exército Verde. Por outro lado, ainda não sou um velho.

- Quantos anos tens?

- Quarenta - Parecia ter bastante mais.


- Sei que pareço mais velho, mas é só fruto de décadas de tensão máxima. E sabes que mais? Também estou doente. Estou a morrer.

- A morrer?

- Eu pensava que era cancro, que é curável, mas é uma forma persistente de encefalite provocada por um arbovírus, provavelmente por causa das picadas dos novos insetos que há nos Estados Unidos.

- Mas não pareces mal.

- A medicação está a deixar de surtir efeito. Os médicos dizem que é uma questão de meses. Por isso mesmo foi tão bom podermos falar.

- Lamento muito, Luiz.

- Não lamentes. Eu não lamento. Faz parte do preço que pagamos por tudo o que foi destruído. - apontou pela janela. Olhando para fora via-se uma enorme floresta muito geométrica, embora não parecesse uma floresta de produção. - São as famosas florestas dos mortos. Com o número de mortes que ocorreram durante a guerra civil e nas ondas de calor, em vários locais dos Estados Unidos começaram a fazer-se cemitérios em zonas florestais, e em vez de lápides passaram a colocar-se os corpos com mortalhas, plantando-se árvores em cima. É um sentimento de conforto para mim, a ideia de entrar no ciclo biológico, uma espécie de reversão da transformação dos fósseis em morte, é transformar-nos, no fim, em vida. - Sorri.


Luiz desapareceu antes de chegarmos a Minneapolis. Foi apenas poucos minutos antes de chegarmos à estação que consegui finalmente falar com Lia. A velocidade da ligação no comboio era má, pelo que a imagem congelava muito.

- Sim?





- Olá, Lia. Está tudo bem? Não consigo falar há dias.

- Sim, está tudo bem. Já estou de regresso a casa.

- O que se passa? Porque não me respondeste? - Silêncio. A ligação oscilou. E descongelou.

- Está tudo bem, não te preocupes. O António também está bem.

- Porque não consegui falar contigo?

- Alex, aconteceu uma coisa. Não fiques stressado. - como é que eu não fico stressado depois de me dizerem para não ficar stressado?

- O que aconteceu?

- Eu e o Ettore… Nós ficámos juntos.

A imagem congelou.

- Ficaram juntos como?

Silêncio.

- Ficaram juntos como?

- Como as pessoas ficam juntas. Somos adultos, Alex. - Fiquei em silêncio, atónito. - Alex, estás aí?

- Sim. - não sabia o que dizer.

- Alex?

A imagem congelou e observei com surpresa Lia com o António ao colo.

- Alex? - Explodi.

- Não estava tudo bem entre nós? Como é que isto aconteceu?

Silêncio. A imagem desapareceu.

- Alex, consegues ouvir-me? - A imagem voltou.

- Nós não tínhamos um acordo de ficar juntos os dois enquanto o António fosse criança?

- Eu não quero deixar de estar contigo, Alex. Foi só uma coisa que aconteceu.


- Não foi só uma coisa que aconteceu. Se fosse só uma coisa que aconteceu não paravas de me responder durante dias.

- Ele é interessante, mas não é mais do que isso. Ele está com o Gianni. Não faço disto mais do que uma coisa física. - As tentativas de me tranquilizar não estavam a ser muito eficazes. Entretanto o comboio tinha parado em Minneapolis. A imagem congelou de novo.

- Olha, Lia, preciso pensar sobre isto. Agora tenho de sair. Estou a chegar a Minneapolis.

- OK. Falamos depois.

- Sim, falamos depois.

- Um beijo, Alex.

Que murro no estômago. Quando saí do comboio um homem veio ter comigo e cumprimentar-me, levando-me novamente a uma sede do partido ecomunista na cidade, um ritual que se iria repetir em quase todos os sítios que eu ia visitar. Nem me lembro bem da nossa conversa, só pensava no que a Lia me tinha dito. As entrevistas foram rápidas e cansativas - “Quantos elementos ativos tem o movimento neste momento? Quantas novas pessoas foram recrutadas nos últimos seis meses? Como avalias a preparação política dos novos quadros? Em quantas formações políticas participaste nos últimos seis meses? Como tem decorrido a participação nas assembleias temáticas? Existe inatividade indesejada na tua área de atuação?”, a enorme bateria de perguntas que eu repetia uma e outra vez aos quadros ecomunistas e no dia seguinte estava novamente no comboio, rumo a Denver. Lia tinha-me ligado mas eu tinha adiado a nossa conversa.

Quando o comboio arrancou Luiz veio sentar-se ao meu lado.

- Ainda por aqui? - perguntei-lhe.

- Sim, se não te importares com a companhia.


- Não, nada. - disse sem grande energia.

- Que se passa contigo?

- Estou um pouco abalado com uma novidade sobre a minha companheira.

- O quê? Ela enrolou-se com outra pessoa?

- Como sabes?

- É a resposta a mais de 80% das preocupações de casais. Mesmo quando as pessoas se acham muito modernas e livres. É um pouco surpreendente.

- Nós sempre tivemos uma relação muito aberta. Há anos. Relacionávamo-nos com outras pessoas, mas voltávamos um para o outro ao fim do dia, na maior parte das vezes.

- Então o que há de diferente agora?

- Tínhamos feito um acordo, agora que tínhamos um bebé, decidimos que enquanto ele fosse pequeno, não estaríamos com outras pessoas.

- Mas entretanto tu vieste para o outro lado do mundo. Não falaram sobre isso?

- Não.

- Então acho que talvez estejas a ser um pouco dramático.

- Obrigado pela tua opinião.

- Acalma-te, é normal estas coisas acontecerem. A maneira como as relações foram idealizadas ainda está presa num passado em que as coisas eram completamente diferentes. E mesmo aí era uma fantasia, não um modelo funcional, por isso é que era precisa tanta repressão moral e violência, em particular para manter as mulheres na ordem. Nas últimas décadas mudou muita coisa neste aspeto, não foi apenas haver mais aceitação das diferentes orientações sexuais e identidades de género. Mas não há nenhum modelo que funcione sempre, é…

- Obrigado, não quero receber uma aula. Eu sei que isto é tudo complicado.

- OK, não te chateio mais sobre isto. Como vai a leitura do relatório da tua mãe?

- Lenta. Tenho-o aqui, queres ler comigo?

Fizemo-lo juntos, sentados várias horas.


Mundo Novo / Exército Verde

Relatório Interno: Travessia Migratória Honduras - Califórnia

Duração: 93 dias

Participantes: 103.073 refugiados (52.891 concluíram toda a travessia)

Equipa: 1000 elementos de apoio do Mundo Novo, 500 elementos do Exército Verde (reforço de 500)

Coordenação:

Andrea Hernandez (NW)

Olivier Losurdo (NW)

Beatrix Hotts (NW)

Adrian Meyer (NW)

Rodrigo Cienfuegos (GA)

María García (GA)


Resumo: Primeira travessia de grande volume (>50.000) de refugiados realizada em parceria entre o Mundo Novo (NW) e o Exército Verde (EV). A primeira entidade forneceu a equipa de logística e a segunda forneceu a equipa de segurança. Partida no dia 30 de Setembro, saindo de La Ceiba, município devastado pelas tempestades marítimas e seca extrema. Reajuste na equipa armada após 30 dias da travessia, coincidindo com a chegada a Nayarit, no México, após segundo pico de violência.

Posteriormente a caravana foi dividida em três agrupamentos, que chegaram a velocidades diferentes ao destino final:

Equipa 1: composta principalmente por adultos e jovens adultos em viagem individual ou em casais fez o percurso em 41 dias, chegando a San Bernardino a 11 de Outubro;

Equipa 2: composta por famílias terminou aos 60 dias, terminou a viagem a 30 de Novembro;

Equipa 3: composta principalmente por idosos, crianças, e adolescentes sozinhos, apenas concluiu a viagem após 93 dias, concluindo a 2 de Janeiro


As enormes dificuldades sentidas na conclusão da travessia prenderam-se, por ordem decrescente com:


  • Ataques e raptos por elementos externos à travessia (62%)
  • Assentamentos oferecidos por comunidades de passagem (15%)
  • Intempéries e deslizamentos de terras (7%)
  • Ruptura de stock de produtos alimentares (3%)
  • Dificuldade de instalação e levantamento dos acampamentos (3%)
  • Surtos de doenças (2%)
  • Violência interna entre grupos na travessia (1%)
  • Outros (7%)

Perdeu-se grande número de elementos em ataques sofridos nos primeiros 500 quilómetros da caravana. Iniciativas foram executadas por milícias locais e alianças criminosas nas Honduras e Guatemala. A coluna saída de Tegucigalpa sofreu os ataques mais violentos antes de se encontrar com a coluna vinda de La Ceiba, onde

vinham dois batalhões do EV. Esta coluna de Tegucigalpa, organizada de forma espontânea e com elementos de várias nacionalidades, foi acossada dentro da cidade e atacada assim que saiu da mesma, tendo como proteção apenas dois pelotões do EV. Mais de 20 mil elementos desapareceram e dispersaram, com número de mortes impossível de estimar. Após a junção das colunas os ataques continuaram, mas com menor capacidade, perdendo-se mais 4 mil pessoas até à saída da Guatemala. O percurso dentro de Chiapas e Oaxaca correu de forma exemplar, com um razoável número de refugiados assentando nessas terras a convite das entidades locais. Os acordos de abastecimento foram cumpridos integralmente e com muita flexibilidade por parte das autoridades locais. Na fase posterior, os três mil quilómetros entre Córdoba (Veracruz) e Tijuana (Baja Califórnia), a caravana foi frequentemente acossada por raptores e ladrões, num esforço por parte dos cartéis e máfias para desmobilizar e desmoralizar a caravana. Mais de 8 mil pessoas, especialmente jovens mulheres e raparigas, foram raptadas em diferentes partes do percurso, em particular durante os primeiros mil quilómetros. O reforço do EV em Tepic surtiu elevado efeito a nível da proteção dos acampamentos, contribuindo para tal os maiores números e as equipas de proteção por drones. Em Tepic foi tomada a decisão de dividir a caravana em três partes, aumentando a capacidade de defesa dos grupos e ajustando-se a segurança na mobilidade.


A travessia do triângulo Sinaloa, Durango e Chihuahua implicou negociação direta com os cartéis, sob ameaça de intervenção por parte do EV e da Descarbonária, reduzindo-se drasticamente o número de pessoas raptadas. A travessia do Deserto de Pinacate correu de forma bastante eficaz. Os deslizamentos de terra à entrada de Baja Califórnia

levaram ao desaparecimento de pelo menos 1500 elementos, uma derradeira tragédia em todo o processo. Dentro do território californiano, os números de EV necessários reduziram-se drasticamente, sendo substituídos pela recém-criada Guarda Californiana, que os conduziu ao destino final, San Bernardino.


Instabilidade emocional, apatia e medo atrasaram muito o processo - falta de pessoal para equipas permanentes de cuidados com forte impacto no insucesso da travessia.

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A minha mãe tinha guiado uma das colunas que eram a sequência natural das caravanas que quase desde o início do século subiam desde a Nicarágua, El Salvador e Honduras rumo aos Estados Unidos para fugir das sucessivas catástrofes sociais e climáticas que devastavam a língua de terra entre o mar das Caraíbas e o Oceano Pacífico. Em particular os agricultores da região viam ano após ano as suas colheitas serem devastadas por secas seguidas de cheias e deslizamentos de terras, os litorais eram devastados por tempestades e furacões sem precedentes, que afundaram vários barcos de pesca e cruzeiros do Caribe. O caos climático associado às condições políticas e sociais locais tinham desestabilizado vários países até muitos destes se tornarem quase inviáveis. A “Via Sacra dos refugiados” já assumia mesmo um caráter religioso, uma espécie de fuga dos judeus pelo deserto, à procura de paz e de um sítio onde viver depois das suas casas de sempre serem destruídas pelo caos climático. As máfias faziam destas migrações desorganizadas um grande negócio, extorquindo e cobrando aos refugiados aquilo que tinham e não tinham, vendendo travessias em troca de dinheiro e mais tarde mulheres, filhas e filhos para os seus bordéis, para as suas


tropas, para as suas minas e plataformas petrolíferas, espalhadas por todo mundo. A introdução do Exército Verde e do Novo Mundo, que se consolidou mais tarde na Rota do Futuro, foi um enorme rombo para as máfias e tornou as perigosíssimas migrações em algo um pouco mais gerível. As lições aprendidas em travessias como esta foram usadas para evitar os mesmos erros e para reduzir drasticamente a perda de pessoas. Os outros episódios descritos no relatório, incluindo dois assinados pela minha mãe, mostraram como ela tinha conseguido enfrentado a barbárie da Máfia. Mas não percebi exatamente a que custo pessoal.



O Luiz acompanhou-me até Denver e segui a minha viagem de trabalho até Los Angeles, a minha primeira paragem fora dos Estados Unidos. Quando se despediu, foi novamente misterioso, mantendo a sua aura de espião, que acho que gostava de exibir. Antes de eu descer na estação de comboio de Denver, sentou-se ao meu lado.


- Sabes que não entrei para o movimento ecomunista, apesar de ter sido convidado.

- Por quê?

- Achava pouco disciplinado em comparação com a Descarbonária. E nunca compreendi como a tua mãe não estava no topo da hierarquia. Acho que havia mesmo um preconceito em relação aos guerrilheiros, às pessoas de ação. E havia poucas pessoas como ela, que arriscaram tudo sempre, pessoas com um coração de leão.

- Mas foi o movimento que permitiu que ela fizesse tudo o que fez. Eu acho que ela acreditava nisso.

- Sim, ela acreditava no movimento. Mas não sei se o movimento acreditou nela até ao fim. Ela destruiu impérios de mafiosos, de petroleiros, era muito odiada por quem soubesse quem era e o que tinha feito. Ela tinha de se proteger melhor.

- Pelo que estou a descobrir, ela nunca esteve muito preocupada em proteger-se.

- Mas o movimento tinha o dever de protegê-la melhor. Bem, não vale a pena agora lamentar-me mais sobre a sua morte. - Lágrimas rolaram dos seus olhos. - Alex, foi um verdadeiro prazer conhecer-te. Não sei se sabes isso, mas és muito muito parecido com a Maria, com a Marta.

- O meu avô dizia-me.

- Protege-te. Fica com o meu contacto mas não o partilhes com os teus “camaradas”. Não tenho tempo para novas aventuras. - Aproximou-se de mim e deu-me um forte abraço. -




Cuida-te, meu querido.

pan-americana

pan-americana

Já estava no continente americano há várias semanas, viajando de cidade em cidade para cumprir a missão que Gianni Fatin me tinha dado: fazer um relatório sobre a situação no continente na preparação da Assembleia Constituinte Mundial. Esse relatório não ia muito além de fazer inquéritos a elementos do movimento ecomunista em diversas cidades por todo o continente. A minha missão secundária era recolher informação sobre a Grande Mudança e descobrir mais sobre o que tinha acontecido à minha mãe, revolucionária na Descarbonária e depois guerrilheira do Exército Verde. A missão principal corria bem, regular, enquanto a segunda dependia muito do acaso - a minha mãe tinha vivido e morrido os seus últimos anos na América Central e do Sul, depois das missões na Segunda Guerra Civil Americana. Excepto Luiz, as pessoas que eu encontrava eram demasiado novas para se lembrarem dela ou sequer mostrar-me portas para explorar, deixando-me crescentemente frustrado. O elevado ritmo de viagem não me deixava explorar várias das pistas que encontrava ou perceber melhor o que se tinha passado em cada país. Também era muito ambiciosa a ideia de contar a história do mundo a uma criança, quando eu mesmo pouco sabia do tanto que se tinha passado. Excepto Gianni, Josephine e Fátima, eram poucas as visões panorâmicas sobre o que se tinha passado. Um episódio aqui, outro ali, mas a grande história era difícil de contar. No entanto, via pela primeira vez com os meus próprios olhos este continente, um território fustigado pela guerra e pela devastação de secas, fogos e cheias, que as pessoas tentavam recompor depois da Grande Mudança, com a chegada das revoluções ecosociais e da paz.


A última paragem antes de chegar à República da Califórnia foi Las Vegas, cidade abandonada no fim da guerra civil. O comboio parou por trinta minutos, destinados a

deixar os passageiros verem os restos da velha cidade, já que não havia mais nada para fazer. Um antigo painel publicitário explicava como fora tomada a decisão de abandonar Las Vegas no meio da seca da década no Oeste, após fortes tempestades de areia. Era hora de deixar de desviar água das Rocky Mountains e do Lago Mead para ali e deixar de alimentar uma cidade em que tudo tinha de vir de fora. Las Vegas era um símbolo de luxo, de opulência e desperdício que perdera o sentido após a Grande Mudança. A diversão devia pertencer a toda a gente e não acontecer numa longínqua cidade artificial, corrupta e alienante, plantada no meio do deserto. Ainda por cima, o Nevada e o Arizona tinham passado por um período de puritanismo anti-álcool e anti-drogas de que Vegas tinham também sido vítima, os anos dos secos contra os molhados .Cerca de 20 mil pessoas ainda vivem no que sobra de Las Vegas, mas a velocidade com que a areia reclamou os grandes edifícios é visível - não que estejam completamente debaixo de areia, mas estão todos cobertos de uma película amarela que apagou a cor e o velho brilho intoxicante da cidade. Perto da estação havia várias sucatas com toda a espécie de materiais tirados dos grandes hotéis e casinos - máquinas de jogos, móveis, eletrodomésticos, fios elétricos, caldeiras, ares condicionados, bombas de calor, velhos veículos - que são enviados para outras zonas do país, para serem reutilizados, para construir ou recuperar edifícios, para serem recuperados nas oficinas de reparação. Um simpático sucateiro que passava com um quadro elétrico parou e explicou-me que a maior parte da população de Las Vegas apenas vinha no fim do outono apanhar os materiais, partindo no início da primavera, porque a partir de então era quase impossível estar na cidade. Poucas pessoas ficavam, vivendo em túneis subterrâneos reforçados e em alguns andares de hotéis. Eram principalmente os últimos “viciados do jogo”, já que nas ruínas de Las Vegas

estavam os poucos sítios onde havia “casinos”, já que a proibição de jogos de azar a dinheiro tinha sido aprovada com o fim da publicidade comercial. Caminhei pela tábuas de madeira da “Strip”, agora sob dois metros de areia, onde ainda se vê claramente a pequena torre Eiffel e o Hotel Bellagio, embora a famosa pirâmide do Luxor tenha colapsado sobre si mesma. Enquanto andava neste passeio o comboio apitou, avisando sobre a partida. Afinal, trinta minutos não chegavam para sequer começar a ver a ruína viva. Arrancámos novamente.


A chegada à Union Station, em Los Angeles, com o seu estilo de “missão no deserto” marcou para mim o fim da transição de paisagem. Tínhamos abandonado a América do Norte e estávamos prestes a entrar na América Latina. Deixámos para trás as paisagens das grandes planícies e das grandes florestas, entrando nos desertos. A devastação pós-guerra ainda era visível em algumas partes dos Estados Unidos, em particular no Kansas e no Missouri, fronteira com as novas repúblicas americanas, mas na Califórnia o principal sinal de destruição eram os troncos e as madeiras negras das florestas ardidas. Tinha muita curiosidade em visitar San Francisco e Suicide Valley, onde no pico das revoluções tantos milionários se tinham matado pelo que entendiam como “o fim da era tecnológica” e a traição ao longtermismo.


Desta vez ninguém me esperava à chegada na estação. Não havia plaquinha com o meu nome ou alguém à minha procura. À saída da porta havia uma enorme festa, em que as pessoas - principalmente mulheres - desfilavam mascaradas com as caras pintadas por riscos irregulares, daqueles que se tinham usado contra o reconhecimento facial. Eram seguramente milhares e ouviam-se batuques que lançavam as pessoas em danças

agitadas, uma espécie de carnaval fora de época. Vários bonecos gigantes feitos de papel reciclado desfilavam no meio da multidão, guerreiros medievais com um ar robótico. Fiquei largos minutos entretido a olhar para o colorido desfile, até que desisti de esperar que alguém me viesse buscar. Iria eu ter à sede do movimento ecomunista, na Avenida Nevin. Ficava num bairro popular, uma zona histórica para o movimento independentista californiano.


Juntei-me ao cortejo, depois de perguntar a alguns manifestantes se iam mais ou menos naquela direção. Era uma celebração, organizada por fugitivas e famílias que tinham conseguido escapar da ditadura cristão do Texas na última década. Meti conversa com algumas senhoras que me explicaram a festa: fazia cinco anos que cerca de vinte mil mulheres tinham conseguido escapar de uma vez do Texas. Uma guerra civil de baixa intensidade ocorria no território texano quase desde a independência, com as elites a dedicarem uma boa parte da capacidade de desenvolvimento tecnológico a dominar os grupos populares que militavam pelo fim do totalitarismo e do governo fundamentalista religioso. Os bonecos gigantes representavam os robôs que as elites usavam nos conflitos militares. Inicialmente, havia pessoas ricas dentro das máquinas, que as senhoras me garantiram serem praticamente indestrutíveis. Os megatechs, como lhes chamava, eram robôs com até 4 metros de altura, ao mesmo tempo uma ferramenta de dominação social e uma nova diversão de elite. Mais tarde, novos robôs passaram a ser controlados completamente à distância, via satélites que os mantinham online durante missões ou confrontos. A grande fuga celebrada aconteceu após da publicação do decreto de gravidez obrigatória, feito pelo Presidente Moore, que exigia a inseminação de todas as mulheres em idade fértil nos dois anos


seguintes. As fugas, até então organizadas pelo Underground Railroad, tornaram-se massivas. Megatechs controlados por jovens playboys vigiavam as fronteiras, acompanhados por soldados de carne e osso, os pobres recrutados compulsoriamente para as forças armadas fundamentalistas cristãs. A fuga tinha sido tão grande que vários robôs tinham mesmo atravessado a fronteira para tentar apanhar as fugitivas. Do lado do Novo México, a situação mudava drasticamente e vários megatechs foram neutralizados pelo Underground Railroad, que os deixou offline e desativados, tendo inclusivamente o filho do vice-presidente do Texas sido preso, o que desencadeou um incidente diplomático. No final do desfile, no meio de um enorme jardim rodeado de casas, os gigantes foram queimados numa fogueira enquanto a festa continuava, com música e barracas onde se podia arranjar comida e bebida. Lembrei-me das palavras do meu pai “É bom celebrar as vitórias”, enquanto continuei a minha caminhada.


A rua onde estava a sede do movimento era numa antiga zona industrial, agora com muitas cerejeiras, com fontes e bebedouros espalhadas ao longo do caminho. Numa antiga fábrica pintada de branco, com uma cobertura verde e mais de uma dezena de pequenas eólicas encontrei a placa “Sede do Movimento Ecomunista, República da Califórnia”. Quando cheguei, o sol começava a por-se e uma sirene começou a tocar. Fui rapidamente puxado para dentro do edifício por duas homens. Devido às recentes tempestades na cidade, uma grande quantidade de mosquitos tinha eclodido em águas paradas, desencadeando surtos de dengue por toda Los Angeles, pelo que tinha sido anunciado um recolher obrigatório de duas horas à volta dos períodos do nascer e do pôr do sol. Rapidamente me informaram que seria preferível dormir ali mesmo na sede, tal como outras pessoas fariam nesse dia. Por coincidência, várias das pessoas


que eu queria entrevista ficaram lá essa noite, pelo que consegui despachar meia dúzia de inquéritos logo ali. A Lia voltou a ligar-me e não atendi. Respondi-lhe secamente por escrito às mensagens. Ela continuava a enviar-me informação por email, que aproveitei para ler. Era a ponte que mantínhamos, no meio da separação física e emocional em que estávamos.


Tinha perdido o ânimo para grandes passeios por cidades depois de Nova Iorque, Minneapolis, Omaha, Denver, sempre demasiado rápidas e cansativas, deixando-me simultaneamente incapaz de ver as coisas em condições e de ter tempo para estudar o material que ia acumulando. No dia seguinte terminei as entrevistas e consegui dar uma volta pela cidade, uma das mais populosas do mundo, mas frequentemente devastada por ondas de calor e pelo fumo dos anuais incêndios florestais californianos e de outros sítios.


Por sorte, estava na cidade fora da época de fogos, o céu estava azul e limpo, mas a maior parte das pessoas andava na rua de máscara, ao contrário do desfile à chegada. Havia alarmes de qualidade do ar em todas as ruas e viam-se bombas de calor do lado de fora das casas. Los Angeles tinha uma maioria das ruas já desalcatroada, com tapetes verdes de plantas por todo o lado, criando um ambiente fresco e perfumado, pelo menos em Novembro. Num passeio por Hollywood descobri que foi em Los Angeles, a antiga sede mundial da indústria do cinema, que apareceu o influente movimento cultural “Life is Live”, assinalando a grande transição para o renascimento do teatro, com a conversão de várias grandes mansões de Beverly Hills em espaços de encenação.


Notícia: Life is Live - Movimento cultural toma de assalto cinemas e redes sociais


A América aderiu à performance de filmes ao vivo, transmitidos em direto nas salas de cinema e redes sociais. O fenómeno explodiu depois da morte do actor Kurt Russel no filme de guerra “Broken Country”, filmado ao vivo na fronteira entre o Alabama e o Mississippi, no meio da Batalha de Red Bay. A crítica de vários realizadores ao movimento não tem impedido que o mesmo se popularize e esteja a colocar em causa as grandes produções e os grandes estúdios, que procuram travar o fenómeno através de ações legais. A filósofa Marie van Niks explica que o movimento revela a urgência do derrube da barreira entre ficção e realidade, quando o mundo colapsa frente aos nossos olhos, em que não é possível manter a bolha de proteção psicológica, em que já não há quarta parede: todos somos atores, quer da ficção, quer da realidade, quer queiramos, quer não.


Foi em Los Angeles que apanhei a Pan-Americana. Eram mais de 30 mil quilómetros desde o Alasca até à Patagónia, uma histórica autoestrada para carros e autocarros, onde hoje está instalada uma linha de comboio ladeada por alcatrão onde ainda podem circular transportes rodoviários em partes do percurso, acompanhada em extensão por dois muros de painéis solares que alimentam o movimento diário dos comboios. As carruagens iam mais cheias do que em todo os trajetos que eu tinha feito até agora dentro dos Estados Unidos e Califórnia. A minha nova mala, um objeto grande de plástico muito duro - eu não sabia que ainda se faziam - já não cabia perto de mim. Tinha-me sido dada pelos ecomunistas em Los Angeles quando viram a quantidade de coisas que eu transportava já sem conseguir fechar a mochila e um saco de pano que tinha entretanto improvisado. Os ecomunistas californianos tinham sido muito simpáticos comigo, mais do que os seus camaradas do lado dos Estados Unidos, que mais que tudo tinham curiosidade sobre o que o “partido” estava a fazer em outros sítios. Atribuí essa curiosidade ao facto de, ao contrário da Califórnia, os ecomunistas não terem tanto poder formal nos Estados Unidos, onde não estavam nos governos nacionais. A herança anti-socialista e anticomunista da história estadounidense ainda tinha um peso grande, mesmo com a secessão dos estados mais conservadores.


A minha companhia de viagem na Pan-Americana eram principalmente pessoas da América Central, regressando por um ou outro motivo aos seus países de origem, a maior parte para visitar a família. Da Califórnia atravessámos lentamente pelo México, fustigados por duas tempestades de areia distintas, que nos paralisaram horas a fio.

Das duas vezes o comboio foi tapado por uma cobertura tipo alumínio para reduzir o sobreaquecimento na zona desértica, mas mesmo dentro das carruagens arrefecidas por bombas de calor e ares condicionados (que funcionavam à vez, apenas recirculando o ar interno, que ia aquecendo), finas partículas de pó circulavam, visíveis sob a luz das lâmpadas. Frequentemente havia fortes ataques de tosse, pelo que toda a gente acabava por cobrir narizes e bocas com máscaras ou panos. Várias conversas percorriam o espaço, e eu fingia que dormia enquanto as escutava. Uma jovem irritava-se com um rapaz que dizia que não ia haver eletricidade na sua cidade. Ela insistia em que se produzia energia mesmo durante as tempestades de areia porque apesar de se reduzir a produção de solar, mantinha-se ou até aumentava a energia eólica.


- Excepto quando está tanto vento que até destrói as turbinas - reclamou o rapaz. - Mas pior são as tempestades de granizo, porque essas muitas vezes destroem mesmo os painéis solares, não há como lavá-los a seguir.

- Se os neoludistas não tivessem destruído as fábricas de hidrogénio verde na costa, talvez estivéssemos melhor para essas alturas. - reclamou a rapariga na direção dele.

- Desculpa, eles tinham razão em destruir as fábricas de hidrogénio verde. Se existissem hoje a única coisa que íamos ter era ainda mais zonas cobertas de painéis e de turbinas eólicas para exportar energia, enquanto nós não a tínhamos. Estou de acordo com o lema que dizia “Transportar energia é destruir energia”.

- Sim, sim, mas depois eles continuaram a destruir as centrais de hidrogénio industriais, que já não eram para exportar, e depois começaram a destruir as centrais solares e eólicas.

- Na revolta dos neoludistas ele destruíram tudo o que puderam. - Abri os olhos.

- Havia muitos neoluds aqui no México? - intervim finalmente. Várias pessoas olharam

para mim.

  • Acho que a maioria não era de cá, vieram por causa da guerra americana e ficaram. Foram meses de ataques e destruição. Que na altura do calor significou ficar várias vezes sem refrigeração, uma catástrofe. - disse a rapariga.
  • Havia muitos mexicanos. Neoluds e os que fingiam ser neoluds. A destruição só acabou quando os ecomunistas fizeram um acordo com os cartéis para acabar com eles, não foi? - perguntou o rapaz.
  • Não sei nada sobre isso -, respondeu ela, que se encolheu no seu lugar. As pessoas olharam para o lado, desinteressando-se. - isso são assuntos que não interessam.
  • Pois… — disse-me o rapaz, abrindo uma revista.

Um silêncio pesado caiu na carruagem, e eu voltei a fechar os olhos.


Quando arrancámos novamente, o comboio aproximava-se de Tampico, na costa do Golfo do México. O comboio por vezes parecia que se deslocava por cima de água, enquanto passávamos ao lado de fábricas. Ramón, o rapaz da discussão começou a explicar-me o que eram: centrais de proteínas, quintas de insectos comestíveis - como as barritas com sabor fumado que eu tinha comprado no bar do comboio - e várias centrais de dessalinização, algumas abandonadas. Quanto nos aproximámos do mar começaram a surgir, a poucas centenas de metros de nós, uma, depois outra, depois dezenas de plataformas petrolíferas abandonadas. Finalmente, havia um grande aglomerado de plataformas ligadas entre si por pontes metálicas. Pintadas de cores garridas, tinham árvores, painéis solares e eólicas. Rámon explicou-me que eram as “ciudades del mar”, onde viviam milhares de pessoas. A maioria das pessoas tinha fugido para ali durante os conflitos após a revolução na Cidade do México, agora


Tenochtitlan. Explicou-me que era tudo provisório, que bastava um dos grandes furacões passar ali para acabar a brincadeira, mas que os anos iam passando e até agora tinham conseguido ficar.


Aliança América Indígena, Zapatistas e Ecomunistas tomam o poder: Revolução na Cidade do México


No fim, foi a falta de água que empurrou a aliança política entre as comunidades Nahua, Otomi, Mazahua, Via Ecologia e ecomunistas com o apoio do EZLN a arrancarem o poder das mãos do pacto entre os cartéis e o establishment político. O dia zero da água chegara à cidade há muitos anos, a instabilidade comercial a Norte e a guerra entre cartéis pelos mercados negros e tráfico de pessoas tinham há muito tornado a cidade num barril de pólvora. Só as fugas permanentes da cidade, que sangravam habitantes ao ritmo de centenas de milhares por ano, e a aliança de terror entre PRI, Siglo XXI, Yunque e os cartéis da Unión Repito e Los Chapitos evitavam que a Ciudad de Mexico explodisse em violência. O governo mexicano já tinha mudado a sua sede para Guadalajara, depois de repetidos raptos de governantes e famílias. A demorou a chegar, mas quando chegou foi veloz, expandindo-se pelo país, com forte adesão popular. Foi nas zonas agrícolas onde antigos narcos mantinham trabalho escravo para produzir comida que os maiores confrontos se deram, com o Exército Verde e milícias indígenas e populares enfrentaram e derrotaram os cartéis em Sinaloa, que tiveram de recuar de volta para as cidades periferias, diminuídos.


Quando arrancámos de Tampico rumo a Tenochtitlan, voltei a pegar o relatório da migração que Josephine me tinha dado. Foi aí que li sobre algumas das piores atrocidades feitas contra as grandes migrações.



Quando arrancámos de Tampico rumo a Tenochtitlan, voltei a pegar o relatório da migração que Josephine me tinha dado. Foi aí que li sobre algumas das piores atrocidades feitas contra as grandes migrações.


Relatório Interno: Travessia Migratória Honduras - Califórnia [trajeto Ciudad México - Guadalajara]


Segunda entrevista MG


O debriefing a MG decorreu uma semana após a chegada do último grupo de refugiados a San Bernardino. MG está em recuperação de ferimentos sustidos no ombro e perna durante o trajeto entre Ciudad de México e Guadalajara. É sobre esta parte do trajeto que incidiu a entrevista.


MG: Nós já tínhamos aprendido com a catástrofe inicial à saída de Tegucigalpa, de onde vários campos de refugiados tinham começado de forma bastante improvisada a sua viagem. Tínhamos identificado grupos de mercenários dos esquadrões Bukele de El Salvador, dos cartéis de Guatemala e da Mara Trucha. Já não íamos mais aceitar as perdas para poder seguir com a caravana. Também já éramos mais, em vez de dois miseráveis pelotões, e estávamos equipados com drones que nos permitiam vigiar até 20 km de perímetro. Não que isso servisse de alguma coisa perto de populações. O principal ataque aconteceu quando viajávamos na direção de Morelia. Ao contrário do que era costume, atacaram a dianteira da coluna, separando umas três mil pessoas, que com motas e motodrones encaminharam a pé na direção dos pântanos de Isla de Tzirio. Apanhámos alguns dos atacantes, que identificámos


como máfia michoacana. Eu comandei o batalhão que os perseguiu. Não tínhamos veículos, pelo que só alcançámos o grupo principal 5 horas após o ataque. Os nossos pisteiros apanharam alguns homens que os raptores deixaram para trás, que não falavam espanhol, o que me levou a concluir que não eram apenas máfias locais. Mais tarde em interrogatórios descobri que havia vários polacos e húngaros, de milícias de extrema-direita.

EN: O que aconteceu quando finalmente os alcançaram?

MG: Ainda antes de os alcançarmos já tínhamos encontrado vários corpos de membros da caravana, alguns mortos com crueldade extrema, decapitados e com as mãos decepadas. Um espetáculo de horror pior do que o que tínhamos visto até aí.

EN: E quando os alcançaram?

MG: Quando os alcançámos fomos atacados pela polícia federal mexicana, que se colocou entre nós e eles, já numa zona pantanosa. Tínhamos ordens para não usar força letal contra as autoridades locais, mas a polícia disparou sobre nós com fogo real, atingido sete camaradas.

EN: Porque não desengajaram, então? Tinha ordens para isso?

MG: Os elementos da caravana estavam a menos de 500 metros de nós, conseguia vê-los. Não ia desistir de tentar recuperá-los.

EN: O que fizeram, então?

MG: Deixámos dois pelotões a fixar a polícia e tentámos flanqueá-los, mas o pântano era muito difícil de ultrapassar. Então decidimos correr para a ponte mais próxima, a 15km, mantendo os nossos drones a acompanhar os raptores.

EN: Porque decidiu fazer uma perseguição de mais de 50km a pé?

MG: Porque já tínhamos perdido demasiada gente seguindo ordens para preservar a integridade de uma coluna principal que estava cada vez mais pequena e cada vez mais


desmoralizada. Precisávamos salvar pessoas. A caravana precisava que salvássemos pessoas e as tropas precisavam salvar pessoas. E salvámos.

EN: Pode explicar-me como terminou a operação de resgate?

MG: Alcançámo-los um dia depois, em El Derramadero. Já só havia 1700 pessoas da caravana. A maior parte dos raptores morreu nos combates, não sem antes matarem, várias pessoas. Conseguimos juntá-los à caravana principal dois dias depois. E ficámos com vários veículos que melhoraram drasticamente a nossa mobilidade.

EN: Mas entretanto a subcomandante não voltou com eles?

MG: Não, eu fui confirmar o que várias pessoas me tinham relatado.

EN: O que era?

MG: Que oitenta e duas pessoas foram mortas, torturadas e deixadas a morrer durante a noite à saída dos pântanos.

EN: Foram mortas como?

MG: Foram presas ao chão, amarradas pelos braços e pernas sob pequenas plantas de bambu. Depois, o bambu cresceu rapidamente, perfurando os corpos das pessoas em vários sítios. Chama-se a tortura do bambu.

EN: Você viu isto?

MG: Vi, havia pessoas trespassadas no pescoço, no torso, no abdómen, nos braços e pernas… Tinham-se esvaído em sangue e imagino que com dores terríveis. Submeti um relatório, está tudo documentado, fotografado e filmado.

EN: Quem foi responsável por isto?

MG: Questionei todos os prisioneiros e todos me disseram que tinham sido mercenários a soldo de máfias de Ciudad Juárez. Que tinham sido enviados para fazer aquilo.

EN: E o que fizeram vocês?



MG: O batalhão retornou à caravana acompanhando as pessoas e eu comandei um pelotão até Uriangato, à procura dos raptores que tinham fugido.

EN: E o que aconteceu?

MG: Conseguimos encontrar alguns elementos locais, mas a maior parte já tinha fugido.

EN: O que aconteceu aos elementos que conseguiram encontrar?

MG: Quando os encontrámos, eles tentaram fugiram e nós abatemo-los.


Raios. A minha mãe não era pêra doce. Acho que toda a gente que viveu aqueles tempo tinha de ser dura ou perder. As barbáries a que assistiu devem tê-la endurecido muito. Como se continua a ser idealista numa situação daquelas, como se mantém a Humanidade? Como se luta pelo futuro quando tanto daquilo que se vê as pessoas a fazer é tão mau, tão desumano, tão anti-humano?


Vários territórios que fomos atravessando depois do México e das novas repúblicas de Oaxaca e Chiapas - Guatemala, El Salvador, Nicarágua, tinham sido severamente impactados pelas ondas de calor e tempestades do final dos anos 20 e início dos 30, em particular a Guatemala e as Honduras. Apesar de se terem recomposto, tinham perdido quase metade da sua população, principalmente pelas migrações para Norte e para Sul. El Salvador ainda tinha sofrido em cima das catástrofes climáticas a ditadura de Bukele e das suas gangues, que foi derrubada na revolução de 2032. Ao contrário da Europa, na América Central e do Sul existiam muito poucas cidades livres. Parámos na fronteira entre o Panamá e Colômbia, no famoso “Tapón del Darién”, local terrível, onde milhares de pessoas morreram numa batalha de anos entre o crime organizado e a Rota do Futuro pelo controlo da migração.

Notícia: O inferno de Darién


Este ano centenas de pessoas voltaram a morrer na selva de Darién, sob a lama dos pântanos, as mordidas de cobras, as doenças dos mosquitos, o fogo dos narcos e dos milicianos de Cristo. Darién foi escolhido pela aliança entre várias quadrilhas e gangues de toda a América para travar o projeto das Rotas do Futuro no continente americano. Tal como no ano passado, a aliança criminosa foi enfrentada pelo Exército Verde e pelas forças do Tratado Mundial do Clima antes dos migrantes da América Central organizados na Rota do Futuro chegassem ao local. A Rota do Futuro, desenhada para criar caminhos seguros organizados para as migrações das zonas mais afetadas por catástrofes climáticas, tem conseguido reduzir drasticamente as mortais marchas forçadas do crime organizado que, com o colapso do comércio internacional de drogas, passou a ter como negócio principal o tráfico e escravatura de pessoas.




lia e as cidades livres

lia e as cidades livres

De: liavgoms@voo.com

Para: alexaguas@voo.com

Data: 18 de nov. de 2042, 11:20

Assunto:


Olá, Alex. Percebo que estejas magoado com o que aconteceu, mas parece-me que estás a exagerar, meu querido. Se me estivesses a atender o telefone, como prometeste que farias todos os dias, saberias que decidi visitar a Mei no Alentejo. Estamos as duas com o António. Trouxe três caixas dos teus pais no comboio, eu e ela temo-nos entretido a vasculhá-las e a organizar documentos. Há aqui cartas antigas para ti em papel, com remetentes diferentes mas com a mesma letra. São da tua mãe? Sabes a que cartas me refiro? Têm marcação de serem de 2030, 2031 e 2032. Comecei a escrever uma cronologia da Grande Mudança, envio-te o primeiro esboço, ok? Também anexei materiais sobre as cidades livres e os ecomunistas. Onde estás agora? O teu silêncio, além de infantil, tem-me provocado muita ansiedade. Já pensaste como é egoísta tu estares a milhares de quilómetros de distância, longe de mim e do teu filho, e simplesmente estares a fazer uma birra que me aflige diariamente? Cresce, meu! Nós aceitámos estar juntos, não é um castigo, não és meu dono, gosto muito de ti mas estou farta do teu silêncio. Tenta por favor não piorar a situação. Já sabes quando voltas?


Lia.


O meu regresso a Lisboa foi muito agitado por causa da reação violenta do Alex. Quase me arrependi do que aconteceu com Ettore, quase fiquei presa na culpa de ter sido feliz algum tempo ao lado de uma pessoa muito interessante, quase me arrependi de ter contado ao Alex. Foi absurdo, em que tempo acha ele que vivemos? Temos de andar escondidos e a esconder o que sentimos, o que experimentamos, o que desejamos em nome da insegurança viril? Tenho de aguentar a solidão e o trabalho e o cuidado da criança sozinha e satisfeita, mesmo quando não estou?


Depois de visitar rapidamente os meus pais, viajei até ao Alentejo para ir ter com a Mei. Ela faz parte da grande comunidade vietnamita que veio para Portugal depois da grande fome asiática em 2033. Mei trabalha na Zona Natural do Sudoeste Alentejano, recuperando habitats de pássaros. A grande quantidade de espécies invasoras e as marés de cianobactérias tornaram a vida muito difícil para os pássaros e os animais terrestres autóctones. A praga que mata os sobreiros tem tido um grande efeito na região. As comunidades que vivem em vários dos antigos projetos de turismo de luxo, das aldeias da Torre e das Dunas até ao rio Mira, têm sofrido bastante com as tempestades marítimas e subida dos picos de maré, que invadem as antigas casas dos milionários, construídas com materiais de má qualidade e muito baixas. A pressão para se mudarem para o interior é grande. Como Alcácer do Sal e Odemira também têm sofrido drasticamente com inundações, as populações mais ribeirinhas estão a mudar-se lentamente para as aldeias mais interiores, mas também para Grândola, cuja população tem crescido lentamente até chegar aos 50 mil habitantes. É uma pequena cidade muito vivida e cosmopolita, com pessoas de vários locais do mundo, famosa por

ser motivo do antigo hino nacional. No verão, aqui o calor chega frequentemente aos 48ºC, e as populações mais recentes organizam as viagens de verão, ficando dois a três meses acampadas perto das praias. Surtos recentes de malária e dengue têm posto em causa estas viagens e contribuíram para acabar com a cultura de arroz da região.


Enquanto vasculhávamos pelas caixas, separei alguns documentos que enviei para o Alex, importantes para compreender a fundação de pelo menos dois movimentos que assumiram parte da Grande Transformação: o movimento ecomunista e a federação das cidades livres. Acabei por fazer uma primeira cronologia, mas com muito pouca informação em relação ao que aconteceu em cada ano. Escolher seis ou sete acontecimento de tudo o que aconteceu em todo o mundo é realmente um desafio, mas é melhor do que o que tínhamos até então. Pelo menos é possível perceber alguns avanços e recuos, as ondas de calor e inundações seguidas de fomes, as revoluções e as respostas ultraconservadoras, a ruptura dos territórios e até a criação de novos espaços e países, de novas identidades à medida que avançámos até um momento histórico diferente de tudo o que tinha acontecido até então.



Cronologia


2024

“Energia Europeia para os Europeus” e fim do Pacto Verde Europeu

Criação do Novo Mundo

Pacto Migratório da UE


2025

Marés negras no Atlântico

COP 30

Grandes protestos contra a austeridade e a extrema-direita na Europa

Greve geral na Europa de Leste


2026

Ano 1.8

Ondas de calor no hemisfério ocidental

Setembro Vermelho

Colapso da UNFCCC

Tratado Mundial do Clima

Turbulência política na China

Neoluditas e Descarbonária

Ataque do GPT ao G7

Proibição das criptomoedas

Moratória dos EUA sobre a exploração de novas reservas de petróleo e gás

Ondas de calor na Índia matam 4 milhões de pessoas - Queda do Governo Modi


2027

Secessão do Texas

Grande praga de gafanhotos em África

Covid Bovino/Zebuíno

Grande fome (20 milhões de mortos em todo o mundo)

Greve geral na Europa, EUA e Ásia

Fundação do Estado da Palestina

A IA toma conta das bolsas de valores e arruína as empresas petrolíferas

Fundação do movimento ecomunista

Criação da Comissão Mundial do Calor


2028

Grandes inundações na Europa

Segunda Guerra Civil Americana

Unificação da Irlanda

Assembleia Sangrenta

Revoluções em Marrocos, Nigéria, Angola e Namíbia

Derrube de Sisi em golpe de Estado no Egipto

Fundação do Califado de Aden Ayro em Moçambique e na Tanzânia

Rota do Futuro


2029

Grande incêndio da Amazónia

Golpe de Estado das milícias evangélicas no Brasil

Banco Mundial do Clima emite Carbos

Eleições europeias suspensas

Primeiro colapso da Internet

Utilização de bombas atómicas no Texas

Líder da extrema-direita alemã morre numa onda de calor

Fome regional na Europa de Leste e na Ásia

Golpe de Estado comunista na China


2030

Ano do Leão - extinção do leão africano e do cão selvagem africano

Estado Islâmico invade a Líbia e bloqueia o Canal do Suez

Fundação da Muralha - golpes de Estado em Espanha, Itália e países nórdicos

Declaração das Cidades Livres

Revolução em França

Revolução Brasileira

Revolução da Califórnia

Independência do País Basco, da Catalunha, das Ilhas Baleares, da Córsega e do Sul

Formação da República da Oriental Africana

Desintegração da Federação Russa

Cessar-fogo na Guerra Civil Americana


2031

Revoluções europeias: Portugal, Espanha, Itália, Alemanha, Grécia, Áustria, Hungria, Eslovénia

Jubileu das dívidas públicas

Nacionalização das indústrias fósseis


Grande Julgamento

Independência dos novos Estados americanos

Texas torna-se um “Estado cristão”.

Candidato independente vence as eleições nos EUA

Primeira festa da Grande Chegada em França

Neoludditas começam a sabotar as energias renováveis


2032


Dois meses de onda de calor no Médio Oriente, 6 milhões de mortos e enormes migrações

Golpe de Estado e ditadura na Turquia

Revolução iraniana

Desintegração da Arábia Saudita

Carta dos Refugiados

Reforma das políticas imobiliárias na Europa


A declaração das cidades livres foi feita no Ano do Leão. As primeiras cidades que se aliaram e anunciaram a sua autonomia em relação aos estados foram Nápoles, Marselha, Amadora, Saint-Denis e Christiania, o bairro de Copenhaga. Apesar de Portland, Seattle e Nova Orleães já terem proclamado um estatuto similar durante a guerra civil americana, não se integraram na declaração. O desespero do status quo era evidente, ainda estava em choque com as revoluções africanas e perante a incapacidade de retomar o controlo da situação. A extrema-direita lançara as suas milícias contra os campos de refugiados no centro e no Sul da Europa, matando milhares de pessoas. Dois atentados à bomba no Parlamento Europeu e no Parlamento austríaco levaram a decretos de emergência e suspensão de liberdades e garantias. Em

Abril de 2029 as eleições europeias foram suspensas e sob o protesto dos comissários europeus de S&D, e uma nova comissão tomou controlo, com um programa de extrema-direita e a entrega de quatro comissões a partidos fascistas - Migrações à Hungria, Energia à Itália, Segurança à Áustria e Armamento e Militar a Espanha. O Exército Europeu, projeto que estava paralisado há anos, foi desbloqueado mesmo perante o protesto de alguns estados membros. Um dos principais objetivos era usar a nova força europeia para cumprir o pacto migratório e forçar a expulsão de milhões para a Líbia e para o Ruanda. No entanto, o primeiro colapso global de internet aconteceu.


Notícia: Internet colapsa


Foi no sábado à noite. Provavelmente a maneira como percebeu foi com algum pagamento. No meu caso foi num restaurante. Os seus cartões deixaram de funcionar e pediu a alguém para pagar mas também não funcionava. Tentou descobrir nas notícias no seu computador ou no telefone o que se passava, mas os sites também não abriam. As chamadas não funcionavam e o dono do restaurante deixou ir sem pagar todas as pessoas que não tinham dinheiro, que eram a maioria. Se estava com sorte, estava perto de casa, não precisava de nenhum mapa ou GPS para voltar, porque não existia orientação disponível nos smartphones. Esperou que fosse um fenómeno temporário mas no domingo mais de metade dos sites estavam em baixo, principalmente os informativos. Nenhuma rede social operava. Vários canais na sua box não transmitiam, ou transmitiam programas gravados. Apenas dois ou três canais - no meu caso os públicos - davam conta da confusão que imperava por todo o mundo: várias zonas sem eletricidade, sistemas de transportes parados, muitas indústrias com as

portas fechadas, voos intercontinentais paralisados nos aeroportos, portos sem serviço. Provavelmente pensou que devia ir às compras porque não tinha coisas em casa, mas lembrou-se que continuava a não ter dinheiro. Provavelmente as lojas também estivessem fechadas pelo mesmo motivo. Ao fim do dia o governo anunciou “um problema em múltiplas regiões do globo, que interrompeu o normal funcionamento da internet”. Anunciaram ainda que o dia seguinte seria feriado e que os bancos estariam fechados, pelo que as pessoas não deviam tentar levantar dinheiro, mas que as contas estavam todas seguras. Claro que o efeito desta declaração foi o contrário do desejado. A partir da madrugada, filas gigantes primeiro frustraram-se depois destruíram os ATMs para tentar ter dinheiro. As lojas que abriram às 9h00 tiveram de ser fechadas pela polícia às 10h, depois de inúmeros clientes não terem como pagar e recusarem-se a deixar a comida. Ninguém se esquecia da escassez de ’27. Ninguém se esquecia do takeover financeiro de ’26, ninguém se esquecia do colapso do Starlink e das grandes redes sociais. Parecia tudo isso combinado. O exército regular foi chamado para proteger os armazéns públicos de comida, mas as lojas fechadas foram saqueadas o dia inteiro. A polícia tentava expulsar as pessoas das lojas, mas multidões corriam as cidades à procura de qualquer estabelecimento onde pudesse haver algo útil para os dias seguintes, que já prevíamos ser de escassez. Essa noite o governo anunciou que tomara posse dos armazéns comerciais e que na 3ª feira começaria a distribuição regular de comida. Foi declarado estado de sítio e imposto recolher obrigatório, o que tinha deixado de ser novidade ou de surtir grandes efeitos. Essa noite a eletricidade falhou durante oito horas. Se fez como eu, na 4ª feira ficou em casa e apenas saiu para receber a comida distribuída pelas Forças Armadas. Na 5ª feira de manhã voltou a haver internet, mas metade dos sites deixara de funcionar e todas a

informação que tinha armazenado na rede tinha desaparecido: emails, passwords, contas, fotografias, vídeos, documentos partilhados. Se é como eu, perdeu uma parte da sua vida naqueles dias. E se é como eu, ainda está a tentar recuperar coisas. E se calhar também está a descobrir que se calhar não vamos recuperá-las. O que não sabemos de todo é porquê isto aconteceu ou quem provocou isto. Noutros anos culpou-se a IA, os Ecomunistas, a Muralha, os Neoluditas. De quem é a culpa agora? Depois do colapso das grandes redes sociais, garantiram-nos que a internet estava segura, o que vão garantir a seguir?

Dois meses depois, o inacreditável aconteceu: mais de 300 aviões despenharam-se dos céus, apesar da internet estar operacional. As acusações caíram nos mesmos de sempre, mas nunca foram além da retórica, não houve explicações oficiais, apenas anúncios de investigações por parte de governos cuja credibilidade era miserável. A indústria da aviação, que já se vinha reduzindo há anos apesar da introdução de alguns modelos elétricos, entrou em declínio total. A maior parte da indústria do turismo, ou o que sobrava dela, também. Toda a gente que ainda tinha meios para fazer turismo não podia deixar de pensar que existia a possibilidade de morrer na viagem, de não ter acesso ao seu dinheiro durante a estadia, que podia não ter tudo o que necessitava noutro local do mundo e nem sequer rede familiar ou social.


Nesse caldo de barbárie, a extrema-direita europeia recompôs-se, aliando-se com conservadores católicos e evangélicos, formando “A Muralha”. Abandonando qualquer pretensão de democracia, planificou golpes de estado em todos os países da União Europeia. Em alguns locais os resultados foram patéticos, em outros não. A Muralha tomou o poder em Espanha, em Itália e nos países nórdicos. Entre as primeiras medidas tomadas esteve a proibição do movimento ecomunista e a ordem de detenção de todos os seus dirigentes, o que se estendeu também aos membros do Exército Verde, dos Neoluditas, da Descarbonária, da Orca e de “O Leste”. Ao contrário do que se passara dois anos, esta ordem surtiu menor efeito, quase ninguém foi detido, embora alguns dirigentes tenham sido mortos.


Nesse inverno, as fronteiras da Europa de Leste tornaram-se um verdadeiro cemitério de arame. Militares, polícias e milícias receberam ordens da nova Comissão Europeia e

lutaram para impedir que migrantes e refugiados entrassem na União Europeia. Três milhões de pessoas morreram de frio e doenças em acampamentos improvisados na Moldávia e na Ucrânia. Milhares de cadáveres e embarcações circulavam nos rios Dniester e Tisa, espalhando surtos de peste bubónica na Roménia, Hungria e Sérvia.


A Muralha, comandando as Forças Armadas de Espanha, Itália, Finlândia, Suécia, Noruega e o exército europeu, deu ordens para atravessar o Mediterrâneo e ocupar as praias do Norte de África para impedir o embarque rumo à Europa. A França, apesar de apoiar a iniciativa, decidiu não participar. Do lado europeu, a Muralha erigiu mais 4000 km de muros e arames farpados, principalmente nas fronteiras terrestres, mas também em zonas de embarques marítimos. A Europa Fortaleza já era uma realidade, com quase 50% do território da União fechado.


Mas onde a Muralha esperava fraqueza do lado do Norte de África, encontrou força: os governos argelino e tunisino afundaram uma frota italiana que tentava tomar os portos na Tunísia. A humilhação foi enorme. Os portos, depósitos de combustíveis e instalações militares em Itália e Espanha sofriam a maior campanha de sabotagem desde a 2ª Guerra Mundial. Ecomunistas e descarbonárias agitavam permanentemente e vários países da União Europeia anunciavam o início de processos de saída do espaço europeu, rejeitando a conscrição de soldados e contribuição para a campanha militar de retaliação exigida pela Comissão da Muralha.


Nos primeiros dias de Maio, a Declaração das Cidades Livres foi lida em simultâneo em Nápoles, Marselha, Amadora, Saint-Denis e Christiania. Estas cidades respondiam a um

assédio permanente das suas populações, que estavam sempre sob estados de emergência e um estado policial de violência. Depois da declaração, os grupos armados constituídos para defender as cidades, que nesta altura tinham elevada presença de elementos do Exército Verde, atacam esquadras e equipamentos policiais, libertando prisioneiros políticos, tomaram instituições políticas e armazéns alimentares, expulsando a polícia e políticos ligados à Muralha dos limites das cidades, convocando assembleias sociais para organizar e defender os espaços. As tentativas das autoridades de reentrar nas cidades livres são rapidamente rechaçadas e em poucos dias muitas outras cidades também declaram-se “livres” e seguem o modelo de autogestão seguidos pelas primeiras. Antes do final do ano, a Revolução Francesa derrubaria o governo e no ano seguinte revoluções em vários países europeus varreriam a Muralha.


Declaração das Cidades Livres


Hoje dizemos basta!


Somos milhões e apelamos às nossas irmãs e irmãos a que se juntem à nossa luta como o único caminho para que não morram à fome perante a insanidade de uma máquina trituradora que não soube e nunca aprenderá a parar. Depois dos engravatados hipócritas, camarilha de traidores que se aliava a todos os conservadores que venderam o que era nosso a troco de nada, agora temos a Muralha, chusma de violentos ressentidos, padres e bispos chauvinistas, que perante a hecatombe nos vêm falar de Deus e da ordem da pistola, do cassetete e da sirene, como se comêssemos e vivêssemos deus e ordem, a

nauseabunda ordem deles.


Não temos de vos dizer que as coisas estão más. Toda a gente sabe que as coisas estão más. É uma crise, são cem crises. A crise não para. Quando uma pára a outra já começou. Vivemos fomes, desemprego, violência, golpes de estado, contra-golpes, assassinatos, guerras. Vemos os nossos irmãos e irmãs a morrerem nas fronteiras, como os vemos a morrerem nas nossas ruas. Um euro vale um cêntimo. Os bancos estão a falir. Os comerciantes não têm o que vender. Os criminosos andam à solta na rua a extorquir-nos proteção, enquanto a polícia além de extorquir-nos mata-nos e persegue-nos. Sabemos que o ar é impróprio para respirar e a comida é imprópria para comer, e dizem-nos para nos sentarmos a ver telemóveis e televisões enquanto os noticiários nos dizem que o mundo está a acabar mas não há nada a fazer, como se fôssemos simplesmente aceitar. Pior do que más, as coisas estão loucas. É como se tudo em todo o lado estivesse a ficar louco, e sentamo-nos em casa enquanto o mundo à nossa volta vai ficando mais pequeno - e querem mais arames farpados, mais muros altos, menos pessoas, os aviões caem e os nazis também morrem nas ondas de calor, não sabemos se há comida no mês que vem. E até agora dissemos uns aos outros: pelo menos deixem-nos em paz. Mas não. Não vamos deixar ninguém em paz. Levantámo-nos e não voltaremos a sentar-nos.


A soberania reside no povo. Todo o poder político tem de emanar do povo e tem de ter como objetivo ajudar o povo. O povo que tem, em todos os momento, o direito de alterar ou mudar a sua forma de governo. É isso que faremos. A partir de hoje nós, cidades unidas, declaramos a nossa autonomia em relação aos estados nos quais estávamos inseridas. A partir de hoje somos cidades livres, tomaremos as instituições das nossas cidades e criaremos novas instituições que correspondem ao nosso novo estatuto, o de “Cidades Livres”. Não mais



aceitaremos ordens de governos centrais, não aceitaremos a manutenção de nenhum elemento dos seus aparelhos repressivos dentro dos nossos territórios, tomando imediatamente posse de todas as estruturas e equipamentos e expulsando os elementos políticos e policiais do regime que nos oprimia e contra o qual nos revoltámos definitivamente. As nossas cidades serão espaços abertos a quem precisa de abrigo, a quem precisa de apoio e de amor. Serão espaços metropolitanos, onde a nossa cor, identidade ou quem amamos serão apenas lindos detalhes da nossa comunidade.


Das nossas cidades - Marselha, Nápoles, Saint-Denis, Amadora, Christiania - lançamos um apelo a todas a cidades, vilas e aldeias do mundo inteiro: Tomem em mãos os vossos destinos e juntem-se à insurreição popular contra a opressão dos estados fascistas e capitalistas que nos conduzem à catástrofe, matando-nos no caminho. A partir de hoje construímos cidades autónomas e autogeridas, cidades livres.


Na cidade livre manda o povo, e o governo obedecerá!


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No final da primeira semana, dez outras cidades rebelaram-se. Vários territórios maiores declaram independência, formando novas nações como a Escócia, a Bretanha, a Sicília, a Catalunha ou o País Basco. A Muralha declarou urgente a reconquista das integridades territoriais e nacionais da “Europa das Nações”, introduzindo o recrutamento militar obrigatório. A rejeição generalizada de participar leva-os, em desespero, a recorrer a grupos criminosos como a Camorra, a Ndrangheta, Los

Charlines ou o Gang du Petit Bar e ironicamente acaba por oferecer regularização e nacionalidade a estrangeiros e migrantes que se alistem. Estes acabam por constituir as “unidades naturalizadas”. Quando os exércitos espanhol e italiano recebem ordens dos respetivos governos da Muralha para bombardearem mais de trinta cidades livres nos seus territórios, soldados e sargentos amotinam-se, detendo oficiais e prometendo paz às milícias que protegem as cidades livres. As cidades livres não caíram. Um ano depois, mais de 200 cidades europeias e várias dezenas na América do Norte haviam declarado o estatuto de Cidade Livre. A Aliança das Cidades Livres lançaria os seus planos para cidades seguras: desasfaltar, arborizar, libertar rios e fontes. As cidades livres criariam depois os corpos locais de cuidado permanente, abolindo a polícia nos seus territórios. Tornou-se mais tarde uma federação, com um sistema de comércio justo inter-cidades livres e também com os Estados tradicionais, unindo-se ao Tratado Mundial do Clima e à Carta do Refugiado, integrando a Rota do Futuro para receber refugiados climáticos.


Mas nem tudo correu bem. Passados poucos anos, a Máfia conseguiu controlar algumas cidades livres e a extrema-direita começou a ter força em alguns territórios, tornando-os independentes de estados para impor um agenda conservadora em estados revolucionários. Movimentos independentistas que não conseguiram tornar-se independentes procuraram criar independências de facto com proclamação de cidades livres. Cidades costeiras que tinham de ser relocalizadas devido à subida do mar declaravam-se cidades livres para evitarem ter de abandonar o território onde estava. Mas nem tudo correu mal. A Federação das Cidades Livres começou o processo de transformação urbana, aboliu veículos individuais privados dentro das cidades,


começou a compatibilização rural-urbano, entre outras coisas. Eram territórios muinovadores em gestão e transformação, em particular no que diz respeito a energia, transportes, agricultura e relações sociais, experiências que seriam levadas pelos governos revolucionários para os estados ecomunistas e outros.


Quatro anos depois da declaração, foram pela primeira vez expulsas cidades livres da federação, por proibirem a entrada de refugiados climáticos e criarem polícias internas. No ano seguinte, Aliança das Cidades Independentes cinde da Federação das Cidades Livres. A Muralha ressurge dentro desta Aliança, que cria milícias armadas, expandindo territórios enquanto impõe regimes de terror internos. Diz-se que é da Aliança das Cidades Independentes que sairão as ordens e os assassinos que em 2036 matarão vários quadros do movimento ecomunista e do Mundo Novo na Europa e no continente americano. Federação e Exército Verde finalmente juntam-se para invadir as cidades da Aliança e reintegrá-las nos estados, enquanto os elementos da Muralha são removidos e enviados para territórios-limite, nas margens do Sahara e na Gronelândia.


Foi nesta altura que a mãe do Alex morreu no México. Foram mais de 400 quadros assassinados em vários países, mas principalmente no Sul da Europa e no Sul da América. A Muralha parecia uma praga, sempre teimando em reaparecer, mesmo quando as coisas melhoravam. Por outro lado, a minha experiência pessoal, enquanto criança, era de enorme orgulho em relação às cidades livres. Vivia na Amadora e lembro-me bem da alegria quando se defendeu a cidade livre primeiro uma semana, depois um mês, sobrevivendo e fortalecendo-se, como foram rechaçados os ataques

até finalmente pararem e o facto de ser uma cidade livre se ter tornado uma situação normal. Ao contrário do que muitos previam, após a revolução foi possível manter a autonomia e acordos muito honestos e justos com o resto do território, além das cidades livres como Setúbal e Lagos. O meu pai, anarquista de longa data, e a minha mãe, que a partir da declaração se passou a autointitula autonomista amadorista, tornaram-se muito ativos politicamente dentro da cidade livre, envolvidos na organização da produção de comida e nas brigadas de cuidado. Sempre me incentivaram a participar, tanto dentro da cidade, como quando fui viver para Lisboa. Por outro lado, sempre me pareceu que a relação dos meus pais com a política era muito diferente da do pai do Alex. A diferença entre o local e o global, e talvez a disciplina separavam os ecomunistas dos outros grupos, mas também sinto que, no caso do António, ele era um homem demasiado frio, demasiado distante. A perda da mãe do Alex pode ter contribuído para isso, mas nunca percebi como não a idolatravam, tendo em conta que parecia ter sido uma heroína do seu tempo, à qual devemos tanto.

Pronunciamento Ecomunista


O movimento ecomunista nasceu para salvar a Humanidade. Das cinzas da catástrofe e da barbárie capitalista, erguemo-nos por tudo quanto recebemos pelo simples facto de existirmos e estarmos vivos neste planeta. Erguemo-nos para nos lançarmos à vitória.


O nosso objetivo primário é simples: A Revolução. Não um percalço ou um soluço, mas o derrube inapelável, o desmanche imparável, o sepultar inexorável do capitalismo global. Destruí-lo-emos em todos e em cada país onde ele está, em todas e cada fábrica onde ele opera, em cada estúdio de televisão e ligação online onde ele vigora, em todas as relações sociais e nas monstruosidades implantadas por ele dentro dos nossos cérebros.


Arrancaremos este cancro que foi imposto à espécie humana pelas suas decrépitas elites, que colocaram os povos de joelhos, amordaçados, imbecilizados, inseguros e amputados, numa arena em que se matam uns aos outros até nada e ninguém sobrar. Não, o capitalismo não é a natureza humana, como o feudalismo não o era. É uma doença passageira, de graves consequências, que temos de ultrapassar para a Humanidade continuar a construir-se e para construir um futuro de abundância e harmonia.


Arrancaremos os tubos e as brocas que esventram a terra, o mar e despejam os excrementos da máquina de morte capitalista nos céus. Fundiremos o ferro e o aço das refinarias, das plataformas logísticas e dos jatos privados para os devolvermos ao seu estado neutro, em vez de máquinas de ampliação de morte. Dos seus despojos construiremos cidades, aldeias, vilas e estradas para viajarmos pelo mundo que é todo nosso e ao qual todas pertencemos.


Faremos o futuro. Faremos a nova Humanidade. Essa Humanidade não vai apenas sobreviver, vai viver, prosperar, ser feliz e ir muito além daquilo que hoje somos capazes de imaginar.


Reconstruiremos e curaremos as feridas que séculos de capitalismo, colonialismo e patriarcado abriram na humanidade e no planeta. Recuperaremos os territórios, as espécies, os ecossistemas e os seres que durante séculos estiveram sob o odioso jugo do chauvinismo que guiou uma parte da humanidade rumo à violência e à dominação. Não temos de dominar, não seremos dominados por impulsos alienígenas de dominação. Expurgaremos as alienações que nos afastam umas das outras como afastam povos uns dos outros.


Somos trabalhadoras, mas não mais o seremos. A nossa classe, como todas as outras, será dissolvida. Da hierarquia da sociedade, mantida para que os de baixo se arrastassem sob o peso dos de cima, faremos tábua rasa.


Somos um movimento. Das cinzas partidárias e associativas construímos um novo futuro. Só nos recordaremos para aprendermos onde falhámos. Não construímos ídolos, profetas, nem idolatramos vitórias e conquistas passadas. O nosso ídolo é a Humanidade que vamos construir. Se alguém anunciar que a nossa revolução está acabada, derrubem-no, porque a Humanidade é a Revolução, a Humanidade é a recusa do silêncio e do vazio. A Revolução Ecomunista é a manifestação máxima da vida, o derrube das forças da entropia, a mobilização e construção coletiva de futuro. A Revolução é a Humanidade em movimento rumo ao futuro, reinventando-se, reorganizando-se, reimaginando-se. O futuro é a Revolução e a Revolução é o futuro.


Não nos esconderemos atrás de contingências, dificuldades ou obstáculos. Conhecemo-los e ultrapassá-los-emos porque não há caminho para a Humanidade que não passe pela superação, por quaisquer meios necessários, do sistema genocida e suicida que organizou a sociedade nos últimos séculos. Escreveremos os nossos nomes, públicos e anónimos, na História do futuro.


Seremos o martelo, seremos o drone, seremos a barricada. Seremos o bloqueio, o assalto e a conquista. Os nossos inimigos devem temer-nos porque os enfrentaremos sem quartel. Somos o fogo regenerador do futuro, apontado aos exércitos e milícias do capitalismo e seus aliados.


Do cadáver fumegante do capitalismo faremos o húmus fértil para a nova civilização humana, de onde brotarão, libertadas de amarras físicas e intelectuais, as ideas que hoje semeamos. O comunismo ecológico, o ecomunismo, dissolverá a prisão da propriedade privada, eliminará a alienação planificada e o bombardeio imparável da propaganda comercial, alimentará povos, solos, animais e plantas, arrancará das mãos e exangues dos barões ladrões todos os serviços e necessidades para os povos, curando as feridas sociais, históricas e ecológicas que centenas de anos de destruição impuseram à nossa grande casa, o planeta onde todas nascemos e que será sempre a casa da Humanidade.


Temam e fujam, ó poderosos. O furacão imparável do futuro, o Ecomunismo, chegou. O vosso tempo acabou.


Delegadas de Amsterdão, Atenas, Barcelona, Beira, Beirute, Belgrado, Belfast, Belém, Belo Horizonte, Berlim, Bogotá, Bolonha, Brisbane, Budapeste, Buenos Aires, Cádiz, Cairo, Calgary, Cali, Cidade do Cabo, Cidade do México, Conakry, Copenhaga, Córdoba, Cork, Cracóvia,

Dresden, Dhaka, Dublin, Düsseldorf, Edmonton, Estocolmo, Galway, Genebra, Génova, Gdańsk, Gijón, Glasgow, Gotemburgo, Graz, Grenoble, Gwangju, Guangzhou, Hanói, Havana, Helsínquia, Izmir, Joanesburgo, Karachi, Kinshasa, La Paz, Lagos, Lima, Limerick, Lisboa, Liverpool, Ljubljana, Lyon, Málaga, Manágua, Manaus, Manila, Maracaibo, Marakay, Marselha, Marrakesh, Minsk, Milão, Montevideu, Montreal, Moscovo, Mumbai, Nanjing, Nantes, Nápoles, Nottingham, Nova Delhi, Nuku’alofa, Oslo, Oaxaca, Paramaribo, Paris, Port-au-Prince, Portland, Porto, Porto Alegre, Praga, Quito, Rabat, Recife, Rennes, Riga, Roma, Rosário, Salvador, São Francisco, São Petersburgo, Santos, Santiago, São Paulo, San José, San Sebastian, Seattle, Setúbal, Sevilha, Sheffield, Sucre, Szczecin, Tartu, Salonica, Tbilisi, Toulouse, Tóquio, Tunis, Turim, Valência, Valparaíso, Vancouver, Vigo, Viena, Viljandi, Vilnius, Vitoria-Gasteiz, Wellington, Zagreb e Zurique

Janeiro de 2027



Na sombra

da Revolução

Na sombra

da Revolução

Bogotá era diferente de todos os sítios que eu já tinha visto. A minha rápida passagem por Medellín - chegar e entrevistar ecomunistas mesmo na estação de comboio - já me tinha impressionado, mas os grandes incêndios tinham afetado as montanhas e florestas que a rodeavam, e a cidade tinha perdido muitos habitantes. O mesmo não se tinha passado com Bogotá, que era agora a segunda maior cidade da América, com 11 milhões de habitantes. Depois de atravessarmos uma zona montanhosa muito florestada dentro da qual viajámos durante as horas da escuridão da noite, pela manhã abriu-se uma planície e à frente surgiu a cidade, vermelha e brilhante, no fundo da qual se levantavam grande montanhas verdes cobertas de nuvens. Toda a cidade oscilava entre o vermelho dos prédios e o verde das plantas, refletindo o sol a partir de uma enorme quantidade de painéis solares nos telhados. Enquanto nos aproximávamos, deu para perceber que na verdade, a maior parte dos telhados estava coberta de plantas. A cor e vivacidade da cidade eram impressionantes. Mais tarde explicaram-me as enormes vantagens de Bogotá para resistir à crise climática. Situada entre cordilheiras andinas, a cidade estava rodeada por zonas húmidas e de retenção, até de “produção” de água - os famosos “páramos” de Sumapaz, Chingaza, Guacheneque e Cruz Verde. O clima era muito estável e mesmo nos piores momentos do ano 1.8 e em anos de El Niño, nunca chegaram a situações letais. Os maiores riscos da cidade estavam associados a cheias e a ilhas de calor, que podiam e foram drasticamente reduzidos em poucos anos. A melhoria das casas e seu isolamento adequado foi essencial para isso, para serem seguras e confortáveis. Talvez por isso as pessoas fossem tão simpáticas. E bonitas. Era um sítio diferente de todos aqueles em que eu já tinha visto ao longo da minha viagem. À chegada à magnífica estação de comboio de La Sabana, fui recebido por uma mulher com cerca de cinquenta anos, de pele escura e olhar profundo, com um elegante vestido branco, segurando um pad na

mão. Tinha um ar familiar, mas eu nunca fui muito bom com caras. Assim que me viu, aproximou-se, apresentando-se:

- Olá, Alex. O meu nome é Elizandra Marquez.

- Liz Marquéz?

- Sim. - sorriu. Eu não a tinha reconhecido, mas era claro quem ela era: Liz Marquéz, a presidente do Tratado Mundial do Clima, talvez das maiores celebridades políticas da nossa era.

- É um enorme prazer. Não sabia que viria alguém tão importante receber-me. - comecei a pentear o meu cabelo desgrenhado. - Estou todo desarranjado, já não sei há quantas semanas ando em comboios e barcos…

- Não se preocupe. Este é o Andres Zerega, do partido ecomunista colombiano. - Um homem muito moreno de traços finos, olhos pretos, com calças militares e camisa de branca estendeu-me a mão.

- Buenos dias, compañero! - disse-me, com o seu cantado sotaque colombiano. Eu tinha começado a abandonar o uso do meu Babel para o espanhol, e só agora começava a apreciar as diferenças entre os países. Liz segurou-me pela mão.

- Alex, temos muito gosto em receber-te e ajudar-te com as suas pesquisas. Tenho ainda a felicidade de te dizer que conheci ambos o teu pai, e particularmente a tua mãe, imprescindível na Grande Mudança aqui na América. Espero que possas ficar connosco alguns dias antes de continuares para Caracas.

- Posso, claro! - respondi, sem pensar. Eu ia ficar, mesmo que isso implicasse com o calendário apertado que Gianni me tinha dado. Não só podia saber mais sobre o que se tinha passado com a minha mãe, mas podia mesmo falar com a Liz Márquez!


Embarcámos no novíssimo metro de Bogotá, uma estrutura suspensa que atravessa a cidade por cima dos extensos jardins e hortas hoje plantados onde antes havia estradas de oito faixas cheias de carros, camiões e motas. Dentro do metro havia uma exposição sobre a cidade antes da Grande Transformação, que permitia ver em tempo real pelas janelas digitais a cidade há trinta anos e compará-la com aquele momento. E que diferença! A cidade que já parecia bonita no passado, agora era uma espécie de quadro de solarpunk, com a integração perfeita de tecnologia e natureza. O metro parou no Parque Central, onde estava a Sede do Tratado Mundial do Clima. Era numa enorme torre de tijolo vermelho, a antiga sede de uma empresa de seguros, um dos últimos arranha-céus da cidade. As ruínas da antiga sede, destruída num atentado da Muralha há cinco anos, eram visíveis. Era um edifício próximo, preservado com os estragos intactos em memória do massacre, explicou-me Liz.


- Queremos que as pessoas se lembrem do que foi a Muralha, que não há nada de bom que eles tenham feito em nenhum momento, que estariam bem na Idade Média, que representam tanto a violência religiosa dos Yunques como a violência criminosa do Clã do Golfo.

- Quem são esses?

- Na América Latina, a Muralha foi uma coligação de malfeitores reaccionários: Cruzados de Cristo, Igreja Universal, Yunques, Autodefensas Unidas, Partidos Republicanos, Esquadrões Bukele, Tren de Aragua, Clan del Golfo, os cartéis de Sinaloa e Cali, o PCC… E muitos mais. Juntaram o programa político ultraconservador anti-mulheres e anticomunistas com a violência brutal das máfias. Era uma aliança natural, porque o desmantelamento do capitalismo levou o crime organizado a tentar ocupar espaços vazios e criar novos negócios e novos feudos para explorarem as pessoas. Em muitos locais, antes das revoluções ecomunistas começarem a acontecer, eles já eram parte efetiva do aparelho capitalista e até

do aparelho de Estado. Vamos entrar? - Acenei que sim e fui com a Liz e o Andres até a um elevador que nos levou ao último andar. Saímos para o terraço.

- Viemos para veres a vista.

- Incrível, Liz. - De um lado viam-se as montanhas, do outro lado, a cidade, e mesmo ao lado do prédio uma espécie de coliseu romano. - O que é?

- É a antiga praça de toiros. Acreditas que até aparecer o covid bovino ainda faziam touradas aqui e em outros países? Agora é um só magnífico anfiteatro onde se fazem grandes peças de teatro e concertos internacionais por holograma. - Além disso, a cidade durava a perder de vista.

- Do lado das montanhas houve uma grande intervenção - disse Andres - foram retiradas as espécies florestais que ardiam muito, e plantadas várias faixas de proteção e contenção de terras. Um risco importante no sopé das cordilheiras eram deslizamentos de terras quando havia grandes chuvadas. Até hoje, não houve qualquer desastre.


Já no escritório de Liz, onde pontuavam vários mapas do mundo assinalados por tachinhas e autocolantes, Andres propôs-me tratar dos meus inquéritos enquanto eu ficava com a presidente. Aceitei. Depois de me levar a passear pela parte ocidental da cidade, pelos bairros reconstruídos depois das cheias na década passada - Suba, Kennedy e Fontibón - Liz levou-me para a sede do partido ecomunista, que era no bairro Ciudad Bolívar. Esta zona popular de Bogotá era das zonas com maiores bairros de lata e crime da da cidade, mantidas sob o controlo de gangues como os Paisas e os Looney Tunes, mas depois do golpe falhado em ’29, uma combinação de forças do Exército Verde e GAOR expulsou a estrutura criminosa do território e em tempo recorde começou a estabilização das encostas e reconstrução do bairro. A sede

ecomunista também foi instalada aí para impedir o regresso do crime organizado. Durante anos as gangues tentaram voltar e sabotaram a construção do bairro, começaram incêndios nas zonas arborizadas, cortaram a água e as ligações elétricas, mas o bairro persistiu até eles desistirem, explicou-me Liz. Fiquei muito espantado com o teleférico passando por cima das casas, e deslumbrado com a cor de todo o bairro. Uma vez na sede, fui levado para um quarto simples para descansar.


Depois de jantar, bateram-me à porta. Era Andres, trazia os inquéritos já preenchidos. Que alívio, não ter que me preocupar mais com aquilo! Perguntou-me se podia entrar. Eu disse-lhe que sim, e acabámos por passar a noite juntos.


Na manhã seguinte li as mensagens da Lia. Pensava que me sentiria mal pelo que se tinha passado essa noite, mas não. Nem sentia ciúmes de ela ter ido para casa da sua ex-companheira, a Mei. Ela tinha razão, não éramos crianças nem donos um do outro. Respondi-lhe pedindo desculpa e falámos ainda essa manhã. Optei por não lhe contar sobre o Andres porque ela podia achar que tinha uma vingança, que não tinha. Além disso eu não estava apaixonado por ele e iria embora de Bogotá em breve. Precisava parar de pensar naquilo que tinha acontecido com ela e comigo como se fosse um bicho de sete cabeças.


No dia seguinte passeei pelo bairro com Andres. Nascido e criado em Bogotá, tinha 27 anos e era membro do partido desde os 14: tinha-se juntado quando da tentativa de golpe de Estado. Uma boa quantidade de evangélicos e católicos progressistas tinham começado a juntar-se aos ecomunistas e ao Mundo Novo depois da Grande Fome, mas os seus pais de Andres, evangélicos, só se decidiram quando ouviram dos púlpitos da

Igreja Universal do Reino de Deus o apelo a um golpe de estado. Juntaram a família toda - Andres e os seus quatro irmãos e irmãs - e inscreveram-se no partido. Enquanto os seus pais tinham feito principalmente trabalho administrativo para o movimento, Andres foi para a segurança, tendo ainda muito novo participado em alguns combates no contra-golpe que restaurara a democracia na Colômbia. Passeando pela cidade, explicou-me como Bogotá aguentava tanta gente: tinha uma enorme quantidade de água, agora gerida exemplarmente, quase 70% de toda a comida que a cidade necessitava era produzida dentro da cidade - uma parte da qual em hidroponia nos penúltimos andares, debaixo dos telhados verdes que cobriam a cidade quase toda. Havia um novíssimo sistema de tratamento e reciclagem de águas residuais e a energia era toda produzida na cidade. Ao almoço encontrámo-nos com Elizandra. Andres deixou-nos, regressando ao seu trabalho, que sinceramente ainda não tinha percebido qual era.


- O Andres é excelente companhia. Ainda bem que ele estava disponível para ajudar-te. - disse-me ela, e eu não percebi se haveria ali um segundo sentido.

- Sim, ele tem sido óptimo. Já tenho todos os relatórios de Bogotá prontos, o que ajuda muito. É uma tarefa muito repetitiva. Até acho, sinceramente, que a informação que sairá daqueles relatórios será limitada para fazer grandes avaliações.

- Sabe que haverá outras avaliações a ser feitas, não te preocupes.

- Tu és do movimento?

- Oficialmente, não. Mas conheço muita gente da liderança. Tenho de conhecer, não é? A minha posição implica que eu tenho de perceber muito do que se passa no mundo hoje e o movimento ecomunista, em muitos países, é a principal força a fazer cumprir o Tratado.

- Mas o tratado é apoiado por outras organizações.

- Sim, claro. E idealmente não precisaria de ser apoiado por nenhuma organização. Mas sabes que as novas nações, as cidades livres, as rotas do futuro, tudo isso cria enorme confusão não só a nível da estrutura organizativa e a quem temos de apoiar e pedir contas, como a quem por conveniência ou dificuldade, começa a falhar. E falhar com vários dos termos do Tratado significa milhões de mortes, significa comunidades inteiras exterminadas, territórios em colapso. E nós precisamos de força porque a nossa tarefa não está acabada. Houve a Grande Mudança, é certo, mas há vários sítios onde ela foi incompleta e também muitos onde as coisas estão a piorar. Estamos particularmente preocupados com a previsão de mais um El Niño no próximo ano. Precisamos de começar a arrefecer o planeta.

- E quais são os planos para isso?

- Infelizmente não há nenhuma fórmula mágica, as tecnologias que podem funcionar consomem uma quantidade absurda de energia e recursos, que na maior parte dos casos não temos.

- Estás a falar de geoengenharia?

- As propostas de geoengenharia no Tratado foram derrotadas de forma avassaladora há mais de uma década. Não quer dizer que cada vez que a temperatura começa a aumentar, não voltem novamente com essas propostas. Mas as tentativas em grande escala - pelos governos ingénuos do chamado “Setembro Vermelho” na Europa no fim dos anos 20, foram uma catástrofe, quebraram o que sobrava das colheitas no Vale do Pó e assim que pararam a temperatura disparou localmente.

- E o que aconteceu no Irão?

- A aventura do Irão e da Turquia foi feita à revelia do Tratado, eles nem sequer eram parte na altura. E não avisaram ninguém, simplesmente lançaram aerossóis na estratosfera para controlar a entrada de energia solar. Baixou imediatamente a temperatura, mas não ficou

localizado, como eles pretendiam. A radiação do sol que chegava ao solo caiu 30% e os cereais desse ano na Ucrânia e na Rússia basicamente não nasceram. E a seguir, quando os vários países à volta ameaçaram atuar, eles pararam e a temperatura global voltou a subir. As ondas de calor nesse ano mataram centenas de milhares de pessoas. Pffff. Mas olha, queria falar-te sobre a tua mãe.

- Sim, por favor. Então, eu posso dizer-te aquilo que sei, e seria interessante que me contasses o que sabes além disso.

- OK. Assim talvez também fique a saber mais. Eu conhecia-a e ao teu pai de antes do movimento ecomunista existir, mas não estávamos juntas de forma regular.

- Então, a minha mãe saiu de Portugal logo a seguir ao ano 1.8. Pelo que percebi ela terá entrado diretamente para a Descarbonária e partiu para a Nigéria. Não sei o que ela fez lá, se participou ou não na revolução. Mas antes da Guerra Civil Americana terminar, ela já tinha abandonado a Nigéria e chegado aos Estados Unidos, onde recrutava equipas de descarbonárias. Depois, sei que ela foi para o Exército Verde, que fez parte das primeiras rotas do futuro na América Central, que ficou ferida aí e que mais tarde veio para a América do Sul. E que foi morta pela Muralha no México, há seis anos.

- Tu nunca mais a viste desde que ela deixou Portugal?

- Vi-a uma vez, ela esteve em casa três dias depois de sete anos ausente. - Senti a minha voz embargada.

- Oh, pobre Alex. - Elizandra aproximou-se de mim e abraçou-me. E o que podia ter sido só um soluço começou a tornar-se um choro. Tentei afastar-me mas ela apertou-me mais forte. - Deixa sair.


Deixei. Uma torrente de lágrimas e sentimentos saiu de mim naquele momento: t

risteza, abandono, raiva, orgulho. Eu queria abraçar a minha mãe que foi morrer longe de mim, que tinha deixado a sua família para ir salvar as outras famílias, para ir salvar o futuro. Oh mãe, foda-se! Porque não me abraçaste quando te vi da última vez?


Quando finalmente comecei a acalmar-me, a Liz afastou-se, limpando-me as lágrimas.


- Lamento muito. Estás melhor? - Sorri, ainda com lágrimas no rosto.

- Sim, obrigado.

- Tanta gente perdeu família e amigos nas últimas décadas, uns para catástrofes, outros para fomes, outras para travar o monstro que se erguia sobre nós. Espero que saibas quanto a tua mãe foi imprescindível para o movimento, pelo menos aqui na América do Sul. Mas sabes que ela não era a fila da frente, odiava ser figura pública, ela era a mestre dos quadros revolucionários, uma mulher de teoria e de ação, uma grande estratega e defensora inflexível da superação da monstruosidade capitalista. Treinou muitos dos quadros revolucionários que fizeram a Revolução Brasileira e aqui mesmo na Colômbia. E que eu saiba ela também tinha excelentes contactos com as assembleias indígenas. Se ela fosse menos tímida seria recordada como uma nova Che Guevara, mas preferia ficar sempre atrás, ajudando as outras a liderar o futuro.

- Ela esteve então ligada à Revolução Brasileira?

- Sim, esteve de certeza. Ela nessa altura estava no Brasil com o Exército Verde, não te sei dizer exatamente o que ela fez no terreno, não sei se ela fazia parte da Lança Climática, mas fazia parte do conselho que preparou a revolução. Sei que ficou por lá depois, tanto na reforma agrária como no combate aos incendiários e ao PCC.

- O PCC?

- Partido do Comando da Capital, um dos maiores grupos de crime organizado do mundo.

Depois das revoluções e em particular quando a Muralha foi formada, houve uma reorientação do movimento para deter os grupos criminosos que tentavam recomeçar o capitalismo com extrema violência. A tua mãe pertencia à liderança do Exército Verde e depois de sair do Brasil ficou ligada a essas tarefas.

- Pelo que eu sei, ela teve algumas experiências terríveis com criminosos na América Central.

- Toda a gente teve.

- E sabes alguma coisa sobre a sua morte?

- Não sei.

- Tu vais ainda ao Brasil, não vais?

- Sim.

- Deves procurar saber mais sobre ela por lá. De certeza que mais gente te pode contar o que ela fez em concreto. Sei que ela é muito celebrada por vários dirigentes.


Continuámos a falar sobre a situação na América Latina, com as novas nações indígenas, erigidas pela Federação Indígena Internacional e com o ressurgimento frequente, sob várias formas, do crime organizado.








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Clã do Golfo ocupa região de Barranquilla na Colômbia.


A associação criminosa conhecida como Clã do Golfo continua a desafiar o governo de Bogotá, declarando o distrito de Barranquilla como uma zona autónoma. Depois do grupo criminoso ter sido expulso dos vários territórios durante a última década, e depois da extinção da versão latino-americana da Muralha, o recente anúncio apanhou de surpresa dirigentes colombianos. Vera Albudazor, membro do conselho bolivariano ecomunista, anunciou que “o Exército Verde está neste momento a desenhar os planos para terminar de vez com a presença deste gangue na região”, enquanto Victor Galán, do Mundo Novo defende que “deve haver uma negociação com os grupos criminosos, devem ser baixar as armas e dissolver-se, havendo para tal contrapartidas que já estão à partida garantidas pela legislação do desencarceramento, aplicada neste momento na maior dos países do continente americano, com excepção do Texas, do Mississippi, do Arkansas e do Tennessee.”. O Clã do Golfo acumulou experiência durante os anos antes da Grande Transformação, operando a dada altura como uma verdadeira multinacional de logísticas, gerindo regiões da Colômbia, regulamentando o tráfico de drogas, de contrabando e de pessoas, cobrando impostos e gerindo, entre outros, os transportes e energia de várias pequenas cidades.


Essa tarde, Liz levou-me a visitar primeiro o grande lago de Bogotá e depois as zonas húmidas próximas da cidade, os “páramos”, ecossistemas ribeirinhos da América Latina, que têm sido protegidos para aumentar a capacidade de retenção de água e também porque são gigantes sorvedouros de carbono, tão importantes para baixar a concentração de carbono na atmosfera e a temperatura. Bastava percorrer poucos quilómetros na direção das montanhas e já não se via ou ouvia a cidade, tal era a densidade da floresta, ali pré-amazónica. Liz explicou-me que durante anos a temperatura de Bogotá baixou por causa dos incêndios florestais que devastaram a Amazónia, que tapavam o céu de amarelo e faziam chover cinza durante semanas a fio.


Essa noite, já na sede do movimento, esperei que Andres me voltasse a bater à porta, mas não aconteceu. Tive uma conversa telefónica com Gianni (sem referir Lia e Ettore - será que ele sabia?) onde questionei a repetição dos inquéritos cidade após cidade, e ele insistiu na necessidade dessa documentação extensa. Disse-me que eu poderia demorar um pouco mais de tempo, mas que nesse caso teria que coordenar com o movimento ecomunista a nível regional para avisar acerca das datas em que chegaria. Perguntou-me finalmente como ia a minha “História da Grande Transformação” como ele lhe chamou, e eu insisti que os inquéritos me tiravam tempo de pesquisa, energia e leitura. Ele pediu-me que tentasse fazer com que as secções locais do movimento organizassem os inquéritos por mim, mas que nesse caso eu precisaria de lhe dar informações sobre a minha opinião do que se passava no movimento em cada um dos sítios, o que acabaria por dar tanto ou mais trabalho do que os inquéritos estandardizados.



No dia seguinte, foi Liz a bater-me à porta do quarto, ainda cedo, embora eu já estivesse acordado. Ela ia viajar de urgência, para uma grande cheia catastrófica que tinha começado dois dias antes no Paraguay. Ela ofereceu-se para me levar até Manaus. E uma vez mais, sem consultar Gianni e apesar da nossa conversa da noite anterior, aceitei. Saltaria as duas paragens na Venezuela, mas tentaria rapidamente que Liz me desse alguma informação. Andres apareceu ainda para se despedir, mas fê-lo de forma muito despachada. Confesso que me senti um pouco magoado. Mas a viagem continuava. Arrumei as coisas e juntei-me a Liz.

- Como vamos?

- Há um helicóptero elétrico para estas emergências.


Sobrevoámos os Andes enquanto Elizandra me contava sobre o movimento ecomunista na Venezuela, bastante fraco num país ainda traumatizado pela independência violenta de Zulia e pela força do Tren de Aragua, um grupo criminoso que tentava uma e outra vez atacar o poder em Caracas. Quando começámos a atravessar a Amazónia, ficou visível a enorme extensão de área ardida, a perder de vista, com pequenos incêndios ardendo em vários sítios, normalmente rodeados por equipas de bombeiros sapadores. Estávamos fora da época de incêndios, mas ainda assim ardia. A devastação era enorme, consequência de décadas de queimadas e de incêndios provocados, muitas vezes por motivos políticos, mas que impactavam todo o continente. Finalmente, centenas de quilómetros depois de voarmos por cima daquela devastação

de áreas ardidas pontuadas a espaço por zonas milagrosamente ainda verdes, comecei a ver as longas linhas de replantação de jovens árvores, acompanhando o relevo e destacando-se no meio do cinzento e do negro. E depois, finalmente a Amazónia apareceu. Como era gigante! Tinha muita água e todo o lado, vários tons de verde entrecortados por castanho claro. E o rio Amazonas, castanho-amarelado, serpenteava entre as massa das árvores. Que maravilha. E nunca mais acabava. Ninguém diria que mais de metade da área da Amania tinha desaparecido nos últimos 30 anos.


- Estamos finalmente a conseguir expandir a área. Aliás, para ser realista, estamos finalmente a conseguir estancar a área ardida. Mas todos os anos há incêndios, é muito difícil. - explicou-me Liz. - Há umas décadas, lembro-me de ouvir isto quando estava na Europa, havia uma conversa idiota sobre florestar tudo para absorver carbono e isso que isso resolveria a crise climática. Como se o aumento da temperatura não fosse aumentar os incêndios e fazer perder tudo o que fosse absorvido com o crescimento das florestas. Enfim. Tentamos expandir florestas onde é possível, mas têm de ser as florestas certas, nos terrenos certos, têm de ter água, e não tornar-se um perigo para outras árvores mais velhas. Como vês, mais um problema.

- Em Portugal houve uma grande reflorestação, e substituição de eucaliptal, centenas de milhares de hectares.

- Sim, conheço o processo. Devo confessar que era muito céptica da proposta. Mas até agora está a correr bem. Tem a diferença que é ter pessoas lá, na floresta, não é. E a vantagem de ser uma zona pequena.

- Já atravessámos uma área várias vezes o tamanho de Portugal só nesta viagem, não foi?

- Exactamente.

- Liz, a minha mãe não esteve na Colômbia?


- Não sei. Sabes que eu não sou colombiana, mas do Chile. Eu acho que a tua mãe estava em recuperação em algum país daqui quando houve os golpes no Brasil e na Colômbia. Os golpes começaram com manifestações contra o aborto e os pecados LGBT, em “defesa da família”, como eles diziam. Eles culpavam as fomes e as cheias no que chamavam de traições às leis de Deus. Ainda estavam com a história das seitas dos Niños profetas. A grande força por trás da Muralha na América Latina foram os evangélicos, mas tiveram rapidamente o apoio de milícias e de liberais, que respondiam a tudo com mais saque, mais ataque à natureza, mais destruição. Na Colômbia, a resposta foi rápida e houve grandes mobilizações de esquerda, durante semanas. Duraram tanto tempo e foram tão fortes que o governo saído do golpe não conseguia governar. As forças armadas não lhes obedeciam. Quando uma aliança de camponeses, Exército Verde e até paramilitares se juntaram ao processo, os golpistas fugiram para o Panamá.

- E no Brasil?

- No Brasil o golpe durou mais tempo, e desembocou na revolução.

- Onde estavas tu nesta altura, Liz?

- Eu? Ahahah. Eu estava na Argentina a acabar com a exploração de gás em Vaca Muerta. Estava já a fazer as negociações para fechar poços. Eu, como tantas outras, estava a garantir que o Tratadoo andava para trás e que travávamos as emissões nos seus pontos de origem. Algumas vezes isso levava a conflitos. Só anos mais tarde, e muitos poços fechados depois, fui eleita presidente do Tratado.

- Cada um com as suas tarefas, não é?


O piloto, um homem loiro, com os seus cinquenta anos, pele enrugada e olhos claros, que tinha estado em silêncio toda a viagem avisou: íamos aterrar por uns minutos.

Quando desembarcámos no heliporto estavam duas raparigas jovens à espera.


- São as tuas camaradas, Alex. Nós temos de continuar.

- Obrigado pela boleia. Volto a ver-te?

- Nunca se sabe, Alex. Nunca se sabe. Eu gostava. Sabes, eu acho que estás a fazer algo que nós precisamos muito. E talvez tu sejas a pessoa para organizar isso em grande escala.

- Fazer o quê?

- Trazer o jornalismo de volta.

- OK?...


Liz aproximou-se de mim e abraçou-me. Sussurou-me ao ouvido que estava na hora de eu me juntar ao movimento, que não estava de fora. Despediu-se com um beijo na bochecha.


Enquanto o helicóptero levantava voo, eu caminhava com as duas mulheres que me tinham vindo buscar - Sueli e Ana - na direção de um edifício próximo. Era uma antiga fábrica, a sede do movimento em Manaus. Levaram-me a uma sala onde estava um retrato da minha mãe, perto de um grande mural sobre a Revolução Brasileira.


- Bem vindo, Alex Águas. Conhecemos bem a história da tua mãe, uma das sombras da revolução. - disse Sueli, muito séria.














As colunas revolucionárias contra os bispos brasileiros

As colunas revolucionárias contra os bispos brasileiros

A pesquisa nos novos caixotes de material do pai do Alex continuava a render resultados. Eu e Mei já tínhamos separado tudo: materiais sobre a Marta (poucos), materiais do António separados em Mundo Novo (a maior pilha) e outros, e finalmente materiais impressos que não eram de qualquer um deles em específico. Entre os materiais do António encontrei várias agendas e cadernos de apontamentos, algumas das quais continham tanto informação do dia-a-dia como atas de reuniões como pequenas frases que talvez fossem reflexões do António. Eu tinha deixado em Lisboa o material mais antigo. Ele pertencia desde a fundação às estruturas principais do Mundo Novo, tanto a nível internacional como nacional. Muitos dos documentos eram programas de transformação industrial e técnica, quantas pessoas estavam empregues em que fábricas e centrais elétricas, qual a produção de cada uma delas, quantas famílias estavam diretamente relacionadas com as infraestruturas, quanto recebiam, entre outras informações. Tinha isto para Portugal, mas também para países tão variados como a Alemanha ou a Austrália. Além disso, outros documentos indicavam que teria participado em outras organizações, embora não se percebesse quais. Algumas notas indicavam datas e locais, mas não quem estava presente ou de que organização era, provavelmente por razões de segurança. Muitos dos rascunhos eram indecifráveis, mas em alguns casos havia uma espécie de resumo posterior, escrito também pela mão do próprio António, provavelmente anos mais tarde.


De entre esses documentos, chamaram-me particular atenção umas notas preparatórias do lançamento do movimento ecomunista e do pronunciamento.



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De: alexaguas@voo.com

Para: liavgoms@voo.com

Data: 25 de nov. de 2042, 09:20

Assunto: Sampa


Olá, Lia


Como estás? E o António? Finalmente cheguei a São Paulo. A viagem pelo Brasil tem sido monumental. É outro país que nunca mais acaba. Está a ficar bastante calor por esta altura e temos de tomar muitas precauções por causa do calor do sol e da dengue. O calor em Manaus era insuportável, só mesmo com ar condicionado consegui dormir. Por outro lado, não sei se foi por causa da língua ou por ser outra fase dela no movimento, mas aqui a minha mãe não é uma desconhecida. Muitas das pessoas sabem quem ela era pelo nome (Maria, claro) e já me contaram algumas histórias novas. Ainda assim, não encontrei ninguém além da Liz que a conhecesse pessoalmente. Muita gente da geração dela morreu nos conflitos e de doenças. Mas já vi retratos dela em vários sítios, especialmente nas sedes que visitei: ela foi uma das fundadoras do Exército Verde daqui, formou a escola de quadros do movimento ecomunista e ajudou a preparar o contragolpe que lançou a revolução no Brasil. A mulher fazia tudo, era incrível. Entrevistei a Comissária de Transportes e Habitação aqui da cidade, envio-te o ficheiro áudio e a transcrição feita pelo Babel. Foi uma bela entrevista. Apesar dela ser jovem, conseguiu explicar-me super bem o que aconteceu no Brasil durante anos e o que se passa em São Paulo agora. Pena que não conhecesse a mãe. Planeias voltar para Lisboa em breve? Vou falar hoje com o Gianni, porque daqui a duas semanas está a chegar ao fim da minha viagem por aqui. Podemos falar logo?


Muitos beijos, meu amor. Alx


Entrevista com Mirabelle Smith


- Olá Mirabelle!

- Oi.

- Como falámos, eu estou a fazer uma pesquisa sobre a Grande Mudança e é óptimo poder falar sobre o que aconteceu aqui no Brasil. Obrigado.

- Não sou historiadora, mas vou dar o meu melhor. Eu posso falar melhor sobre o que aconteceu aqui na cidade, mas também sei o que aconteceu em geral no Brasil. Como você sabe, eu sou do movimento ecomunista e nós levamos essa revolução pra frente.

- Eu sei, eu sei.

- Talvez pudéssemos começar com a Revolução Brasileira e depois avançamos pra São Paulo?

- Valeu. Bem, como você sabe, a revolução aconteceu aqui no mesmo ano que na França e na Califórnia, no Ano do Leão.

- Sim, eu sei.

- Mas vou pegar um pouco mais pra trás, para dar uma enquadrada. É sempre difícil perceber quando exatamente está a raiz de uma revolução. Mas como foram tantas raízes no mesmo tempo, talvez o enquadramento de catástrofe climática possa ser útil. A pandemia e as grandes queimadas da Amazônia pioraram muito com o governo do Bolsonaro, e tragédias como Brumadinho, São Sebastião e Rio Grande do Sul abriram um tempo de destruição ambiental e degradação da situação política. E as ondas de calor no ano 1.8 abanaram muito o governo federal e também os estaduais.

- Foi aí que se deu a independência do Sul?

- Não, foi mais tarde. Mas os incêndios, especialmente na Amazônia, mas também na mata

Atlântica e nas Araucárias, começaram a ser usados como arma política, primeiro por bolsonaristas e depois pela Monarquia dos Bispos.

- Monarquia dos Bispos?

- Sim, eram 14 bispos de igrejas pentecostais e neopentecostais: Assembleia de Deus, Maranata, Igreja Universal, Igreja Mundial. Depois de Bolsonaro, eles lideraram a extrema-direita, em aliança com as milícias e com alguns narcopentecostais.

- Narcopentecostais?

- Sim (ri-se). Eram traficantes de drogas pentecostais, grupos armados importantes nas principais cidades. Enfim, estes grupos tiveram influência crescente na sociedade no fim do bolsonarismo. Nas ondas de calor globais morreram entre 6 e 8 milhões de pessoas no Brasil. Manaus, Belém, Cuiabá, Rio, aqui… Morreu muita gente. Apesar disso, o governo conseguiu responder a algumas demandas e houve um grande esforço para melhorar muito as cidades. São Paulo era a definição de ilha de calor, precisava desalcatroar, tirar carro, encher a cidade de árvores, desencanar os rios…

- Esse era o governo Lula?

- Sim, o último. E foram anos de catástrofe após catástrofe. Foi aqui que apareceu o novo covid bovino, na Amazônia e no Mato Grosso. 24 pessoas morreram, mas a pandemia não espalhou. O novo confinamento foi curto, mas bem difícil. Abateram 150 milhões de cabeças de gado no Brasil. Isso acabou com a indústria e lançou os sectores do agro na radicalização de extrema-direita. Teve muito atentado terrorista contra escola, contra jornalista e contra político. Penso que só não teve golpe nessa altura porque os surtos de dengue atiraram metade do país pra cama.

- A Febre, não é? Quando houve milhões de casos de dengue?

- Foram três anos, mais de 200 milhões de infetadas na América do Sul. Aqui no Brasil, pelo menos uns 80 milhões, 250 mil mortes, milhões de internamentos.


- Como terminou A Febre?

- O golpe aconteceu mesmo no meio. O que acabou com a dengue aqui foi uma mistura de política contra plástico e água parada, e por outro lado a criação da indústria dos mosquitos modificados.

- Os que são infetados para impedir o contágio da dengue. Como funciona?

- Eles são inoculados com uma bactéria que impede o mosquito de transmitir dengue, zika e chukungunya. Você liberta as fêmeas nas cidades, que vão transmitindo esta características às novas gerações.

- Que interessante.

- É bem legal. E simples. Claro que a ultra-direita acusou de ser um veículo de espalhar dengue. Eles se tornaram uma máquina de mentira sem parar. E usaram essa, como todas, pra alimentar o golpe.

- OK, voltamos ao golpe.

- Sim. A Monarquia dos Bispos fez uma aliança com as milícias e com uma parte dos militares. Tomaram o congresso e prenderam todo o mundo, menos o Presidente, que conseguiu fugir pra África do Sul. Se eles tivessem pegado iam matar. O golpe aconteceu bem no meio de um período de fome. Eles mobilizaram as igrejas, falavam que a fome, a dengue e o fumo dos incêndios eram castigo de Deus contra o pecado LGBT e o aborto, contra esquerdista e petista. Falaram que precisava um país governado por Deus. E teve muita gente que apoiou. Além dos desesperados, os saudosistas bolsonaristas, os liberais. Eles tentaram dar golpe também na Colômbia, mas lá foram travados. Aqui não.

- Podes descrever-me o que aconteceu logo de seguida?

- A gente tava esperando de um banho de sangue, então teve muito povo que fugiu para outros países. Houve assassinato e prisão de vários políticos, de lideranças trans, indígenas,

de grupos de esquerda, apanhados ainda no país. Nós, ecomunistas, ainda éramos residuais, então não foi fácil apanhar a gente. Mas já tinha grupos formados para a luta armada. Armas vinham sendo trazidas para o Brasil desde o México e de França, e roubadas de unidades militares. E começamos treinando muito mais gente, que queria lutar. Eles tomaram as televisões e rádios, mas é preciso ser honesto, já ninguém levava muito a sério imprensa nessa altura.

- E havia Descarbonária? Neolluditas?

- Nessa altura não. Mas surgiu um grupo, a “Lança”, que assassinou um dos generais do golpe, um fantoche que fazia de presidente. Noutros países, nessa altura a Descarbonária já tava matando CEO de petrolífera. Não sei se não era a mesma coisa com outro nome.

- E o que fez o governo golpista?

- Além de nos perseguir, introduziu a lei cristã, nacionalizou a indústria petroleira, tomou conta dos armazéns alimentares e anunciou a reabertura de toda a mineração e indústria pesada…

- E quanto tempo ficaram no poder?

- Cinco meses. A revolução não perdeu tempo.

- Como tão pouco tempo?

- Poucas semanas depois de eles tomarem o poder, o Sul declarou independência.

- Quem fazia parte do Sul?

- Rio Grande do Sul e Santa Catarina. E logo começou a agitação no Nordeste. Motins, ataques contra a polícia e milicianos, as igrejas evangélicas dos bispos do golpe queimadas. E já tinha Exército Verde atuando. O governo respondeu tentando mobilização militar, mas não tinha como. Em cima disso, teve uma quebra das colheitas de cereais a nível global.

- Mas o Brasil tinha muito, não tinha? Ainda é um dos maiores produtores de cereais do mundo.

- Tinha. Mas em vez de consolidar o poder, eles decidiram exportar para aumentar receita.

Nos portos, vários grupos roubavam a comida e depois montavam distribuição. Tanto grupos de esquerda como os grupos criminosos. A diferença é que nós dávamos. A popularidade dos ecomunistas subiu muito e muito rápido. O recrutamento também.

- Explica-me então como aconteceu a revolução?

- Várias colunas saíram de diferentes locais do país e marcharam sobre Brasília. A primeira saiu do Ceará, liderada pela Lúcia Benildes, liderança trans, depois começaram as colunas do Maranhão, da Bahia, do Mato Grosso, do Pará, de Pernambuco, do Paraná, de São Paulo.

- E quem estava nessas colunas?

- Nessa altura não havia muitos ecomunistas, mas estávamos em todas as colunas. A composição variava, mas eram jovens, estudantes, mulheres, trabalhadores, movimentos, sindicatos, uma misturada de povo. Todo o mundo tinha visto a revolução em França poucos meses antes. Da Amazónia vieram mais de 300 mil indígenas. Os sindicatos convocaram uma greve geral. As colunas foram engrossando e os aliados do governo dos Bispos fugindo de Brasília. Em várias cidades o Exército Verde tomou conta dos celeiros públicos e outros grupos ocuparam as prefeituras. Aqui em São Paulo foi até tomada a Bolsa de Valores e o Banco do Brasil, mas foi muito simbólico, porque já não tinha nenhum poder real. Em Brasília, só tinha uma multidão que eles tinham chamado para defender o “Governo de Jesus” no gramado dos ministérios, mas estava ficando cada vez mais pequena enquanto as colunas se aproximavam.

- Então o Exército Verde só ocupou os armazéns de comida.

- O Exército Verde estava atacando várias estruturas do governo com táticas de guerrilha faz vários dias, sabotando as linhas de abastecimento dos militares. Quando as colunas entraram no Distrito Federal, já eram mais de 4 milhões de pessoas. O país estava paralisado. Do lado dos golpistas já só restavam as milícias fundamentalistas e algumas unidades do exército. As colunas ocuparam o Aeroporto e o Parque Nacional. Duas colunas foram armadas e

avançaram pro embate. O Exército Verde e outros grupos armados da resistência entraram em combate contra os Cruzados de Cristo, Tropa de Arão, Liga da Justiça e o famoso Escritório do Crime na zona do Teatro Nacional. As colunas armadas ficaram atrás.

- E o que a polícia fez nessa altura?

- A polícia fugiu. Nesses dias não teve polícia. Os ministros liberais e evangélicos se barricaram dentro do Congresso esperando um levantamento do povo a favor deles ou um milagre, quem sabe?

- E não havia um presidente deles?

- Não. Eles tinham decidido governar democraticamente entre si. Ahahah.

- Então só dava para vir de um lado?

- Do outro lado, as colunas tentavam atravessar as pontes, mas os militares bloqueavam o caminho. O Exército Verde estava fazendo os milicos recuar, mas com forte resistência. Os ministros acabaram fugindo pro Palácio do Planalto.

- Quanto tempo durou tudo isto?

- O combate em Brasília durou três dias. No final eles se renderam e as colunas tomaram o Planalto, depois de já terem tomado o congresso. Alguns bispos tinham fugido e se preparavam para resistir no Rio. Mas ainda durante o cerco ao Planalto, duas colunas já tinham ido para lá. E eles acabaram por fugir de avião pra Europa. Nessa mesma noite de Setembro, ao mesmo tempo em Brasília, São Paulo, Rio, Salvador, Fortaleza e Manaus, foi declarada a República Ecosocial do Brasil. Em Roraima e no Acre, os golpistas ocuparam o governo durante vários dias mais, mas acabaram fugindo.

- Foi nessa altura que o Lula voltou?

- Voltou e foi muito bem recebido. Mas não voltou a governar. A República Ecosocial não é presidencialista. Ele ainda era uma figura importante, apesar da idade, e o seu campo político, também radicalizado, apoiou a revolução. Politicamente o tempo tinha mudado, o

programa político era outro. Estávamos no início das revoluções por todo o mundo, assistindo ao colapso do capitalismo todos os dias.

- OK. Bom, assim já tenho uma ideia mais clara. Como foi a governação depois?

- Eu posso passar mais material pra você sobre a revolução também. Nos dois anos depois da revolução governou uma assembleia emergencial, composta pelas várias forças revolucionárias.

- Liderada pelos ecomunistas?

- Nós estávamos na frente da execução. As nossas propostas se tinham tornado hegemónicas, e também estavam incluídas na política do Tratado Mundial do Clima, embora não fôssemos a maioria dos elementos da assembleia emergencial. Mas no início foi uma assembleia extremamente pacífica e representando os oprimidos e seus aliados. O problema era fora. A probabilidade de uma guerra civil após a revolução era muito elevada, e foi piorando. Se não tivesse havido revoluções noutros países, acho que isso teria acontecido. Felizmente nos anos seguintes, ecomunistas participaram em revoltas e revoluções por todo o mundo.

- E como foi aplicado o programa no Brasil?

- De forma confusa (ri-se). As igrejas evangélicas que participaram no golpe foram dissolvidas. Os grupos políticos e industriais que apoiaram também, com seus bens sendo apreendidos. Muita gente fugiu, as lideranças golpistas principalmente para o Sul, que teve muitos problemas por causa disso. Começamos com a reforma de terras, uma reforma agrária mas não só, planeada para integrar as necessidades do povo e reconhecer a gravidade da crise climática. A capacidade produtiva agrícola no Brasil estava em queda. O colapso da indústria de gado tinha deixado muita área vazia. Mas células dos golpistas continuavam botando fogo no Mato Grosso e Amazonas. E nas cidades tivemos de nos confrontar com o crime organizado, que ocupou muito do espaço deixado vazio pelas milícias.


- Mas houve uma divisão no movimento.

- Não foi bem uma divisão, porque nunca tinha tido a união absoluta sobre o assunto da crise climática e crise ambiental.

- Podes explicar?

- Sim. Tinha uma parte do movimento, próxima ao ecomunismo, promovendo o desmantelamento imediato da indústria fóssil pra impedir a catástrofe e baixar a temperatura.

- E a outra defendia o quê?

- A outra parte falava que era preciso ter mais calma com esse desmantelamento, porque isso ia ser muito caro pro povo, porque ia faltar energia, desindustrializar.

- Caro como?

- Você pode tirar a pessoa do capitalismo, mas tem mais de dois séculos empurrando todo o mundo pra pensar em preço como realidade objetiva. Uma parte do movimento não entendia que o preço agora era decidido por nós. Que a nova distribuição de poder implicava decidir o valor de muita coisa. Que os preços não eram naturais, mas só uma medida de poder de quem mandava sobre quem obedecia.

- E o que aconteceu com essa divisão?

- Houve uma paz meio que podre. Por um lado, o Brasil tinha deixado de emitir muito por causa do fim do gado, mas por outro, a Amazônia tava sendo destruída e emitindo muito, por causa dos calor e da seca, e por causa dos fogos políticos. Teve um acordo político para fechar a indústria fóssil nos anos seguintes, mas era insuficiente pra nós, ecomunistas. O Brasil era um dos três países mais emissores do mundo na altura.

- É, mas historicamente o Brasil tinha pouca responsabilidade…

- Isso eram os argumentos que todas as burguesias do sul tinham usado durante décadas para destruir a natureza aqui. Que tinha que industrializar e destruir aqui igual o que tinham

feito Europa. Mas não tinha tempo pra fazer essa “transição” lenta. Nem sabemos ainda se chegamos a tempo de travar a catástrofe, né?

- Mas também tinha de conseguir ter o povo do lado da revolução.

- Sim! E isso se fazia e se fez transformando a economia para satisfazer as necessidades do povo, não adicionando mais capacidade produtiva capitalista para produzir coisa inútil pra população. Foi urgente distinguir necessidade de desejo. Acabando com o lixo a publicidade comercial, criámos muito mais espaço pra cultura, pro esporte, pra viver, para coisa útil pra cabeça e que não implica destruir tudo. E acabamos com o trabalho inútil, distribuindo trabalho e dando um sentido pra vida das pessoas.

- Mas embora não tivesse havido guerra civil, vocês tinham de lutar contra muita resistência. Alguma armada.

- Sim, aqui em São Paulo principalmente o PCC. Alguns grupos criminosos passaram a representar um regresso ao passado, mas diferente. Era uma espécie de progressismo conservador, que aceitava uma mudança, mas não queria ficar completamente privado dos seus negócios e do seu poder, ainda mais quando o negócio do tráfico de drogas também tava desaparecendo. Mas a base da sua força não eram tanto as ideias, mas sim as armas e o hábito da violência fácil. Eles estavam espalhados por todo o país. Noutros locais como o Rio, o problema era o Comando Vermelho, que cresceu muito depois da revolução e com a expulsão dos golpistas. A relação com estes grupos quase quebrava a assembleia emergencial no meio. E nessa altura apareceu Descarbonária aqui também. Começou muita sabotagem de plataforma petrolífera, muito acidente industrial. Todo o mundo estava preparado pra uma guerra começar a qualquer momento. Mas não começou.

- O que aconteceu para evitar que a guerra começasse?

- As grandes cheias de São Paulo pararam tudo. Cinco dias de chuva intensa e imparável. O rio

Tietê e o rio Pinheiros subiram quase dez metros. Vários bairros foram arrasados. 50 mil mortos no centro da cidade. Dois milhões de desalojados. Nas periferias, o número de mortos é incalculável. Teve cheia e favelas que deslizaram inteiras pra dentro da lama, em Tiradentes, em Paraisópolis. Houve uma pausa importante e grande união pra parar a tragédia. A divisão não foi sarada, mas não chegou a conflito. Mas levou a mudanças dentro do movimento ecomunista, e a questões sobre a relação com o crime organizado.

- Mas os grupos criminosos estavam com a ultra-direita, não era? Nos outros países onde estive até participavam na Muralha…

- Pois, mas aqui não era assim tão simples. Uma parte do movimento passou a definir o crime organizado como um grupo social para a reinstalação do capitalismo, mesmo que nem todos fossem iguais. E mudava de país para país. Sua mãe estava muito ativa nesses debates…

- Minha mãe?

- Sim, ela defendia que não devíamos fazer nenhuma concessão ao crime organizado, que eles sempre iam empurrar de volta pro capitalismo e para a violência cruel. Eu acho que ela tinha razão… Na reconstrução de São Paulo, enquanto nós tentávamos reorganizar a cidade para reduzir ilha de calor, para aumentar a resistência a cheias, eles montavam enclaves, prendiam as pessoas dentro de determinadas áreas, obrigavam elas a trabalhar para o crime… Isso afastou o movimento deles. Após as eleições constituintes, houve um mandato para acabar com eles. Que ainda não está completo, mas eles estão na defensiva há muitos anos, expulsos quase totalmente dos seus negócios. Não vou mentir, teve um momento em que eles eram a maior ameaça ao movimento, e podiam inclusive ter tomado conta de territórios, como fizeram em outros países. Mas conseguimos empurrar eles pra trás. Continuam a ter armas, continuam explodindo bomba, mas têm muito menos pessoas e muito menos poder. O seu braço econômico tá muito fraco. Temos tentado fazer um processo de reabilitação, ao mesmo

tempo que desmantelamos as cadeias. Que era onde eles recrutavam mais gente.

- E como está São Paulo hoje?

- Opa, é outra cidade. Mais pequena. A população da zona metropolitana ainda tem dez milhões de habitantes, mas tem havido uma resposta positiva à conciliação urbana-rural e as pequenas cidades rurais têm aumentando, as pessoas têm ido viver para o interior. A cidade está muito mais segura, mais tranquila. As zonas indígenas no Estado têm florescido, também como resposta à Federação Internacional dos Povos Indígenas.

- E tu és responsável pelos transportes e habitação?

- Sim, da cidade.

- Como estão os transportes da cidade? E a habitação?

- A habitação está muito bem. Não tem mais gente vivendo na rua, as últimas favelas estão sendo reassentadas em casas recuperadas e reconstruídas. Estamos reutilizando muitos materiais reciclados da própria cidade, o asfalto do chão, o metal de alguns prédios demasiado altos que estamos desmantelando, e materiais novos como hidrocerâmicas ou bio-carvão. As novas casas agora estão construídas para aguentar o calor muito bem. Não sei se posso falar isso, mas a questão da habitação está, pelo menos no momento, resolvida. E a energia doméstica já é produzida localmente em 80%.

- E transportes?

- É mais complicado. Teve uma grande tensão na cidade. Tinha mais de nove milhões de carros e o transporte público era muito incipiente. As quadrilhas dominavam os circuitos das vans, algumas até com dinheiro público, pra lavar dinheiro, mas faziam parte da infraestrutura. Tivemos de tirar todos. Expandimos o metrô, com mais duas linhas e chegando a 150 estações. E adicionamos um tram de superfície que corre 70km da cidade. Tentamos eletrificar a frota de ônibus, mas foi muito além da nossa capacidade industrial. Ainda estamos no processo de reciclar os carros, que têm sido transformado principalmente em trens. Como levantámos

várias estradas para reduzir o risco de cheia, tem zonas em que os acessos não são ideais. Dá pra andar bem na cidade, mas tem algumas comunidades que ainda estão um pouco isoladas. Temos tentado aproximar as populações mais periféricas do centro também, naturalizar mais áreas, fazendo vários rculos verdes à volta da cidade, que baixa o calor, combate a seca e trava cheia - e é bonito! Temos suprido alguma necessidade de transporte com bicicleta elétrica, mas nem sempre resolve. Então, se eu comparar com a situação antes da revolução, é incrível. Mas se eu comparar com a situação na habitação, ou se comparar o sistema de transporte com cidades mais pequenas como Ribeirão Preto, ainda temos muito trabalho pela frente.

- Obrigado pela explicação, Mirabelle! Agradeço muito.

- Foi um prazer, Alex.


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A entrevista reveladora que o Alex me enviou tinha-me deixado algumas dúvidas, nomeadamente sobre as grandes alianças indígenas. Em todo o continente americano houve revoltas de comunidades indígenas, que conjugadas com a desagregação capitalista e nacionalista, levou ao surgimento de novos “países” (embora eles não se intitulassem países, mas mais nações ou povos, incluindo territórios nessas definições), alguns dos quais se tinham mesmo autonomizado. Kalaallit Nunaat, a antiga Gronelândia, era de longe o maior e mais famoso, mas Wallmapu e Patagonia, na ponta Sul da América, tinham-se tornado também conhecidos. Na Federação Internacional dos Povos Indígenas tinha havido uma forte resposta à destruição ambiental, afirmando-se uma aliança espiritual de conexão com a água, de restauro da

qualidade da água, e a ideia de fazer a paz com água. Do lado americano, este movimento chamou-se “Igui, Yaku, Ko”, unindo vários povos. Uma das mais fortes correntes do movimento desenvolveu-se nas fronteiras dos desertos da Patagónia e do Atacama. Estes movimentos ligaram-se ao outro lado do Atlântico, diretamente com o movimento “Ma”, nas fronteiras Norte do Sahara. Ma e Ko tornaram-se parte de uma cosmovisão crescente sobre a ameaça do grande deserto, favorecendo os modos de vida itinerantes e frugais. A Federação Internacional dos Povos Indígenas tornou-se uma grande proponente desta nova visão, conhecida como MaKo.


Falei com Alex por Zoom por esses dias, quando ele partiu do Brasil rumo à Argentina e aos tempestuosos desertos de sal. Senti-o menos tenso. Fizemos as pazes depois da confusão por causa do Ettore. E preparei-me para voltar para Lisboa, também para preparar o seu regresso, embora não percebesse ainda como ele regressaria. Se calhar devia ligar ao Gianni também, embora não soubesse como é que ele reagiria à minha situação com o seu marido. A Mei tinha-me confortado num momento difícil, e estava-lhe muito agradecida, mas já estava a abusar da sua hospitalidade. Além de me ajudar com os documentos, tínhamos começado a conversar acerca dos eventos no Sudeste Asiático, mas infelizmente Mei não tinha muita informação física com ela. Apesar do esforço dela para arranjar materiais na comunidade, a informação circulava mais boca a boca, pelo que acabei por fazer várias entrevistas sobre o que aconteceu na Vietname, nas Filipinas, Malásia e China, na grande crise do Mar do Sul da China que influenciou diretamente o derrube da liderança do Comité Central do Partido Comunista na Chinês, substituído pela juventude comunista.



asas de borboleta

asas de borboleta

- Gianni?

- Ciao, Alex. Come stai?

- Cansado, como já te disse.

- Já sabes como e quando é que eu vou voltar?

- Provavelmente vai ser da mesma maneira, desculpa. Sei que foi uma má experiência para ti.

- Uma má experiência. Sim, vamos chamar-lhe isso. Vamos ser muito simpáticos e chamar uma má experiência à minha viagem pra cá…

- A próxima oportunidade para voltar será provavelmente em meados de janeiro ou em fevereiro.

- Bem, isso é muito mais do que tínhamos falado. Falámos sobre dois meses, não foi Gianni?

- Sim, mas é assim que as coisas são agora, é a única forma, quando abre a janela de navegação no Atlântico.

- Isso é uma desilusão. E não há uma alternativa?

- Não, lamento.

- OK. Ouve, a Lia encontrou nos documentos dos meus pais, do meu pai, algo que me interessa. É sobre as Asas de Borboleta. O meu pai achava que foram a componente chave para o sucesso da revolução. Ou pelo menos para o lançamento do movimento. Ele escreveu uma série de iniciais sobre as Borboletas antes do início do movimento e vi lá GF. És tu, Gianni? - seguiu-se uma pausa de alguns segundos.

- Sim, sou eu.

- Nice.

- Podes dizer-me a quem pertencem as outras iniciais? EM, LB, SK, AK, JZ, AS? Sabes quem são, não é?

- Sim, sei quem são, envio-te um mail com os nomes delas.

- E podes explicar-me mais sobre as borboletas? Como surgiram?


- Não é uma história simples. Basicamente, nós éramos… Não diria auto-nomeados, mas um grupo de pessoas com ideias semelhantes, de diferentes secções de movimentos em diferentes partes do mundo. Fomo-nos apercebendo através de várias conversas da existência uns dos outros e do nosso alinhamento político. Muitas vezes o alinhamento era até mais pessoal que a nível das organizações. Começámos a procurar-nos uns aos outros para podermos articular componentes do movimento e criar um plano geral, não muito rigoroso e rígido, mas tendo em conta o que precisava de acontecer, os prazos que tínhamos, as oportunidades que precisávamos de aproveitar e as oportunidades que precisávamos de criar. E assim tomámos a iniciativa de nos articularmos.

- OK, mas quem é que pensou nisso?

- Várias pessoas, provavelmente conheces algumas delas. Para além de mim, Liz foi certamente uma dessas pessoas.

- Vocês eram uma espécie de comité central do movimento?

- Não lhe chamaria isso, durante muito tempo nem tínhamos nome. Era tudo muito mais orgânico, éramos mais como um pequeno grupo informal que reunia regularmente e de forma sigilosa para poder pensar nos três meses, seis meses, um ano e dois anos seguintes e ver o que existia e o que faltava e o que podíamos fazer em relação a isso.

- E existem há quanto tempo?

- Oh bem. Começámos a reunir-nos muito antes de qualquer das revoluções acontecer.

- E tu sempre estiveste presente? Sei que a Josephine também esteve.

- Estive lá algumas vezes, vários anos. Eu tinha uma posição de ligação e era bastante influente na Europa. À medida que a situação avançava em termos de objectivos, eu era muitas vezes chamado de volta para dar feedback sobre a situação atual e o que precisava de acontecer.


- Mas agora já não estás?

- Não, já não estou há muito.

- Eu conheço alguém que esteja agora?

- Eu não sei quem tu conheces, espero que muito mais gente agora, mas a Josephine estava até há pouco.

- O que fazem agora as borboletas, depois da Grande Transformação?

- Isso terás de perguntar a elas, há anos que estou afastado. O óbvio que devem evitar que as coisas voltem para trás. Consolidar as vitórias. Manter uma ligação orgânica e informal do movimento. E pensar em todos os novos problemas que agora existem. As borboletas já não são só sete ou oito, como há muitos anos atrás.

- Envias-me então a lista dos que estavam contigo nas Borboletas? - concordou. - Mudando de assunto, Gianni, tenho pensado muito e quero juntar-me ao movimento.

- Como assim?

- Quero aderir ao movimento ecomunista, tornar-me membro, como os meus pais.

- Mas por alguma razão específica? Ainda há pouco estavas a queixar-te da burocracia dos relatórios…

- Sim, sim, provavelmente preferia fazer outras. Mas posso fazer o que for necessário. Compreendo que as coisas não estão resolvidas, que há muitas coisas que têm de acontecer. Olhando para os meus pais, especialmente para a minha mãe, acho que não posso simplesmente afastar-me.

- Bem, o teu pai pensou que podias pelo menos ter a opção de não seres atirado para o movimento só porque os teus pais eram ambos militantes…

- Sim, foi essa a escolha dele. Mas eu quero aproveitar o momento para me tornar oficialmente membro.

- Mas provavelmente isso precisa de acontecer em Portugal.


- Porquê? Se o movimento é mais internacional do que provavelmente qualquer movimento antes do ecomunismo?

- Por uma questão organizacional. Também não há pressa, pensa melhor sobre isto, porque também exige muitas responsabilidades e muito tempo. Acabaste de ter um filho e deixaste o teu país e a tua família por algum tempo. Talvez devesses pensar melhor sobre isto… Já falaste com a Lia?

- Não. Mas ela vai apoiar, ela sempre foi mais ativa do que eu. Acho que ela vai compreender eu ter de fazer parte disto. E que ela também deve fazer… - do outro lado, silêncio. - Gianni, por favor, diz-me o mais depressa possível quando vou voltar a Portugal. Estou na última fase das entrevistas, tenho muitas coisas comigo e parto para a Argentina amanhã de manhã. Seria óptimo saber quando volto para casa e onde ficarei entretanto.

- OK, Alex, brilhante. Entrarei em contacto contigo assim que puder. Arrivederci!


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Fiquei três dias na cidade de São Paulo, uma cidade muito verde e animada. Das coisas que mais me impressionaram foram os cartazes brilhantes que cobriam vários prédios. Companheiras explicaram-me que estes, além de embelezarem a cidade, eram construídos com microcélulas fotovoltaicas inventadas nas antiga Universidade de São Paulo, agora Academia do Futuro, por uma equipa internacional chamada Jugendstil. Os Jugendstil, mistura de académicos com artistas, fazem parte do movimento futurista Solarpunk, e desenvolveram no Brasil várias soluções fotovoltaicas orgânicas. Como resultado, a cidade tem muito menos painéis solares do que as outras cidades pelas quais eu tinha passado. A sua aplicação em janelas também tem sido muito difundida

no país, com vantagens em termos de produção local de energia e com materiais mais simples do que os painéis solares tradicionais. Num passeio no meu último dia pela cidade encontrei-me na zona da estação de comboio, o “trem” brasileiro. Era um bairro muito bonito. Atrás do edifício da Estação da Luz havia um enorme jardim, uma mistura de pomar com hortas, cheios de gente trabalhando. Em conversa por ali revelaram-me que se chamava a Fazenda da Cracolândia. Estranhando o nome, explicaram-me que aquela enorme área se tinha chamado Cracolândia há vinte anos atrás. Naquela zona, e nas ruas adjacentes, grupos de milhares de pessoas viciadas em drogas circulavam sem destino todos os dias. Eram viciadas principalmente no que se chamava de “crack”, um derivado da cocaína. Antes da revolução, várias das igrejas evangélicas vinham recolher os “crackudos” e levavam-nos para fazendas no interior, onde lhes um davam tratamento de choque, tirando-os das drogas e fazendo uma lavagem cerebral intensa para recrutar para as milícias religiosas. Várias pessoas morriam no processo, mas as milícias iam aumentando muito a sua força. Depois da revolução, as cracolândias ficaram menores, e nessa altura os ecomunistas também introduziram um sistema de recrutamento menos violento mas também bastante radical, para impedir que os consumidores de drogas continuassem a alimentar os grupos criminosos que ainda viviam do tráfico. Perto dali, um enorme cartaz em que estava uma mulher morena fardada, com o nome “Garrida” por baixo. Não havia dúvidas, era a minha mãe. O edifício pertencia a algo chamado Frota Salvavidas. Entrei. Pessoas andavam de um lado para o outro muito ocupadas, transportando caixas e afixando mapas e pôsteres nas paredes. Parei uma jovem com uns 20 anos e perguntei se sabia quem era a pessoa posta na fachada.

- Ah sim, Maria Garrida, a revolucionária.

- Porque têm a imagem dela lá fora?

- Ah, cara. Isso foi decisão do capitão.

- Capitão?

- Capitão Serna. Você quer que eu vá chamar ele?

- Sim, por favor.

- E você quem é?

- Alexandre Águas.

- Você vem de onde?

- De Portugal.

- Portugal? Longe, né? Vou lá.


Voltou passado dois minutos com um homem. Tinha uns 50 anos, cabelo branco, pele muito escura e enrugada, olhos pretos sobre pesadas sobrancelhas também pretas. Vestia uma macacão azul muito escuro, com estrelas amarelas cozidas na manga. A moça afastou-se, de volta a colar cartazes de baleias e golfinhos.

- Posso ajudar-lhe?

- Talvez. Aquela senhora lá fora. No cartaz.

- Maria la brava?

- La brava? É a minha mãe.

- Não!

- Sim. Sou filho dela, da Marta Garrida.

- Que maravilha. Qual é o teu nome?

- Alexandre. Alex. Você conhecia a minha mãe?


O homem abraçou-me, emocionado. Deu-me umas palmadas muito vigorosas nas costas, espremendo-me enquanto se ria.

- Conhecia, sim! Uma mulher extraordinária. Conheci-a no México. Vim para Brasil por causa dela. - estendeu-me a mão.

- Santiago Lopez Serna! Ao teu dispor! Ao teu total dispor! Um prazer!

- Vocês eram amigos?

- Amigos, camaradas, companheiros revolucionários. Ela era um furacão revolucionário. E tu? O que fazes? O que te traz por aos Salvavidas?

- Descobri-vos por acaso e por causa da imagem da minha mãe. Eu estou no Brasil para escrever a história da Grande Mudança e a descobrir a história da minha mãe.

- Ah, que incrível história vai ser, a história de la brava! Foi uma desgraça quando ela foi morta. Precisamos de inspirar mais pessoas como ela fazia. Sabes que estou aqui por causa dela. Conheci-a no México. Eu tinha participado em ações da ORCA, tinha comandado vários navios e botes em ações contra a indústria da pesca e do petróleo. Na altura era preciso enfrentar as guardas costeiras do capitalismo, sempre a defender a catástrofe. Eu ajudei-a algumas vezes a transportar pessoas, na travessia do Panamá. Depois da revolução aqui no Brasil, ela foi procurar-me. Eu não era do partido ecomunista, mas a Maria convenceu-me a vir. Ela tinha um jeito de convencer as pessoas.

- O que vieste fazer?

- Vim ajudar a fechar o campo petrolífero Lula, frente à bacia de Santos. Depois acabei por ficar e fazer muito mais coisas por esse litoral cheio de frotas de pesca ilegal e de petroleiros dos grupos criminosos.

- Mas você pertence ao Exército Verde?

- Não, nunca me convenceram a ser ecomunista. Eu aceitei o desafio da tua mãe porque ela era admirável e ela não ia pedir para fazer algo que não fosse importante. Também saí da

ORCA com outras companheiras e criámos a Frota Salvavidas. Temos um bom acordo com o governo do Porto de Santos. Usamos a nossa frota de 20 pequenas fragatas e corvetas, e os nossos veleiros super-rápidos para patrulhar de Guaratuba até Cabo Frio. E fazemos outras missões autónomas quando descobrimos piratas, navios de pesca e cargueiros de contrabando, que normalmente afundamos.

- O Exército Verde não tem marinha?

- Eles converteram alguns navios, que patrulham do Rio para cima, mas a maioria era demasiado pesada para funcionar sem motores de combustão. Então estão quase todos em doca seca, não sei se vão ser convertidos ou reciclados. Os meus veleiros, por outro lado, com as suas velas fotovoltaicas, funcionam simultaneamente a energia solar e eólica. Mas conta-me mais sobre ti. A moça disse-me que eras de Portugal. A Maria era portuguesa?

- Sim. De Lisboa.

- Sempre pense que fuese espanhola, por causa de su acento, sotaque.

- Ela falava muito bem em várias línguas.

- Claro. Uma mulher extraordinária em todos os sentidos. Mas anda, vem sentar lá dentro, se tens tempo.

- Tenho algum. - Segurou-me a mão e levou-me para um escritório com uma grande janela para a rua, fechada com grades.

- Desculpa a confusão, acabamos de abrir esta sede aqui, precisamos recrutar novos marinheiros e decidimos vir para esta zona. Conheces?

- É a minha primeira vez em São Paulo.

- É uma cidade incrível. E se a tivesses conhecido antes ainda acharias mais.

- Eu sei, falei com uma comissária e ela explicou-me muitas das transformações. Mas Santiago, você conhecia bem a minha mãe?

- Tão bem quanto se podiam conhecer a Maria. Ela não era uma pessoa muito expansiva. Mas durante um ano convivemos regularmente, quase sempre em trabalho. Eu também estava cá quando ela desapareceu.

- Como, desapareceu?

- A tua mãe foi raptada e levada pro Sul. Nós só descobrimos mais tarde onde ela estava.

- Mas quem a raptou?

- O PCC apanhou ela e vendeu pra Assembleia de Deus. Sabe Deus o que ela passou lá. Mas conseguiu fugir, voltou muito mal tratada, meses depois. Depois levou sumiço durante mais um ano.

- O que aconteceu?

- Acho que ela foi se recuperar. Eles devem ter feito tudo com ela. - suspirou. - Quando ela voltou estava uma pessoa diferente, ainda mais dura, falava e sorria muito pouco. Mas voltou com uma vontade enorme de destruir a estrutura do crime. Eu tentei falar com ela sobre o que se tinha passado, mas ela nunca abriu o jogo. E se jogou no trabalho. Pouco depois eu voltei pro México, mas fui recebendo alguma informação.

- Informação sobre o quê?

- Sobre o que ela fez, como coordenou o combate aos incêndios políticos e aos fugitivos europeus da Muralha, como organizou a fuga de milhares de mulheres escravizadas no Paraguai e no Sul. E depois por azar, trocamos: em 2033 eu voltei pro Brasil e ela foi pro México, pra combater o crime organizado lá. Nunca mais vi ela. Mas tu não sabes estas coisas?

- Eu perdi o rasto à minha mãe há mais de quinze anos, quando ela partiu para a clandestinidade. Ela saiu de casa quando eu era muito novo e só voltei a vê-la uma vez antes de ela morrer.

- Ela era muito dedicada à causa. E estar associado a ela era um perigo. Ela também estava a


proteger-te, rapaz.

- Eu compreendo. Mas isso faz com que eu não a conheça. E apesar de ela ser conhecida aqui, eu não encontrei muitas pessoas que a conhecessem em pessoa.

- É, você sabe que o movimento ecomunista e o Exército Verde são muito novos, com muita gente mais nova do que você no comando. Muitas das mais velhas ou morreram ou se desligaram da vida política. Sobram uns véio como eu, mas pouco mais. E sua mãe também não era “famosa” assim, pelo menos não antes de morrer. Quando ela foi atrás do crime, ela não foi assim pra uma batalha no campo aberto, ela foi pra fazer guerra na lama. E tinha muita gente do partido que não queria.

- Como assim, gente que não queria?

- Ah, são as lutas internas do ecomunismo. Não era uniforme. A sua mãe não era sul-americana, então falavam que ela não tinha razão, que era muito rígida, que isso era visão européia, que ela tinha pressa demais. Mas também tinha muita gente que apoiava ela politicamente.


Depois de prometer voltar a visitar Santiago antes de ir embora (ele fez-me mesmo prometer), regressei apressadamente para a sede do movimento ecomunista. Eles tinham uma pequena biblioteca lá. Pedi a um companheiro um livro cujo título eu tinha visto em outras bibliotecas: “Debates e Polémicas do triunfante movimento ecomunista”. Eles não tinham, mas ele arranjou-me uma versão na Sampanet, que eu baixei para o meu pequeno computador. Segui imediatamente para o capítulo 6, para a relação do movimento ecomunista com o crime organizado. Era sobre esse debate que eu percebi que a minha mãe tinha intervindo de forma tão contundente. O capítulo era longo mas destaquei várias passagens interessantes…




Guardei o computador, satisfeito por perceber melhor a luta em que a minha mãe se tinha metido dentro do próprio movimento. No entanto, precisava mais informação.


- Liz?

- Quem fala?

- É o Alex, Alex Águas.

- Como estás? Ainda estás por cá?

- Estou de partida para a Argentina.

- Óptimo, óptimo. Diz-me, o que queres?

- Tu pertences às borboletas?

- Não é suposto saber-se quem pertence às borboletas, Alex.

- E já pertenceste no passado?

- Sim, já pertenci.

- Posso pedir-te informação sobre quem estava contigo nas borboletas?

- Queres saber sobre alguém em específico?

- Sim. A minhae esteve nas borboletas?

- Esteve. - Eu sabia. A minha mãe…

- Posso pedir-te os nomes das outras pessoas que estavam convosco?

- Não tenho aqui a lista completa, estive mais que uma vez. Mas quem te contou sobre as borboletas?

- Eu estou a escrever a história da Grande Mudança, se não soubesse acerca das borboletas, não andava a fazer nada…

- Acho que com a tua mãe e comigo estava a Nora, o Hector, a Farah…

- Posso pedir-te que me envies a lista completa?

- OK. Mas isso vai para o livro?

- Sim. Acho que é importante perceber que havia alguém a pensar em tudo, a articular o movimento…

- Tinha mesmo razão sobre ti. Tu queres ir ao fundo da história. Se quiseres posso dar-te também os nomes de quem estava comigo nos outros mandatos em que estive.

- Seria óptimo, obrigado.

- Envio-te isso por mail assim que tiver tempo. Agora tenho de ir. Cuida-te.

- Obrigado!


Enviei emails para Josephine e Sukumar a pedir-lhes os nomes das pessoas que tinham estado com eles nas Asas de Borboleta. Esperava conseguir com isto perceber melhor a articulação do movimento mas também a importância da minha mãe. Na minha caixa de correio já tinha a resposta do Gianni.


No dia seguinte encontrei-me com Santiago antes de subir ao comboio atravessando o Sul rumo a Buenos Aires. Na Estação da Luz sentamo-nos para tomar café e um sumo de goiaba. Que maravilha, não provava goiaba desde que era criança!

- E na Argentina tens de provar o mati. Congonha, como dizemos aqui.

- Vou experimentar, obrigado!

- Então depois de Buenos Aires, voltas?

- Volto. Tenho um navio que vai pra Europa em quatro dias.

- Como?

- Recebi uma mensagem, vai sair do porto de Santos no dia quatro.

- De Dezembro?

- Sim, no dia quatro de Dezembro.

- É impossível. Os únicos navios que saem nessa altura são de emergências. Até à semana de Natal navegar no Atlântico Sul seria quase suicídio. E mesmo aí tens uma janela de três semanas, no máximo.

- Essa datas não têm nada que ver com o que me disseram.

- Compa, se tu não acredita neste velho lobo do mar…

- Acredito, claro. - dei-lhe uma palmada no ombro. Mas fiquei apreensivo com a informação.

- Alex, posso tirar uma foto com você?

- Podes, claro! - tirou um antigo smartphone do bolso e ligou-o, pedindo a um rapaz que passava que nos fotografasse. Depois olhou sorridente para a foto tirada, mostrando-ma.

- É uma alegria ter uma foto contigo, não só por seres filho da tua mãe, mas também porque tenho a certeza que vai ser espetacular aquilo que vais escrever aí. Vais também incluir-me a mim, velho pirata animalista?

- Vou, claro. - Sorriu e deu uma forte gargalhada.

- Santiago, vais voltar a ser famoso!


embarcado no trem sulista, cujo percurso vai desde o Rio de Janeiro a Valparaíso, no Chile, consultei o meu computador. Josephine e Sukumar tinham respondido.






















A mensagem de Sukumar deixou-me bastante surpreendido. Que outras coisas sobre a morte da minha mãe tinha ele para me dizer que eu ainda não soubesse? Sabia que ela tinha morrido numa emboscada em Culiácan, no México. Sabia que nesse mesmo dia centenas de ecomunistas, incluindo dirigentes, tinham morrido em vários locais do mundo, no último grande ataque da Muralha a nível internacional. Porque quereria ver-me ao vivo? Já bastava o tempo todo que eu tinha passado fora de casa e longe da minha família. Ainda mal tinha fechado o computador quando o meu telefone tocou.

Era Elizandra.


- Alex, o Sukumar contactou-me. Já recebeste a mensagem dele?

- Sim, acabei de ler. Sabes sobre o que é que ele está a falar?

- Não. Mas ele ligou-me para me dizer que eu tenho de te ajudar a ir ter com ele.

- Eu quero muito saber o que aconteceu à minha mãe. Mas também quero voltar para a minha família, Liz.

- Essa é uma decisão que só tu podes tomar. Já és membro do movimento?

- O Gianni disse-me para não me precipitar.

- Que idade tens? Trinta? Com a tua idade todas nós já tínhamos tomado decisões muito mais drásticas do que essa. Porque hesitas? É essencial que te juntes ao movimento, porque o movimento precisa de pessoas como tu.

- Como assim, pessoas como eu?

- Pessoas que percebam a história do que aconteceu no passado e que tenham uma percepção do contexto global, que averiguem e que sejam inquisitivas. O movimento está a começar a girar sobre si mesmo, quando precisa de avançar para derrubar novos desafios. Estamos a criar uma nova Humanidade, Alex. Para isso precisamos quem perceba o que está em jogo. Uma nova história da Grande Mudança pode ser útil para isso, mas é preciso mais. Acho que já percebeste o nível de sacrifícios que implica construir o futuro. A Grande Mudança foi só o primeiro passo para nos curarmos. Está a criar-se uma complacência que nos empurra para trás e de volta para a beira do colapso. Parar é morrer. Temos de avançar. E essa também é uma tarefa tua. - pensei acerca da imagem que a Liz tinha sobre mim, que talvez estivesse a projetar sobre mim as capacidades da minha mãe. Podia eu ser, fazer, uma parte que fosse do que ela fez?


- O que queres que eu faça?

- Deves ir a Calcutá, visitar o Sukumar. É possível atravessares a partir do Chile para a China.

- Como?

- De avião. - Eu não andava de avião há décadas. - Mas preciso que te juntes ao movimento oficialmente. E que continues a preparar o livro. Eu consigo justificar enviar-te porque nós estamos a construir novos projetos de comunicação e quero que te envolvas. - Ela tinha ficado a pensar nisto. Senti de repente uma grande clareza na minha cabeça. Estava a descobrir o meu papel, o sentido da minha vida.

- Dá-me dois dias.

- Sim, claro. - A questão agora era como contar à Lia. Decidi não adiar a conversa.


- Alex, como estás?

- Estou bem. Vou enviar-te o novo material que tenho sobre as borboletas. Não vais acreditar, a minha mãe também foi uma delas.

- Que bom. Mas não é propriamente uma grande surpresa, considerando tudo o que ela fez. Não percebo como o teu pai ou ela mesmao te contaram isto.

- Sabes que eu nunca falava com ela e quando o fazia, eram sempre mensagens telegráficas. Ela sacrificou muito, e isso criou um grande peso sobre ela. Quando eu a vi há seis anos quase não me falámos… Mas também não era suposto as pessoas das borboletas tornarem-no público.

- Eu sei disso tudo, Alex.

- Lia, fizeram-me uma proposta de continuar a viagem…

- Alex… Não te vemos há meses.

- Eu sei, Lia. A Elizandra Márquez propôs-me ir visitar o Sukumar à Índia. Fazer a viagem de avião.

-

Isto tem alguma coisa que ver com o que se passou na Colômbia?

- O que é que se passou na Colômbia?

- O homem com que te envolveste…

- Como sabes disso?

- O Ettore contou-me. É por causa dele?

- Não, Lia. Não tem nada que ver com isso. Isso foi uma coisa sem importância.

- Teve importância suficiente para não me contares. - ouvi a sua voz quebrar

- Não teve importância. Eu quero ir porque eu tenho mesmo de perceber o que aconteceu à minha mãe e o Sukumar disse-me que me quer contar alguma coisa, mas só o fará pessoalmente.

- Acho que está na altura de seres mais sério Alex. Eu também vou ser. Ou voltas para casa, ou a nossa relação acaba. Liga-me quando decidires.



iluqsi, a guerra dos salares e a decisão

iluqsi, a guerra dos salares e a decisão

“Quando finalmente acabou a onda de calor, na noite de 2 de Agosto, começou uma enorme tempestade de relâmpagos. O céu estava todo iluminado, com fortes trovões e vento. Apesar de ver os raios caírem à minha frente e à distância, todo o prédio em que vivíamos abanava. Já não tínhamos eletricidade há dois dias, em casa ou nas ruas, pelo que o efeito das luzes ainda era mais espetacular. As crianças choravam alto. Mas não começou a cair água, que tanto precisávamos. A atmosfera cheirava a enxofre. Da minha janela consegui ver os incêndios a começarem. Em breve, um longa linha laranja ocupava o escuro horizonte quase todo. No início não se via muito fumo, mas em breve chegou o cheiro e o vento aumentou. Os trovões continuavam, criando mais incêndios que se iam ligando uns aos outros, criando uma mancha de fogo cada vez maior. O vento transportava faúlhas de um lado para o outro e rapidamente tive de fechar a janela porque as folhas incandescentes começaram a aterrar na varanda. Rapidamente arrumei uma mala com medicamentos, alguma comida e as jóias de ouro da minha mãe. Corri para as crianças e levantei-as. Precisávamos sair dali. Quando voltei a olhar pela janela, o fogo já não era uma linha laranja longínqua, mas uma onda que se aproximava, ruidosa. Abri a porta de casa e o barulho era quase ensurdecedor. A temperatura tinha voltado a aumentar, mas agora o calor só vinha de um lado: o das chamas. Um camião de bombeiros passou pela estrada a grande velocidade na direção do incêndio. As faúlhas nesta altura já caíam por todo o lado e havia pequenos fogos a poucos metros de distância de nós. As crianças choravam e tossiam, já completamente acordadas. Enfiei as três no banco de trás e dei-lhes panos para taparem a boca. Pus a máscara na cara e arrancámos na direção da barragem. Na direção contrária continuavam a passar a grande velocidade carros de bombeiros e da polícia. Olhando para trás pelo retrovisor já não conseguia ver quase nada por causa do fumo. Dos dois lados da estrada havia pequenos incêndios, mas quanto mais avançava mais me assustava o facto de haver continuar a haver fogo de todos os lados. Em certas zonas, as chamas já estavam no asfalto, empurradas pelo forte vento que produzia um

ruído altíssimo, como explosões contínuas, entrecortadas com berros de animais. O carro também estava muito quente. A única coisa em que eu sabia era que não podia parar. Por causa do fumo e das chamas via cada vez menos, seguindo com atenção o separador branco no meio da estrada, que conseguia enxergar uns quantos metros à frente. A situação era tão má que quase não consegui travar quando apareceu um carro parado no meio do caminho. Desviei-me, contornando-o. Olhei pela janela para dentro do pequeno Corsa branco. Havia alguém no lugar do passageiro, com a cabeça encostada no volante, uma mulher jovem. Buzinei e não reagiu. Buzinei de novo e foi nessa altura que uma longa chama projetou-se na frente ao meu capô. As crianças gritaram e senti o meu braço esquerdo a arder. Arranquei imediatamente. Faltava perto de um quilómetro para chegar à barragem e eu só imaginava que íamos morrer naquela situação, dentro do carro. De repente abriu-se uma clareira nas chamas e entrámos numa zona onde o fogo estava menos intenso. Acelerei até entrar com os pneus da frente dentro de água. Quando tentei abrir a porta, queimei a mão. Com uma camisola na mão, abri a porta e corri a tirar as crianças lá de trás. Os dois mais velhos, Lucas e Miguel, berravam e tossiam de forma descontrolada. A pequena Aline estava inanimada, mas respirava. Enfiámo-nos dentro da água tépida para descobrir pouco alívio do calor. Todo o meu lado esquerdo ardeu ainda mais no contacto com a água, em particular a cara. Ficámos ali, mergulhados até ao pescoço para tentar refrescar e esperar sobreviver ao fogo, que nas horas seguintes se foi aproximando, ora de um lado, ora do outro, das margens da barragem. Pelo ar voavam faúlhas incandescentes e um fumo que se engrossava e desaparecia. Ficámos ali, submersos até à cabeça, tossindo durante horas, eu segurando as crianças que iam adormecendo e acordando com as dificuldades de respirar. Ficámos assim até o dia começar a lançar raios no horizonte. De manhã, já sem fogos visíveis à nossa volta, saímos da água. Os dois pneus de trás do carro estavam derretidos e vazios, enquanto o lado esquerdo estava com

a toda a tinta levantada e queimada. Deitei no chão e chorei, perdendo a consciência quando apareceram as luzes de um carro de ambulância. Nessa noite, mais de 30 bombeiros e 50 civis morreram nos incêndios, incluindo os carros que passaram por nós, a mulher de 20 anos pela qual passámos na estrada e a minha filha, que deixou de respirar na ambulância essa mesma manhã.”


A terrível história era contada por uma mulher que tinha sobrevivido aos grandes incêndios florestais da Serra do Mar, no Paraná. A área de mata atlântica perdida esse ano tinha chegado aos 2,5 milhões de hectares, incluindo as áreas que tinham sido plantadas com eucaliptos como projeto de captura de carbono, onde os fogos começaram. Com a seca e a subida de temperatura estas árvores australianas, em vez de reduzirem a temperatura e os incêndios, aceleravam-nos, despejando bombas de fogo a dezenas de quilómetros de distância. Mais de 600 pessoas morreram durante os incêndios que perduraram por 50 dias. Desliguei o computador, pensando que em breve começaria de novo a época de incêndios por ali. Ser apanhado num incêndio dentro de um comboio, por muito rápido que fosse (e este Trem Sulista era quase de alta velocidade), devia ser uma experiência assustadora. A estratégia de plantações florestais em grande escala para absorver carbono tinha sido catastrófica. Apesar de alguns raros casos de sucesso, estes projetos tinham arruinado várias florestas antigas. A obsessão com as árvores de crescimento rápido - pinheiros, eucaliptos, casuarinas e tecas - impulsionada pela indústria do papel e da madeira, sempre à procura de novos negócios, tinha levado a resultados desastrosos. A segunda tentativa a nível global funcionou bastante melhor, com outras densidades de plantas e com a adaptação das plantas aos territórios e disponibilidade de águas, com combinações destinadas a criar verdadeiras florestas e a promover que os animais, insectos e cogumelos (além das

pessoas) pudessem viver lá. Mas isto só tinha acontecido após o colapso da indústria.


A viagem de São Paulo a Buenos Aires no Sulista demorou apenas catorze horas. A linha de comboio era muito recente, aproveitando a melhoria de relações entre o Brasil, o Sul e a Argentina. A história conturbada entre os três territórios tinha vivido tempos difíceis durante a última década revolucionária. O caminho mais direto para o trajeto incluiria passar pelo Paraguai, mas a ditadura católica dos colorados cruzados, um dos poucos resquícios da Muralha na América do Sul, não permitiu qualquer acordo. A existência de um estado fascista no meio de tantos ecomunistas e aliados tinha que ver com as guerras chileno-argentina e com as independências indígenas.



A Guerra dos Salares e a independência de Wallmapu e Tehuelche


O conflito prolongado no Peru, opondo Fujimoristas a Mariateguistas, deu origem a uma fuga constante de comunidades para Sul. O colapso dos lagos glaciares peruanos Palcacocha e Riticocha, matou mais de 100 mil pessoas, o que levou ao famoso “Iluqsi”, o grande êxodo dos Quechua (acompanhados por grandes comunidades de Achuares e Aymaras) rumo à Argentina e ao Chile. Estima-se que entre 3 e 4 milhões de pessoas partiram do país num só ano. O grosso desta migração percorreu o litoral oeste do continente, desde Huaraz até à região de Los Rios, no Chile. A sua passagem acrescentou tensão à Guerra dos Salares, que no fim dos anos 30 tinha começado com pequenos conflitos nas fronteiras entre a Bolívia, a Argentina e o Chile.



A exaustão das reservas de lítio dos salares de Atacama e del Hombre Muerto levou ao avanço para a exploração de reservas secundárias do mineral, considerado na altura essencial à transição energética. A crescente escassez do recurso fazia os preços subir nos mercados de especulação internacional. As descobertas de lítio no Salar de Pular e do minério em profundidade no Salar de Incahuasi provocaram o início da guerra. Perante o grande agravamento da desertificação no Norte do país, o governo chileno recusou a exploração para preservar os aquíferos subterrâneos debaixo de ambas as reservas. A experiência com a destruição de Atacama tinha levado ao derrube da presidente chilena e o novo governo não queria arriscar-se a semelhante destino. As relações entre os dois países também vinham em agravamento desde que a dinastia Milei estava no poder na Argentina. A presidente Milei, que já tinha militarizado a indústria petrolífera, militarizou também a do lítio e mandou avançar a exploração. O governo chileno respondeu concentrando militares junto à fronteira. Durante duas semanas manteve-se um impasse, até que num ato inesperado a Marinha Argentina ocupou as ilhas Picton, Lennox, Nueva e Navarino, na Terra do Fogo. No mesmo dia, aviões da Força Aérea Argentina desembarcaram mais de 500 homens na Antártida chilena.


Pouco depois, o exército chileno invadiu a Argentina, conquistando em rápida sucessão Mendoza e Córdoba, perante fraca resistência terrestre. O que parecia abrir caminho a uma rápida vitória chilena, com uma ofensiva final sobre Buenos Aires, foi travado pela campanha de sabotagem de ecomunistas chilenos contra o governo nacional e contra as linhas de abastecimento das forças armadas. Na Argentina, várias unidades do Exército e Força Aérea argentinos sublevaram-se perante a gestão catastrófica do governo, enquanto milícias e grupos armados

começaram os ataques às instalações petrolíferas em Néquen, Chubut e Santa Cruz. Ambos os governos tinham na mão situações extremamente voláteis, pressionados pelas suas forças armadas, por ecomunistas e crescentemente pelas comunidades indígenas, ampliadas pelo Iluqsi e radicalizadas pelo plurinacionalismo indígena. Os meses seguintes seriam marcados por uma situação estacionária mas violenta, com uma importante parte do território argentino ocupada por militares chilenos, acossados pelas comunidades locais e ecomunistas. Do lado chileno, a repressão sobre o movimento ecomunista não deteve a sabotagem, as greves e os fortes protestos, em particular das comunidades indígenas, lideradas por maiorias quechuas e mapuches. A sangrenta batalha da Antártida, entre as unidades militares chilenas e argentinas, levou ao desembarque de tropas norueguesas, australianas e francesas no continente gelado, tentando travar a expansão do conflito para o resto do território polar.


No final de Novembro, a Federação Plurinacional dos Povos Indígenas apelou à constituição da nação de Wallmapu, tendo havido uma tomada dos territórios históricos ocupados pelo povo mapuche, cortando Argentina e Chile ao meio. Milhões de indígenas mapuches, quechuas, mas também guaranis, aymaras, tobas e muitas outras comunidades deslocaram-se de toda a América Latina na direção do que viria a ser o território Wallmapu. A Sul, uma ofensiva do exército chileno, destinada principalmente a conquistar Vaca Muerta, foi repelida pelas novas forças militarizadas de Wallmapu, apoiadas oficiosamente pela Descarbonária, pela ORCA e pelo recém-formado

Exército Verde com os seus famosos enxames de drones.


As populações indígenas a sul de Wallmapu, apoiadas a norte, tomaram as cidades de Ushuaia, Punta Arenas, Rio Gallegos, Puerto Madryn e Trelew e declararam a criação da nação Tehuelche, commumente chamada de Patagónia. Semanas depois, finalmente conquistaram Comodoro Rivadavia, pondo fim à produção e exportação petrolífera nas antigas regiões de Chubut e Santa Cruz. Em quatro meses, duas novas nações tinham sido criadas. O cessar fogo e acordo de paz que se seguiu entre Chile e Argentina, vista na mente dos generais e políticos como um prelúdio da reconquista a Sul, viu em vez disso começarem processos revolucionários que nos anos seguintes levariam à ascensão de ecomunistas ao poder tanto em Santiago como em Buenos Aires.


O Trem Sulista parou na estação Retiro, uma enorme confluência de comboios com ar bastante antigo, mas supreendentemente com poucas pessoas. Eram 2 horas da manhã de dia 28 de Novembro e o sol brilhava, forte, sobre a cidade de Buenos Aires. Olhei para o indicador de calor logo ao desembarque: 36ºC. Três homens, entre os quarenta e os sessenta anos, abordaram-me. Eram dos ecomunistas mais velhos que eu tinha visto na viagem até então. Apresentaram-se: German, Diego e Federico. Levaram-me a pé num longo e cansativo percurso até à assembleia popular argentina. Pelo caminho, reparei em muitas casas abandonadas, muitas zonas que teriam sido pomares e hortas urbanas bastante degradadas, com poucas pessoas. A cidade ainda não tinha recuperado da grande cheia dois anos antes, e isso notava-se. Diego

explicou-me como Buenos Aires tinha sofrido na última década. Com a revolução ecomunista e a paz na Argentina, a cidade tinha-se transformado bastante, com uma redução drástica da população para cerca de três milhões de pessoas. As pessoas tinham partido por vários motivos: primeiro por causa da guerra, depois por medo da violência revolucionária (que, garantiu-me, tinha sido mínima), depois pelas ondas de calor letais, que chegaram a matar mais de 200 mil pessoas num ano. A maior parte das comunidades indígenas migraram também rumo a Wallmapu e Patagónia. Finalmente, em 2040, o colapso de várias plataformas glaciares antárticos na zona de Brunt tinha produzido enormes ondas no Atlântico Sul que, combinadas com forte precipitação na bacia do rio Paraná, tinham invadido as cidades do Rio da Prata, destruindo parte das zonas costeiras tanto de Buenos Aires como de Montevideu. A sucessão de tragédias e aparente declínio pareciam explicar a relativa antipatia deles e o sentimento lúgubre da cidade. Finalmente chegámos ao monumental edifício da assembleia, o antigo Congresso, frente a um bonito bosque alimentar. Passei os três dias seguintes a tentar completar os relatórios - que fiz com muito maior dificuldade do que em qualquer outro dos sítios em que estive - a resistir à pressão constante do Gianni para regressar a Lisboa e a tentar inscrever-me no movimento, como a Elizandra tinha insistido para eu fazer. Depois de várias tentativas de tornar-me membro dos ecomunistas na sua sede principal, acabei por apenas conseguir fazê-lo deslocando-me a outra das suas sedes, num bairro periférico da cidade. As companheiras que me ajudaram estranharam muito quando lhes expliquei que vivia e Lisboa e estava ali para me inscrever, mas consegui acabar o processo e estar registado.


Seguiram-se três das chamadas telefónicas mais consequentes da minha vida até àquele momento.


- Ciao, Alex.

- Olá, Gianni.

- Estou a ligar-te para te informar que não vou apanhar o barco de volta a Lisboa.

- Não? E como vais voltar?

- Chegarei pelos meus próprios meios.

- Quais são os teus próprios meios, Alex?

- Vou viajar até à China. Já resolvi isso com a Elizandra Márquez.

- Não percebo porque decidiste deixar de confiar em mim.

- Não tem nada que ver com confiar ou deixar de confiar. Nós somos conhecidos, não amigos de longa data. Penso que na Ásia poderei encontrar mais respostas ao que estou à procura. E também saberei ainda mais sobre Grande Transformação lá.

- O teu projeto não era para contar ao teu filho o que tinha acontecido?

- Era e é.

- Mas estás cada vez mais distante do teu filho, Alex.

- Eu vou voltar para casa. Mas foste tu que me puseste neste caminho e por isso agradeço-te.

- Acho que estás a fazer um erro. Mas há coisas que só se podem aprender por experiência. Desejo-te boa sorte e se precisares ajuda em algum momento, podes contactar-me.

- Espera, e os materiais dos relatórios, as coisas que me emprestaste?

- Ah, sim. Envia-me os relatórios pela internet. O resto das coisas podes devolver-me se um dia decidires voltar para casa. Bocca al luppo! - desligou.


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- Liz?

- Olá, Alex, como estás? Onde estás agora?

- Estou em Buenos Aires. Já consegui inscrever-me.

- Óptimo! Excelentes notícias. Então, quando estás pronto para partir?

- Já estou pronto.

- Acabaste todos os teus trabalhos?

- Acabei tudo o que tinha combinado com o Gianni.

- Excelente. Ao contrário do que tinha acontecido com o teu trabalho até aqui, pelo que percebi, eu não tenho um itinerário completamente definido sobre o que vais fazer. Serás tu a gerir o teu trabalho. Deves ir à Índia visitar o Sukumar, claro, e preciso que vás à República Oriental Africana fazer entrevistas. Envio-te mais informação em breve. De resto, geres tu as tuas viagens. Envia-me por favor o teu número de militante do movimento, será a partir daí que poderei facilitar os custos do teu transportes. E já sabes, com aquelas geografias, muitas das viagens não poderão ser de comboio.

- Compreendo.

- No dia 8 de Dezembro deves estar no Aeroporto Médico de Santiago, no Chile. Há um avião que parte à noite rumo a Nova Xangai, que tem espaço para uma pessoa. Vou avisá-los que vais. A partir daí, estás por tua conta.

- Obrigado, Liz.

- Boa sorte, Alex.


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- Boa noite, Lia.

- Olá, Alex.

- Como estão vocês? Como está o António?

- Estamos na Amadora. Vim para casa dos meus pais uns dias.

- E eles, estão bem?

- Estão doentes, como de costume. O António está bem. Diria que tem saudade tuas, mas nesta altura ele já nem te deve reconhecer.

- Oh, Lia, não exageres.

- OK, deixemo-nos de conversa fiada. Já decidiste?

- Sim, eu vou continuar a minha viagem.

- Muito bem. Eu vou então prosseguir a minha vida. Quando voltares falamos sobre visitares o António e essas questões.

- Lia…

- Sim?

- Pensa sobre o que estás a fazer. Eu estarei de volta a casa assim que puder. Preciso descobrir tudo o que aconteceu à minha mãe. Não posso não ir visitar o Sukumar.

- Alex, tu decidiste que a nossa relação amorosa acabou. Posso continuar a enviar-te as coisas que tenho encontrado para o livro, mas é tudo. Se achas que tens de fazer isso, fá-lo. Mas nós não vamos ficar mais à tua espera.

- Eu vou-te mandando notícias de onde estou.

- Faz como quiseres.

- Adeus, Lia.

- Adeus, Alex.

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De repente estava sozinho no mundo, numa cidade desconhecida, independente, e com uma missão - descobrir a história de Marta Garrida. A minha tristeza pela decisão da Lia foi um pouco afogada pelo horizonte de possibilidades à minha frente. Foi assustador mas também entusiasmante, confesso. Apanhei o meu último comboio americano, rumando de Buenos Aires a Santiago do Chile.


No dia 8 à tarde cheguei ao aeroporto médico, apresentando-me no que há anos atrás teria sido a zona de segurança. O aeroporto médico era uma pequena fracção do antigo aeroporto internacional. Mantinha-se uma parte da pista, embora com muita erva a sair do meio do asfalto. O antigo edifício do aeroporto agora era um bairro com centenas de habitantes e casas com enormes janelas para o exterior. As antigas zonas mecânicas e de estacionamento de aviões estavam agora cobertas por painéis solares que alimentavam a comunidade ali. Na pista asfaltada estavam parados em espinha uns dez aviões, a maior parte dos quais com uns 10 metros de comprimento, excepto um maior, com o dobro do tamanho dos restantes. Quando cheguei ao local que dizia embarque, não havia ninguém. Perguntei a um rapaz que passava por ali a que horas chegavam as pessoas do voo e ele respondeu-me que só mais tarde. Eu estava um pouco nervoso com voar.


Fiquei por ali, passeando no que antes era a zona comercial de um aeroporto e que era agora uma zona comum entre as casas de várias pessoas, cheia de plantas, pessoas e música. Antigamente, os aeroportos eram sítios esquisitos, eu lembrava-me deles como um sítio de tensão. Lembrava-me da paranóia com a segurança, guardas e polícias por todo o lado, filas, separadores, detetores de metais, ter de estar sempre a mostrar papéis e telefones. E lembro-me de como as coisas eram todas tão caras. Das

vezes que tinha andado de avião com os meus pais, estes tinham trazido comida e bebida dentro das malas, para não termos de comprar no aeroporto ou no avião. Mas depois era preciso deitar os líquidos fora. Lembro-me em particular de um episódio em que um homem começou a gritar que tinha fome e sede porque tinha estado horas dentro de um avião em que não lhe tinham dado comida ou bebida, e que agora nem na casa de banho lhe davam água, nem nos restaurantes lhe davam um copo de água. A minha mãe tentou dar comida ao homem, mas ele disse que precisava de falar, que precisava gritar. Pouco depois, um grupo de polícias rodeou-o e começou a bater-lhe, enquanto o homem berrava. As pessoas à volta baixaram a cabeça e a minha mãe foi arrastada para longe pelo meu pai, que também me levou. Lembro-me de ela chorar, furiosa.


Duas horas depois, começaram a chegar as pessoas, os passageiros do voo com as suas famílias, alguns em cadeiras de rodas e até um senhor numa maca, todos acompanhados por malas de plástico parecidas com a minha. Falei um pouco com as pessoas e iam principalmente fazer tratamentos médicos contra cancros e cirurgias de precisão, que estavam mais desenvolvidas na China. Muitas ficaram surpreendidas com a minha explicação de que estava a investigar e a escrever um livro. Dei o meu nome a uma senhora que se apresentou com um fato todo preto e que era do serviço médico aéreo. Em breve as famílias começaram a despedir-se e vários homens com fatos do serviço médico aéreo vieram buscar as pessoas em cadeira de roda e maca. Descemos até à pista e fomos encaminhados até ao avião maior. Os que iam pelo seu pé subiram por uma escada na parte da frente do avião, enquanto os restantes subiram através de uma plataforma que os fazia entrar por uma porta traseira. Uma

vez sentado lá dentro, comecei a sentir-me mais tenso. Todas as histórias de quedas de aviões que tinham acontecido nas últimas décadas tinham-me feito pensar que eu nunca mais iria andar num. Além dos voos sabotados pela IA e também por algumas organizações terroristas, tinha havido um enorme aumento do número de acidentes por causa da muito maior turbulência nos ares. Nós íamos sobrevoar o maior oceano do mundo. Respirei fundo para tentar acalmar-me. O piloto começou a falar:


- Boa noite. O nosso voo até Nova Xangai com paragem de duas horas em Sidney demorará um total de 20 horas. Por motivos de possível turbulência aérea e também para que a viagem seja mais confortável, gostaríamos de disponibilizar a todas as pessoas a possibilidade de tomarem um pequeno sedativo que facilitará o vosso descanso. Recebemos a informação médica de todos e foram providenciadas opções de sedação compatíveis com as medicações que atualmente usam.


Nesse momento, um senhor do serviço dirigiu-se a mim e perguntou-me se tomava alguma medicação. Respondi-lhe que não, mas que aceitaria de muito boa vontade a sedação que eles tivessem. E que até podia ser mais forte, que não me importava nada de dormir o caminho todo. Minutos depois do avião levantar, recebi o pequeno comprimido que dissolvi debaixo da boca. Lembro-me apenas de olhar pela janela e ver o sol pôr-se no horizonte cheio de nuvens arredondadas.



nova xangai

nova xangai

Acordei sobressaltado. A turbulência que apanhámos já perto da China fazia todo o ​avião estremecer. Pouco me lembrava da nossa paragem em Sidney, na qual só tinha ​comido algo antes de voltar a dormir sob o efeito do sedativo. Depois do enorme ruído ​metálico do avião a ser sacudido de um lado para outro, senti uma forte impressão na ​barriga quando caímos de repente. As pessoas à minha volta, meio acordadas, meio a ​dormir, começaram a despertar. E a suspirar alto. Duas meninas nas cadeiras perto de ​mim começaram a gritar quando o avião abanou novamente de um lado para o outro. ​Pensei confortá-las, mas outra descida repentina tirou-me o ar. Comecei a respirar ​fundo e agarrei uma mão à cadeira à minha frente, e outra à menina que estava ao ​meu lado, não tendo mais a que me agarrar. E comecei a desesperar. Não havia nada ​que eu pudesse fazer. Pela janela, podia ver a chuva intensa a cair, estávamos no meio ​das nuvens. Comecei a pensar na morte. E no colete salva-vidas debaixo do assento. O ​que aconteceria se eu morresse? Nada. O António nunca se lembraria de mim, os meus ​pais já tinham morrido e a Lia também já tinha acabado comigo. E eu ainda não tinha ​conseguido fazer nada. Se calhar a Lia conseguia usar o material que eu lhe tinha ​enviado para fazer alguma coisa. Não ia saber o que aconteceu à minha mãe. E de ​repente, em vez de medo, comecei a relativizar. Tanta gente morreu nas últimas ​décadas, o que significaria mais esta morte, mais um avião caído? Nada. Enquanto ​abanávamos nas cadeiras, presos pelos cintos, comecei estranhamente a ficar ​tranquilo. Depois de alguns minutos de tormento, a turbulência ficou cada vez mais ​espaçada. Comecei a respirar mais devagar, as crianças deixaram de chorar e errar, ​apenas soluçando. O piloto falou:


- Desculpem os saltos, mas fomos apanhados pelos ventos da cauda de um pequeno tufão que ​se aproxima do Japão. Em princípio, não teremos mais turbulência até à aterragem.

Houve um suspiro coletivo das pessoas. A menina largou a minha mão. Pela janela, ​comecei a ver o mar através das nuvens. O meu pânico momentâneo dissipava-se ​rápido. As palavras do capitão era muito tranquilizantes.

- Esperamos aterrar em Xangai em cerca de 20 minutos.

Felizmente o piloto não se tinha enganado.


Chegámos de manhã cedo ao aeroporto de Xanghai Hongquiao, o último ainda ​funcional da cidade em mudança. Estava bastante frio e tive de recuperar roupas que ​não usava desde que tinha saído dos Estados Unidos. A cidade de Xangai, que já tinha ​sido casa para mais de 25 milhões de pessoas, estava a ser abandonada sob a pressão ​simultânea do afundamento dos solos e da subida do nível médio do mar. Uma parte ​importante da população estava a ser deslocada para Nova Xangai, uma cidade em ​construção entre Nantong e Yancheng, a 150 km de distância, na direção do interior e ​fora de zonas de risco inundação. Fora do avião acionei o meu Babel. O meu espanhol ​tinha-se desenvolvido muito, mas o meu mandarim era inexistente. Dois autocarros ​esperavam os doentes na pista para levá-los para hospitais. Ao lado deles esperavam ​senhores com alguma idade. Estranhei que fossem os motoristas por parecerem ​demasiado velhos, mas dirigi-me a um deles para pedir indicações sobre onde apanhar ​o comboio até Haian, o centro da nova cidade.

- Só depois do almoço, senhor. - respondeu-me o homem. - antes havia a cada 20 minutos, ​mas agora o aeroporto já quase não recebe voos… - Suspirei, preparando-me para uma ​espera demorada. - Mas pode vir connosco. Chegamos lá antes do comboio de certeza.


Aceitei a proposta e subi ao autocarro. Só quando entrei é que reparei que não havia l

ugar do condutor ou volante, apenas lugares sentados. Pensava que os transportes ​sem condutores tinham acabado, mas pelo menos aqui isso não era assim. Quando ​toda a gente já estava no autocarro, o homem segurou um microfone que fazia a ​tradução automática para espanhol:

- Bem-vindas à China, camaradas! Espero que o vosso voo tenha sido tranquilo - algumas ​pessoas riram-se nervosamente - e que estejam prontas para a última etapa da viagem até ​ao Hospital Ecosocial Internacional. O meu nome é Bolin Wu e serei vosso acompanhante nas ​próximas duas horas, até chegarmos a Nova Xangai. Como podem observar, o nosso ​transporte não tem condutor, o que descobrimos que não é comum noutros locais. Para ​acalmar os vossos receios, informo-vos que ao contrário de outras experiências do passado, os ​nossos autocarros não estão ligados à internet e não têm portanto vulnerabilidade de serem ​hackeados. O sistema de condução autónoma baseia-se em percursos programados e ​complementados com verificação permanente dos percursos por sensores e câmaras, o que ​impede acidentes. Este sistema é mais seguro do que ter uma pessoa a conduzir. Além de as ​pessoas a conduzir poderem estar cansadas ou com algum problema, com este sistema ​libertámos as pessoas de passarem o dia em atividades repetitivas e alienantes, tais como ​conduzir um autocarro no mesmo percurso vezes sem conta. - lembrei-me do meu trabalho ​como guarda-freios em Lisboa, no que parecia uma memória distante, de outra vida.


O nosso “acompanhante”, com ar de mestre ancião, de longa barbas brancas, óculos e ​uma careca reluzente, continuou a contar-nos pormenores sobre a história recente de ​Xangai. A megalópole, uma das mais antigas cidades do mundo, e a cidade com maior ​população de China até há poucos anos atrás, estava num processo de deslocação que ​durava há oito anos. A sua localização no delta do rio Yangtze tinha sido a principal ​causa para o abandono. Além do rio, as cheias marítimas e as ondas de calor

colocavam imensa pressão sob a população costeira, com um esforço cada vez maior ​para recuperar as zonas afetadas. Finalmente decidiu-se abandonar as zonas costeiras ​da cidades, mantendo ainda cerca de 4 milhões de pessoas nos distritos de Jiading e ​Fengxian. Bolin explicou ainda que na China, desde a “Revolução dos Jovens”, estava a ​haver um esforço coletivo para reduzir a dimensão das populações das cidades, ​distribuindo a população por muitos das áreas construídas nas décadas anteriores, ​algumas das quais tinham acabado vazias por causa da especulação imobiliária.


Olhando pelas janelas, Bolin explicou-nos como agora havia áreas na antiga Xangai ​permanentemente alagadas. O esforço de construir muros a proteger a cidade das ​águas dos lagos, do Yangtze e do mar, assim como de transformar partes da metrópole ​em “zonas-esponja” para combater as cheias apenas tinha funcionado durante os ​primeiros anos. Nada disso tinha parado a chamada “subsidência”. Xangai, como ​muitas outras cidades asiáticas, estava a afundar-se sob o peso da construção e da ​extração de reservas de minérios e de água doce do subsolo. Este fenómeno e a subida ​do nível médio do mar por causa do degelo acelerado do Ártico e da Antártida, levou à ​dramática decisão: deixar a cidade ser lentamente invadida pelo mar. Apontando para ​fora, Bolin explicou-nos que apesar desse esforço ainda havia pessoas muitos milhares ​de pessoas que habitavam as zonas alagadas, em barcos-casa e nas famosas docas ​móveis de contentores que flutuavam com a subida e descida das águas. A redução dos ​grandes volumes de comércio internacional marítimo e mesmo terrestre tinha deixado ​a China com dezenas de milhões de contentores vazios e sem utilização. Para resolver ​esta situação, os contentores começaram a ser reaproveitados para inúmeros fins: ​armazéns, casas, estufas, escolas, laboratórios, edifícios em geral, e para abrigo rápido

em catástrofes. Após um atentado na Barragem das Três Gargantas, milhões de pessoas ​tinham sido alojadas em contentores, permitindo gerir o realojamento dos sobreviventes ​durante os meses seguintes. Quando pedi ao homem que me explicasse melhor o que ​tinha acontecido com as Três Barragens, Bolin respondeu rispidamente que tinha sido má ​ideia relembrar a tragédia provocada por terroristas. Após este comentário, o homem ​remeteu-se ao silêncio.


Atravessámos o Yangtze na direção de Nantong e, uma hora depois, chegámos a Nova ​Xangai. A cidade estava construída em antigas zonas agrícolas, com uma arquitetura ​radical, integrada com zonas húmidas, pradarias, bosques e florestas. Para reduzir os ​riscos de subsidência, os prédios mais altos não tinham mais do que dez andares. ​Observei que várias estruturas, além dos cimentos esburacados e tijolos reciclados ​utilizavam estruturas de bambu. Havia até edifícios inteiros de bambu, que imaginei que ​não fossem casas (o frio e o calor em casas de bambu lembrou-me a história do lobo ​mau). Muitas ruas não eram pavimentadas, sendo que as que não eram solo nu tinham os ​usuais pavimentos intertravados abertos, em que uma parte é coberta e a outra deixa a ​terra ou a erva à mostra. Percorrendo a cidade por cima desse pavimento ruidoso, ​começámos a observar uma estrutura com cerca de 10 metros de altura, que sustentava o ​metro suspenso, um transporte extremamente veloz que paira sobre a cidade. Tal como ​todas as novas construções e parte da adaptação urbana na China, Nova Xangai é uma ​cidade-esponja, com os seus lagos, bosquetes, jardins e estruturas verdes conectadas ​entre si - não houve nenhuma zona da cidade em que eu tenha estado que não sentisse ​que estava numa zona verde.


Finalmente chegámos ao hospital internacional. Enquanto nos despedíamos, Bolin

aproximou-se de mim:

- Camarada, desculpe não ter continuado a conversa, mas sabe que há assuntos que não ​estão resolvidos aqui na China. Os crimes das tríades são um deles.

- Tríades?

- O crime organizado aqui na China. É possível ver a presença deles ainda em alguns locais, ​apesar de todos os seus crimes e de serem perseguidos pelo governo. Enfim, espero que não ​tenha o azar de encontrá-los. Devo ir embora, tenho de ir descansar da viagem. Até à próxima, ​tongzhi!


Despedi-me das restantes pessoas, desejando-lhes sorte com os seus tratamentos, e ​decidi procurar a sede do movimento ecomunista na cidade. Consultei o painel ​informativo dentro do hospital, que me deu o percurso até ao meu destino. Cruzei a ​cidade no metro suspenso observando os detalhes de Nova Xangai através das janelas ​e do chão transparente da cabine. Não vi asfalto em nenhuma parte. Em geral, era uma ​cidade muito clara, oscilando entre os verdes da vegetação e os brancos e amarelos ​das casas. Vários telhados tinham coberturas verdes e pequenos painéis solares e ​miniturbinas eólicas, mas fiquei com dúvidas se aquilo era suficiente para alimentar ​toda a rede elétrica. As ruas estavam bastante cheias de pessoas atarefadas, várias ​cuidavam de hortas, pintavam paredes e podavam árvores, outras circulavam em ​bicicletas simples, duplas e até triplas nas zonas pavimentadas, parecendo-me que um ​número significativo das bicicletas transportava encomendas. Muitas pessoas assistiam ​a espetáculos em diferentes locais, e eram tantas que até pensei que seria alguma ​ocasião festiva. Havia ainda estaleiros de obras um pouco por todo o lado, percebia-se ​que a cidade continuava em plena construção em construção. Finalmente

desembarquei na minha paragem, descendo para a rua mesmo à frente da sede do ​movimento.


Era um edifício modesto, com bandeiras ecomunista, comunistas e ecosocialistas à ​porta. Aqui, a organização política era uma mistura, já que aparentemente não tinham ​sido os ecomunistas a liderar a grande transformação. A porta estava aberta e entrei. ​Três mulheres jovens passavam com ar atarefado de um lado para outro, com pilhas de ​livros na mão. Cumprimentaram-me com acenos de cabeça e uma dirigiu-se a mim ​num inglês impecável:

- Está cá por causa da visita? É só à noite.

- Visita?

- Do comité revolucionário.

- Não, não é isso.

Ela poisou os livros e aproximou-se.

- Então quem é? - Estendi-lhe a mão.

- O meu nome é Alex Águas. Sou um camarada do movimento, vindo de Portugal.

- De Portugal? Estás perdido? Eu sou Chenguang. - apertou-me a mão, com tanta força que me ​magoou. Era forte, para uma mulher tão pequena.

- Não, não estou perdido. Eu estou a viajar, venho fazer entrevistas.

- Não sabia que o movimento fazia isso.

- Faz. Eu estou à procura de duas camaradas chamadas Jieling Zheng e Biyu Zheng.

- Conheço a camarada Zheng, mas não conheço a camarada Biyu.

- E onde posso encontrá-la?

- Ela não é de Nova Xangai. Podemos tentar descobrir.

- E o que é o comité que vem visitar?


- São vários elementos, heróis e heroínas da revolução, que estão a viajar pelo país para inspirar ​as assembleias locais e os grupos políticos.

- Uau. E vêm aqui?

- Não vês que estamos a arrumar a sede? Claro que vêm. Ajudas-nos ou vais ficar a olhar?

Poisei as minhas coisas a um canto e ajudei as raparigas a reorganizar as várias salas. ​Durante horas transportámos livros, panfletos, cartazes, velhos eletrodomésticos, caixas ​de ferramentas, pendurámos quadros, fizemos arranjos de flores. O meu Babel ficou sem ​bateria pouco depois de eu chegar e por isso não percebia nada do que elas me diziam. ​Assim, acabámos por nos comunicar principalmente por gestos e expressões. Eram muito ​divertidas, ou pelo menos riam-se muito. Passado algum tempo finalmente consegui ​explicar-me e pedir uma ficha para carregar o Babel. Para minha grande surpresa, elas ​apontaram-me para uma tomada elétrica, uma tomada para a qual eu não tinha ficha. ​Demorei uns 10 minutos a explicar-lhes por mímica que podia usar um indutor para ​carregar o aparelho. Uma delas, Dayiu, finalmente puxou-me pelo braço. Debaixo de um ​vaso com cactos, estava um velho aparelho, que parecia um bico de fogão de indução. ​Para minha grande surpresa, funcionava (confesso que os primeiros minutos fiquei a ​observar se aquilo não me ia cozinhar o tradutor). Horas depois, quando as arrumações ​estavam prontas, o Babel deu sinal de já estar operacional (tinha demorado três horas, ​em vez dos dez minutos do costume). Durante o trabalho da tarde, reparei que a sede ​tinha uma camarata estilo militar numa sala do fundo. Perguntei-lhes se podia ficar aí a ​dormir essa noite e elas uma vez mais começaram com risinhos.

- Só porque nos ajudaste tanto esta tarde, camarada. E vais-te portar bem porque esse é o nosso ​quarto.


Poisei as minhas malas no quarto e aproveitei para me deitar num colchão sem lençóis. Já

estava um pouco cansado e adormeci. Passado algum tempo, Chenguang sacudiu-me, ​acordando-me.

- Camarada, eles chegam em dez minutos.


O aparecimento do comité foi um espetáculo, com uma verdadeira parada a descer a ​rua, com banda e bandeiras, grandes quadros com imagens do que devia ter sido a ​revolução e com as caras, bem grandes, de várias figuras revolucionárias, umas ​recentes e outras antigas, como Mao Zedong, Che Guevara ou Amílcar Cabral, segundo ​me explicou Caihong, a terceira camarada ecomunista. Seguiu-se um fogo de artifício ​bastante impressionante. As ruas encheram-se de pessoas, que aplaudiam (umas mais ​entusiasticamente que outras) enquanto os membros do comité subiam um a um ao ​palco. Os seus discursos foram atraindo cada vez mais pessoas, até a rua estar ​completamente cheia. Os temas variavam, uns falavam sobre a longa história da China ​e como a China aguentaria mesmo num mundo novo, outros sobre a Revolução ​Comunista, e como a China tinha sido o farol do socialismo durante o pior período da ​história. Os discursos sobre coisas antigas recebiam aplausos tímidos. No final, um ​homem com cerca de 50 anos subiu. Tinha uma barba rala, vestia o tradicional fato de ​macaco verde que eu associava tanto ao ecomunismo e sorria muito. O homem, ​chamado Deng, falou sobre o derrube do comité capitalista e a nova aurora após a ​Revolução dos Jovens, de como o país era agora mais justo e muito menos destruidor, ​apesar de todas as catástrofes. A multidão aplaudia-o com entusiasmo, enquanto ele ​subia cada vez mais o tom, até arrematar com a tradicional saída de que a revolução ​nunca mais ia acabar. A multidão irrompeu a cantar e a gritar, até que finalmente ​percebi os acordes da famosa “Internacional”. Os membros do comité em cima do






palco acompanhavam a multidão com os braços sobre os ombros uns dos outros. ​Terminada a canção, entraram na sede do movimento, enquanto a multidão se manteve ​do lado de fora, cantando.


As minhas companheiras, às quais se tinham entretanto juntado vários outros jovens com ​fatos de macaco vermelhos serviram bebidas e umas entradas de massa e pasta (que ​presumi pelo aspecto que fossem diferentes combinações de insetos) aos doze ​revolucionários do comité. Todos me cumprimentaram, mas pareciam mais interessados ​em falar entre si. Também aproveitei para comer. As conversas eram feitas em pequenos ​grupos, e todas relativamente silenciosas. Terminado um segundo prato de sopa de ​vegetais e queijos, as pessoas começaram a sentar-se em cadeiras. Fui falar com ​Chenguang, pedindo-lhe que me apresentasse a alguém, se possível ao homem que tinha ​falado tão bem no fim. Ela disse-me para esperar num sofá. Lá me fui sentar, frente a uma ​mesa de café, aproveitando para folhear os panfletos que elas lá tinham deixado. Não ​conseguia perceber os caracteres, mas as ilustrações pareciam indicar como montar um ​sistema caseiro de painéis solares, embora o papel estivesse cheio de foices, martelos e ​estrelas. Do lado de fora da sede, as pessoas continuavam a cantar. Passados dez minutos, ​o homem veio ter comigo.


- Olá, camarada. Então vens da Europa?

- Sim, venho.

- Que grande viagem, como chegaste até aqui? Vieste pela rota?

- Rota?

- A nova rota da seda, a ligação entre Europa e Ásia por comboio.

- Não. Foi muito mais complicado do que isso. De barco da Europa até à América do Norte, depois

desci todo o continente e apanhei um avião até aqui.

- Um avião? Uma raridade, conseguir isso.

- Vim com doentes que vieram ser operados no hospital, num avião médico.

- Ah, já percebi. E que fazes cá?

- Estou a escrever um livro acerca da Grande Transformação por todo o mundo. E pelo que ​percebi, tu poderias ser um pessoa interessante para eu falar. Será que terias tempo para me ​dar uma pequena entrevista sobre a Revolução dos Jovens?

- Sim, claro.

- Então pedia-te por favor que me explicasses brevemente o que aconteceu.

- Bem, não sei se sabes, mas estive envolvido desde o início nos Jovens Marxistas no processo ​de transformação. Nós não lhe chamamos revolução, porque a nossa Revolução aconteceu em ​1949, há quase 100 anos. Aquilo a que as pessoas chamam de Revolução dos Jovens foi um ​processo de substituição antecipada da direção do Partido Comunista Chinês por uma direção ​de jovens comunistas também pertencentes ao partido.

- Um golpe de estado?

- Também não lhe chamaria um golpe de estado, embora haja quem o descreva assim. Enfim, ​não foi um processo revolucionário tal como é descrito na maioria da literatura de ​transformações políticas e sociais. Mas removemos a direção e mudámos drasticamente a ​política do partido. Isso significou também mudar o envolvimento social na vida política, ​recebendo os ventos do resto do mundo.

- O que é que levou então à ocorrência deste “processo”, como lhe chamas?

- O início do movimento Jovens Marxistas aconteceu nas Universidades de Renmin, de Nanjing ​e de Pequim. Sob a recomendação do Partido, foram formados grupos de estudo para ​começar a fazer leituras conjuntas de Marx, Engels e outra literatura marxista. Começámos a

fazer leituras conjuntas e, pouco depois, a procurar aplicações práticas das mesmas. Em poucos ​meses começámos a criar sindicatos estudantis, ajudámos funcionários a organizar-se e a pedir ​ajuda ao partido, quando não estavam sindicalizados, e a expandir os nossos contactos e ​conteúdos, partilhando-os com mais jovens, principalmente membros do partido. Começámos a ​receber avisos por parte da direção da faculdade, e até das nossas famílias, que quem tinha de ​organizar esses assuntos era o Partido - o que estranhámos quando nós mesmos pertencíamos à ​juventude do Partido, e quando o que tínhamos feito era tornar prático aquilo que nos ​recomendaram que lêssemos. Alguns de nós chegaram mesmo a abandonar a faculdade e ir ​trabalhar para fábricas, proletarizando-se e começando a organizar trabalhadores, as massas. A ​informação que nos chegou, embora a conhecêssemos em segunda mão, era devastadora: o ​desvio capitalista do partido era monumental. Nessa altura os Jovens Marxistas foram proibidos e ​vários dos livros em que nos tínhamos inspirado começaram a desaparecer das bibliotecas das ​escolas.

- De que livros estamos a falar?

- De vários escritos de Marx, o Grundrisse, o Trabalho Assalariado e Capital, a Crítica do Programa ​de Gotha, Feuerbach… E desapareceu quase tudo de Lenine, para não falar dos hereges como ​Gramsci, Trotsky, Luxemburgo, Bellamy Foster ou Federici.

- Então eles proibiram literatura comunista?

- Não proibiram abertamente, só dificultaram muito o acesso, tanto em papel como online. Quase ​conseguiram desmantelar os Jovens Marxistas, mas tanto na China como em Taiwan, Hong Kong e ​Macau nós mantivemos atividades clandestinas e contactos. A nossa rede era muito mais informal ​e maior do que eles pensavam. Alguns de nós, incluindo eu, fomos proscritos durante alguns anos, ​não podíamos ter cargos dentro do partido, tínhamos créditos sociais cortados, e eram-nos ​exigidas confissões, auto-críticas de forma muito regular. Muita gente não aguentou. Mas não ​fomos expulsos do partido. Entretanto, outros grupos da juventude começaram a olhar de forma

crescentemente crítica para a direção do partido. Eram sempre minorias, até porque a maior ​parte dos jovens no partido estava ali porque era a melhor maneira de ter uma carreira ​profissional atrativa na altura. Mas a insatisfação ideológica não parava de crescer, até no ​básico da doutrina comunista, que era profundamente contraditória com a maneira como a ​China era gerida. Era-nos sempre dito para compararmos a China com o resto do mundo, e em ​geral parecia que até estávamos melhor, mas havia cada vez mais desigualdade, repressão e ​opressão. Nessa altura havia um grande nível de desemprego, em particular desemprego ​entre jovens, e a insatisfação começou a ser também material. Com a forte poluição e o clima ​cada vez mais quente, era-nos dito para ignorarmos as acusações de outros países acerca do ​papel da China na crise do clima. Era-nos dito que era o imperialismo americano e europeu a ​querer prejudicar-nos e colocar em nós as suas culpas.

- E não era, também em parte?

- Em parte sim, mas o comunismo chinês tinha responsabilidades. Grandes responsabilidades. ​Outros já discutiam sobre a doutrina do “Socialismo com características chinesas”, mas na ​juventude do partido a piada mais recorrente era que se devia chamar “Capitalismo com ​arroz”. Nesta altura, a governação era um grande teatro. De vez em quando o Comité Central ​ou o Secretário Geral falavam sobre a China como Civilização Ecológica e até discursavam ​acerca de “Ecosocialismo”. As características desse ecosocialismo chinês eram ser capitalistas.

- Vocês nessa altura estavam em contacto com os elementos que iam ser ecomunistas?

- Ainda não. Eu pelo menos não estava. Mas estamos ainda a falar de antes da pandemia de ​Covid. A partir do Covid, tudo mudou. A vida tornou-se uma prisão frequente para centenas de ​milhões, em particular estudantes e trabalhadores. A política de Covid-Zero do governo ​tornou-o mais impopular que nunca. Começou uma enorme lenta e constante desestabilização ​e desmoralização da população. Ainda estávamos a entrar e a sair de confinamentos estritos



quando aconteceu o ano 1.8 e as grandes ondas de calor. Morreram 400 mil pessoas confinadas ​em casa, mas também nas fábricas e nas prisões. Xingiang atingiu os 55ºC esse ano. Num ​primeiro momento, parecia que o governo ia finalmente ter uma resposta à altura: fez um acordo ​de paz com Taiwan e começou negociações para acabar com a escalada no Mar da China, ​reconhecendo que não tínhamos recursos para desperdiçar com essa realidade e com a ​catástrofe no clima. Quando foi fundado o Tratado Mundial do Clima, a China foi dos primeiros ​membros. Mas ainda não tinha acabado tudo de terrível que esse ano trouxe. Centenas de ​milhões de peixes mortos deram à costa em vários locais da China e algumas populações ​costeiras comeram-nos para complementar as suas dietas. Embora a maior parte dos peixes ​tivesse morrido de falta de oxigénio, milhões de peixes estavam infectados com toxinas. ​Morreram centenas de pessoas contaminadas. Foi nessa altura que começaram os protestos.

- Manifestações?

- E não só. Muitos jovens operários, impedidos de fazer greve, começaram a faltar ao trabalho de ​forma regular. Começaram roubos sistemáticos de armazéns alimentares. E havia manifestações ​diárias, embora a imprensa se esforçasse ao máximo por escondê-las. Foi nessa altura que ​retomámos a atividade dos Jovens Marxistas. Nessa altura, sim, já estávamos em contacto com os ​ecomunistas, embora nunca nos tenhamos juntado formalmente a este movimento. Eles ​forneceram-nos algum apoio, nomeadamente na área de hacking e sabotagem.

- Havia alguém dos Jovens Marxistas nas Asas de Borboleta?

- Como sabes acerca das Asas?

- Faz parte do que estou a investigar. Sei que havia membros aqui.

- Nós não falamos sobre isso. - ele estava mesmo desconfortável - Peço-te que continuemos.

- Sim, claro.

- O gatilho para o processo de transformação foi o surto de MersCovid bovino. Quando o alarme ​foi dado no Brasil, já tinha chegado carne a várias cidades chinesas, infectando dezenas de

pessoas. A reação do governo foi fechar o país. Só que já ninguém aceitava. Os protestos de ​rua tornaram-se gigantescos, liderados por jovens (além de nós, havia outros, mais ​despolitizados). Nós tínhamos alguns aliados dentro do Comité Central, que nos iam ​informando sobre o que se ia passar. O governo apelava nas redes sociais e na imprensa ​oficial a que as pessoas idosas denunciassem vizinhos e familiares envolvidos em actividades ​subversivas. Foi criado um sistema de crédito social acima dos outros: quem fosse detido ​perdia acesso à deslocação em transportes, mesmo dentro das cidades. O objetivo era ​desmobilizar ao máximo, interditando o acesso a várias atividades e isolando-nos uns aos ​outros, já que se tinha tornado muito difícil deter um número significativo de dirigentes. Mas ​nós já esperávamos que medidas como essas acontecessem e estávamos preparados. Nessa ​altura, conseguimos hackear as apps do “Olho Celeste” e lançar milhões de denúncias falsas, ​fazendo com que a polícia se perdesse em buscas inúteis, enquanto mantínhamos os protestos ​móveis e cada vez mais disruptivos. Conseguimos sabotar as redes de vigilância, destruindo ​milhares de data Centers e de cabos de ligação internos. As 800 milhões de câmaras de ​vigilância espalhadas por todo o país tornaram-se cegas. Nessa altura, o governo declarou Lei ​Marcial e mandou o Exército de Libertação Popular para as ruas. Embora tenham saído com ​os seus tanques e helicópteros, as forças armadas hesitaram em reprimir o movimento. Havia ​muita insatisfação entre militares porque o Comité Central os vinha expulsando e ​disciplinando a grande ritmo nos anos anteriores. Além disso, tinham discordado da decisão ​certa de desescalar os conflitos em Taiwan e no Mar da China. Contámos ainda com uma ​aliança surpreendente para levar a cabo a nossa ação: a tríade Sun Yee On.

- A máfia?

- Um grupo de crime organizado baseado em Hong Kong.

- Mas vocês aliaram-se com eles?


- Na verdade, o que conseguimos foi inverter a sua aliança com o Comité Central. Eles operavam ​em articulação com o partido há alguns anos: as tríades, além de Sun, eram usadas para ​repressão política tanto na China continental como em Hong Kong, Taiwan e Macau, além de ​protegeram partes da Rota da Seda. Poucas semanas antes de os convencermos a apoiar-nos, ​eles estavam a perseguir-nos ativamente. Não foi um acordo fácil, mas foi decisivo. A Sun Yee On ​foi essencial para convencer os generais da Comissão Militar Central a deixar-nos remover o ​Comité Central pacificamente.

- Mas vocês tinham condições de fazê-lo sem ser pacificamente?

- Teria sido muito difícil, mas teríamos avançado na mesma.

- No entanto, não foi preciso.

- Não, naquele momento não. Claro que nos anos seguintes nem tudo correu bem, mas já tinha ​sido operada a grande mudança a nível político aqui na China.

- Quando dizes que não correu tudo bem, falas do atentado nas Três Gargantas?

- Sim, entre outras coisas. Mas quando tivemos de reprimir as tríades elas responderam com ​muita violência. Não todas.

- E como foi a remoção do Comité Central?

- Bem, começou com marchas vindas de toda Pequim em direção a Zhongnanhai, a sede do ​poder, onde iam reunir os 360 membros do Comité Central. Pelo menos oito milhões de pessoas ​vieram dos mais de 40 pontos de encontro de todos os lados da cidade, caminhando rumo à ​reunião.

- E a polícia?

- A polícia concentrou-se toda em defender Zhongnanhai. Penduraram-se ao longo dos ​quilómetros de muros vermelhos, armados e apontando aos manifestantes. Mas por outro lado, ​as forças armadas não vieram defender o comité central. E nós também estávamos armados, ​tanto com armas de fogo como com drones. Houve uma forte tensão no frente a frente entre

polícia e manifestantes, que durou cerca de uma hora. Enquanto isto acontecia, um grupo ​especial tomou a sede da CCTV, perto da Cidade Proibida, que passou a emitir as nossas ​exigências ao Comité Central. Já não nos chamávamos Jovens Marxistas mas sim Liga da ​Juventude Comunista, cuja direção tínhamos ganho na semana anterior. Denunciámos as ​cedências do Comité Central ao capitalismo e à catástrofe ecológica, a sua perseguição do ​povo chinês e da juventude, e exigimos o exílio imediato de 330 membros, incluindo o ​Secretário-Geral, todos os membros do Politburo e os elementos não-militares da Comissão ​Militar Central. 330 novos membros, todos da Liga da Juventude Comunista, juntar-se-iam ao ​Comité Central Provisório. Antes, o membro mais novo do Comité Central tinha 51 anos, agora, ​o mais novo tinha 17!

- Por isso a Revolução dos Jovens.

- Sim, também foi uma transformação geracional e de género. As mulheres passaram a ser a ​maioria do Comité Central. Devia ser a Revolução das Jovens!

- E eles aceitaram o exílio?

- Os que estavam em Zhongnanhai partiram todos, incluindo o Secretário-Geral e todos os ​membros do Politburo. Houve vinte e dois que não estavam presentes, que se concentraram ​todos do Norte, e resistiram durante meses. Mas era pouco consequente. A transformação ​tinha sido conseguida.

- Para onde foram os exilados?

- Para diferentes países. O Politburo acabou todo na Nova Zelândia, os restantes espalhados ​pela Índia, Irão, Uzbequistão. Fomo-los deixando regressar aos poucos. O antigo Secretário-​Geral faleceu na sua antiga casa em Pequim há dois anos atrás.

- E aquela imagem famosa da Revolução dos Jovens, onde é?

- A da troca dos emblemas nacionais?


- Sim.

- É no edifício onde reunia o Comité Central, no final desse mesmo dia. Eram duas camaradas ​Jovens Marxistas a derrubar o antigo emblema do “Socialismo com características chinesas”, ​colocando no seu lugar o emblema nacional do comunismo ecológico. São Shi Xianggu e, claro, ​Jieling Zheng.

- Aquela é a Jieling Zheng?

- Já ouviste falar?

- Sim, mas não a conheço. Estou aqui na China para encontrá-la e entrevistá-la.

- Para isso terás de ir a Pequim. - Começou a levantar-se, pondo a camisa para dentro do cinto.

- Sim, é esse o meu plano. E conhece a camarada Biyu Zheng?

- Nunca ouvi falar dela. - Estendeu-me a mão.

- Boa sorte, rapaz. Se precisares de ajuda com alguma coisa contacta-me. - Passou-me um cartão ​para a mão com o seu nome e contactos: Deng Ming, Comissário Político Permanente, Membro do ​Politburo.


邓明

中国生态社会共产党中央政治局委员

环境修复负责人

常务政治委员

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dmpcomm@gov.cn


Quando o comité revolucionário saiu do edifício, a multidão começou a cantar mais alto, ​as bandeiras foram novamente levantadas e a parada seguiu rua abaixo, já sob noite ​cerrada.




os horrores da década

os horrores da década

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De: liavgoms@voo.com

Para: alexaguas@voo.com

Data: 8 de dez. de 2042, 10:02

Assunto: Caixas desaparecidas


Olá, Alex


Espero que estejas bem e seguro.


Estou de volta a Lisboa. Cheguei a casa e alguma coisa não me ​parecia certa. Acabei por perceber que faltam algumas caixas ​que eu tinha organizado da última vez que aqui estive. Falei com ​a Mei e não ficou nada no Alentejo. Não percebo o que aconteceu.


Envio-te o último levantamento de informação, documentos da ​tua mãe, de antes da Grande Transformação, e informação sobre ​várias coisas chocantes que aconteceram principalmente nos ​anos 20 e 30.


António está bem. Tem chorado mais do que é normal, penso ​que sejam mais dentes a crescer.


Quando tiveres tempo, avisa se estás vivo.


Lia.


Enviei vários documentos e artigos ao Alex, a maior parte dos quais escritos e publicados entre ​2025 e 2030, embora nem todos tivessem datas. Muito do que li eram novidade para mim, ​algumas verdadeiramente aterrorizantes, outras eu pensava que eram apenas invenções ou ​dramatizações. O final da década de vinte foi realmente terrível, nem percebo como foi possível a ​Humanidade atravessar aquilo sem se destruir completamente.


X confirma que o algoritmo apagou mais de 80% das notícias acerca das ​mortes no último verão


A denúncia por parte da ONG Communicational Liberty League (CLL) sobre o ​desaparecimento de grande quantidade de conteúdos na plataforma X ligados às ​mais de 8 milhões de mortes no passado verão foi confirmada pela empresa. A X ​justificou o fenómeno com a opção do algoritmo de “privilegiar conteúdos positivos ​e esperançosos perante a tragédia humana que todos sofremos”, declarou a porta-​voz Jessica Alcaraz. A CLL e outras ONGs, numa carta conjunta, repudiaram as ​declarações da plataforma, revelando durante a análise que “a mesma plataforma ​que apagou mais de 80% das notícias acerca das mortes este verão, promoveu ​ativamente os conteúdos que negavam a existência das mortes e mesmo das ondas ​de calor”, que levaram inclusivamente à organização de manifestações e protestos ​contra jornalistas e órgãos de comunicação social que reportavam a catástrofe. A ​plataforma X não comentou a carta das ONGs.


As extintas autoridades do Ato dos Serviços Digitais (DSA) da União Europeia seriam ​as principais responsáveis para atuar neste caso, mas a CLL denuncia que o seu ​desaparecimento tinha como objetivo deliberado entregar a distorção dos factos e ​da realidade à vontade das grandes empresas de Big Tech como a X, a Alphabet, a ​Amazon, a Apple, Meta e Microsoft, “o que aconteceu uma vez mais neste caso”.


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Abolicionistas do aborto incendeiam clínicas e maternidades - Dezenas de mulheres ​grávidas e bebés morrem


A organização Abolishionists Revenge reivindicou a autoria dos mais de 60 ataques a clínicas ​de saúde e maternidades nos Estados Unidos e Canadá que ocorreram durante a última ​semana. Walker Hunter, líder do movimento na clandestinidade, explica que os “atos ​sagrados” levados a cabo na última semana visam levar ao fim do “holocausto do aborto” e ​que os elementos que levaram a cabo os atentados, vários dos quais se imolaram dentro dos ​estabelecimentos de Saúde, “sentam-se neste momento à mesa do Senhor”.


Movimentos pró-vida e pró-escolha denunciaram os atentados, que mataram 23 mulheres e ​11 crianças, ferindo centenas de outras pessoas. Lucy Limbaugh, da Life Action, afirmou que ​“os extremistas abolicionistas estão completamente desequilibrados”, que “o avanço rumo à ​proibição do aborto nos Estados Unidos é imparável”, esperando que as autoridades ​detenham os organizadores destes crimes, que “prejudicam seriamente a causa da vida”. ​Andressa Roberts, coordenadora da Rede de Apoio à Saúde Maternal exilada no Canadá, ​denunciou os abolicionistas como “a vanguarda do movimento pró-vida, que mais não é que ​uma seita extremista que se infiltrou nos mais altos cargos políticos e jurídicos dos Estados ​Unidos”. Roberts apelou a todas as mulheres a organizarem-se e a formar uma resistência ​feminista, “armada se necessário”, para defender a auto-determinação corporal feminina e ​acabar com os femicídios que ocorrem de forma reiterada, “justificados sem excepção por ​textos escritos há milhares de anos atrás por homens que consideravam as mulheres bestas ​de carga, parideiras ou ninfetas para desflorar”.


Até ao dia de ontem, cinco atentados na Polónia, Itália, Paraguai promovidos por ​movimentos abolicionistas imitaram os atentados na América do Norte.


Violações e femicídios explodem na Europa Central - migrantes latinos são ​responsáveis


A ascensão de violência contra as mulheres tem sido denunciada pelos governos centristas ​europeus, e atribuída às vagas de migrantes do Sul da Europa que têm fugido ao calor e aos ​incêndios, beneficiando da benevolência dos governos patrióticos na Alemanha, Áustria e ​Polónia. Na semana passada, 14 homens morenos provenientes de Espanha e Portugal foram ​linchados nas ruas de Dresden por cidadãos organizados na Legião da Pátria, acusados de ​violarem crianças alemãs. O recém-empossado chanceller Bachmann alertou para a ​necessidade de resolver a “Questão Mediterrânica”. Num live no X, Bachmann disse que ​“depois de banirmos os islamismos, não podemos assistir especados à invasão das hordas ​vindas do Sul, que são uma ameaça para os verdadeiros alemães, que violam as nossas ​mulheres e crianças, roubam os nossos empregos, trazem doenças, drogas e a indolência ​latina.”. Eva Lamba, a líder da Sororidade Ariana, organização feminina austríaca, relembrou ​que “as nossas mulheres devem evitar contactar com homens e mulheres escuros, que ​contaminam o nosso sangue e a nossa pele.” Lambda apelou ainda ao governo que começasse ​um processo de controlo de natalidade, já que as mulheres mediterrânicas, em particular as ​ibéricas, podem, se deixadas fora de controlo, “começar a reproduzir-se como cadelas”.


Ontem mesmo, o governo polaco tornou público o apelo “à proteção da pátria e da família”, um ​projeto que pretende recrutar jovens entre os 13 e os 18 anos, “gente sã e sem ligações ​políticas” a formar os corpos de proteção pública, cujo objetivo é a manutenção da ordem ​pública, a defesa das fronteiras e a proteção da mulher polaca, tão acossada por “estrangeiros, ​lésbicas e transsexuais”.



Redes sociais, ódio e violência


A organização de violência coletiva levada a cabo por jovens nas ruas de Inglaterra tem-se ​realizado principalmente através de redes sociais como WhatsApp, Gab e MeWe. “La ​Masacre” é o nome dado ao mais recente ataque aos bairros ocupados na última vaga de ​espanhóis e latinos a chegar a Londres. Esta tragédia, que levou à destruição de mais de ​200 lojas e a pelo menos 40 mortes incluindo crianças, não foi um acidente, mas sim um ​ato deliberado, criado por grupos de jovens nacionalistas britânicos. Este plano começou ​com a divulgação em todas as diferentes redes sociais da “notícia”, amplificada pelo ​tablóide “The Sun”, de que a comunidades hispânicas estariam a planear a declaração de ​cidade livre do bairro de Lambeth. Foram convocadas reuniões para essa noite em grupos ​fechados nas redes sociais e uma multidão de 300 hooligans armados de bastões e facas ​desceu durante de madrugado ao bairro, bloqueando ruas com contentores e carros ​queimados enquanto entrava dentro de estabelecimentos comerciais e os destruía, ​atacando trauseuntes na rua. Outros elementos desta organização política atacaram ​comunidades hispânicas e muçulmanas em Birmingham e em pequenas cidades do ​Lancashire.


O apelo de organizações humanitárias ao governo para que feche o jornal The Sun e trave o ​acesso às redes sociais utilizadas para coordenar estes ataques foi rejeitado pelo governo. ​Starmer declarou que “a liberdade de imprensa é essencial, e não vamos impedir a cidadania de ​aceder a esta informação apenas porque alguns maus elementos utilizaram estas ferramentas ​civilizacionais para avançarem de forma oportunista a sua agenda política”. A British Hispanic ​Federation diz-se estarrecida com os ataques e com a resposta governamental, apelando aos ​cidadãos hispânicos a que organizem grupos populares de auto-defesa contra novos ataques ​apelidados pelos mesmos como “racistas, arcaicos e mesmo nazis”.

Cultos da morte


156 homens, mulheres e crianças morreram na Roménia, depois de um pastor evangélico tê-los ​encorajado a jejuar até à morte para "encontrar Jesus". Os corpos dos mortos foram encontrados ​debaixo das tábuas da igreja e em duas valas numa aldeia no nordeste da Roménia, onde estava ​sediada a Igreja Universal dos Últimos Dias. A maioria dos corpos encontrados mostrava os sinais de ​morte por inanição, embora a maior parte das crianças tenha sido envenenada ou estrangulada. O ​Pastor Radu Bogdan, que liderou o suicídio em massa, foi detido na Moldávia, em outra igreja da ​mesma confissão.


Os novos movimentos religiosos apocalípticos cristãos e de outras fés têm atraído pouca atenção ​mediática, focada no extremismo religioso islâmico acusado de promover o terrorismo no território ​europeu. O governo romeno, em linha com vários governos europeus, tem fechado as dezenas de ​mesquitas no país, enquanto proliferam cultos religiosos, seitas políticas e apocalípticas, que olham ​para o caos climático e a defesa contra migrantes como um sinal do fim da sociedade.


O incidente abriu uma nova ruptura na sociedade romena, em particular entre cristãos e católicos, ​embora as já habituais acusações de que são falsas notícias tenham voltado a surgir. A união de ​sindicatos pede ao governo para olhar para todas as religiões com incubadoras de extremismo e de ​violência.


Fiquei com a cara lavada de lágrimas enquanto ia lendo e fotografando estes documentos. A ​Marta tinha ainda feito uma colagem de notícias, em particular sobre imprensa e redes ​sociais. Foi a primeira vez que eu percebi o seu interesse pela crise da comunicação. E ​terminei com um artigo assinado pela própria, alertando para a inação revolucionária ​perante a extrema direita e o seu domínio sobre a comunicação.


Massas, Vanguardas e outros Hidratos de Carbono


Por Marta Estêvão


Comunicar não é uma atividade abstrata. Com a massificação da produção de material literário e ​com a conquista da vitória da alfabetização dos pobres do mundo, tornou-se essencial que o poder ​da informação fosse desmantelado. Porque aceitariam os donos do mundo partilhar connosco

informação essencial para compreendermos o mundo em que vivemos e, consequentemente, as ​amarras que criaram para impedir-nos de construir um futuro igualitário? Mais, porque ​permitiriam que compreendêssemos a catástrofe que eles construíram? Era importante que saber ​ler fosse o mais inútil possível.


Comunicar produz resultados materiais. Não comunicar produ-los também. Existe um debate longo e ​contínuo ao longo da história da esquerda mundial, acerca de como construiremos o mundo que ​queremos. Arriscamos agora ou ganhamos força para arriscar mais tarde? Ou podemos até ir só ​ganhando força até o capitalismo desistir porque é menos favorável ao conjunto da humanidade? É um ​debate que levou a profundas divisões entre o campo de quem trabalha, entre o campo das feministas, ​entre o campo das lutas de libertação (aqui muito menos do que nos casos anteriores). Mesmo no campo ​de quem não considera que se deve esperar, sucede-se o debate acerca da transformação. O primeiro ​obstáculo sobre esse debate tem que ver com violência. Temos nós legitimidade para exercê-la? Mesmo ​se for para responder à violência que tão eficazmente é exercida sobre nós? Quais são os limites da ​violência? Sermos qualificadas de terroristas não pode seguramente ser um desses limites, porque já o ​éramos quando apenas fazíamos manifestações, quanto mais quando evoluímos para bloqueios, ​invasões ou sabotagens, mesmo sem ferir qualquer ser vivo. A maneira como a violência é comunicada é ​poderosíssima, embora todas e cada uma das instituições que hoje gerem o capitalismo tenham saído ​de processos violentos. Não teria havido um só parlamento ou assembleia representativa sem guerras ​civis, decapitações, defenestrações e, claro, grande mortandade do lado dos pobres, dos camponeses, ​dos trabalhadores. Não haveria um só sindicato ou associação que não fosse de aristocratas se um ​número simbólico de aristocratas não tivesse sido passados a fio de espada, de forquilha ou de ​mosquete. Ao longo da história a violência sempre foi a principal arma política e os de baixo sempre ​foram desproporcionadamente pacíficos perante a brutalidade das elites, primeiro aristocráticas, depois ​burguesas. O levantamento violento contra as elites, fosse de trabalhadores contra patrões, fosse de ​revolucionários contra governos, fosse de povos colonizados contra colonos, sempre, sempre, sempre

mereceu a mais bárbara resposta violenta, em alguns casos até ao desaparecimento de povos ​inteiros. A lição aprendida em geral é que é melhor ter cuidado e só arriscar quando há as melhores ​condições possíveis para ganhar.


Chegamos então à fase da discussão entre massas e vanguardas. Qual é a melhor maneira de ​organizar uma revolução? A teoria de que só um grande movimento popular pode derrubar um ​governo ou um sistema, a teoria de que só podemos ganhar com “massas” ignora algumas questões-​chave. A primeira é simples: isto é uma caricatura. Um sistema não vai fazer uma luta num campo de ​batalha com uns milhões para um lado e outros milhões para o outro, chocam e no fim quem sobrar ​ganhar. Um sistema é uma rede de alianças, de infraestruturas, de histórias e de sítios que depende ​de um enorme alinhamento para se manter em funcionamento. Muito mais que pela sua real ​capacidade de violência, o sistema capitalista hoje depende quase da capacidade de fazer as ​pessoas não perceberem o mundo em que estão, de impedi-las de reagirem através de uma ​avalanche de informação e desinformação com que são frequentemente bombardeadas. Outra ​questão-chave prende-se com a ideia de que as massas (cem, milhão, um milhão, quem decide ​quando já são massas suficientes?) só se juntarão a um grande movimento ou a uma ação ​revolucionária se estiverem completamente de acordo com táticas, estratégias, políticas e ideologias ​dos movimentos. Esta, mais que uma caricatura, é um sketch de comédia. A ideia de que as pessoas ​não compreendem momentos de ruptura na sociedade e arriscam mudar só pode ser beneficiada ​pela bonacheirona complacência de quem criou estas formulações para pode estar quieto. A terceira ​questão-chave prende-se com o tempo. Uma revolução não é um dia, um dia em que alguém toma ​um parlamento ou entra numa indústria e toma conta daquilo. Uma revolução é um processo, longo ​provavelmente de décadas. Um processo que precisamos que continue a avançar. Se quiser apenas ​despejar o romantismo revolucionário que tantos dirigentes de pacotilha usam para recrutar jovens e ​conformá-los à inércia, posso falar-lhes do Granma e de quantos iam nesse barco que aportou em ​Cuba, posso perguntar-lhes pelo número de bolcheviques em 1905. Eram massas ou vanguardas?

Muitas revoluções foram derrubadas, mas foram-no tanto as iniciadas por massas como por ​vanguardas. Por massas até por vezes nem arrancaram, como na Alemanha da Primeira Guerra ​Mundial, não foi? A discussão sobre massas e vanguardas é um artifício para a inação e só tem ​que ver com comunicação. Foi-nos comunicado tantas vezes que é impossível suceder, que a ​teoria política atual é nem sequer tentar.


Mas a extrema-direita não está presa exatamente nos mesmos prurido. Primeiros, porque ​reivindica para si mesma o direito ao uso da violência e a emprega sem hesitações ou labirintos ​morais. A extrema-direita compreende a luta de classes, representa as classes dominantes e ​utiliza o posicionamento moral das classes dominantes sobre as classes oprimidas. Mesmo que ​utilize parte dessas classes oprimidas para oprimir o resto, utiliza a moralidade de classe ​dominante. Foram-lhe entregues de forma direta ferramentas do sistema. Há hoje uma profissão ​de ser fascista - é profissão é polícia. A exangue imprensa não consegue reagir à dupla pressão ​das redes sociais e da normalidade de barbárie, tropeçando em si mesma sem parar e ​conseguindo ser odiada e desprezada por toda a sociedade, exceptuando uma finíssima fatia de ​intelectuais centristas idealistas. As redes sociais, por outro lado, pertencem sem qualquer ​questão à extrema-direita, que as usa de forma absoluta, embora o bombardeamento ​permanente possa ter efeitos contrários aos desejados. A sucessão de deepfakes produzidos por ​IA para provocar indignação e violência está a perder força, mas feriu severamente a imagem e o ​vídeo como fonte de informação, que eram o que sucedia ao texto como ferramenta principal.


A inação à esquerda não podia senão ter criado os movimentos Catastrofista e Apocalíptico, ​transformados em grande medida em expressões artísticos, uns abandonando-se à derrota e à violência ​estética, enquanto outros optaram pela destruição artística como obra de arte máxima durante a ​destruição da sociedade. Perante a ausência de audácia, só sobra hedonismo e situacionismo para lidar

com o desespero e a impotência.


Há escolhas estratégicas a fazer. Debates sobre massas e vanguardas são um excelente alerta: quem ​os tem e tenta impor informa-nos que só conta agir se não houver perigo ou depois do perigo passar. ​Mais que usarem comunicação, não conseguem escapar a ela e pensam que podem usar as ​ferramentas do capitalismo contra o capitalismo, como tantas décadas tentaram nos parlamentos. ​Será tarde demais quando perceberem que a infraestrutura crítica de comunicação é tão capitalista ​como a indústria fóssil e tão capitalista como a assembleia da república, o Senado ou a corte do rei. E ​que todas têm de ser destruídas, e não num campo de batalhas napoleónicas.


Surge no entanto um problema. Nestes tempos de saturação de carbono na atmosfera, começa a ​haver sérios sinais de que os hidratos de carbono de que a classe trabalhadora necessita - sejam os ​miseráveis pães brancos da Bimbo ou excelentes massas italianas - estão em declínio. E se com ​comida na barriga ainda se produzem formulações alienadas para justificar não fazer uma ​revolução, sem comida na barriga talvez a falta de nutrientes se torne o principal obstáculo material ​ao movimento.


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Finalmente, encontrei um documento interessante que explicava a mudança das horas já ​depois da Grande Transformação. Já nem me lembrava da confusão que eram os horários ​anteriores. E relembrou-me ainda do novo mês que passará a existir daqui a dois anos, ​deixando-me a questão: quando é que eu vou celebrar o meu aniversário, que é a 31 de ​Janeiro?


Velho horário

Novo horário

João Camargo + Nuno Saraiva

versión en español

prólogo

Según el WCS, el Servicio Mundial del Clima, que recopila y publica estadísticas meteorológicas, atmosféricas y climáticas de todo el mundo, las emisiones de gases de efecto invernadero en 2041 fueron de 24,4 gigatoneladas de dióxido de carbono equivalente, volviendo a los niveles de emisiones globales de 1970. El objetivo del Tratado Mundial del Clima es que para 2050 las emisiones sean, al menos, la mitad de eso.


La concentración de dióxido de carbono en la atmósfera es de 430 partes por millón y ha disminuido lentamente en la última década.


Hay 7.500 millones de habitantes en el planeta.



La temperatura media global del planeta en 2041 fue de 15,2 ºC, lo que significó un aumento tras tres años consecutivos de descenso. Es decir, que estuvo 1,4 ºC por encima del nivel de la época preindustrial. En 2042, la temperatura es aún superior a la del año pasado.


En las últimas décadas, hemos alcanzado los 15,6 ºC, la temperatura más alta registrada en el planeta en los últimos 120.000 años, probablemente la más alta en 3 millones de años o más.



Lisboa


Alexandre recuesta la cabeza en el regazo de su compañera, Lia. Están en su casa de la Rua da Cruz de Santa Apolónia, a orillas del río Tajo. Lia está embarazada de siete meses.


–António, si es niño –dice Alex, cuyo padre, fallecido hace dos años, se llamaba igual.


–¿Y Marta si es niña?


–No. Marta no.


–¿Por qué no? Era el nombre de tu madre –responde Lia, asombrada. Sus padres siguen vivos, pero Alex perdió a los suyos en la última década. Lia sabe que los padres de Alex eran militantes eco-comunistas desde el principio del movimiento, pero Alex no suele hablar de ello.


–Si es una niña podríamos llamarla Carolina. O Catarina.


–A mí me gusta mucho el nombre de Marta. Además, sería un homenaje a su abuela.


–¿Un homenaje? ¿A quién estamos homenajeando?


–¿No era una revolucionaria del movimiento? ¿Una organizadora que ayudó en el Gran Cambio?


–Puede ser. Pero realmente no lo sé. Sé lo que mi padre hizo aquí, pero nunca me dijo lo que ella hizo después de irse. Recuerdo que nos dejó cuando yo tenía 15 años y sólo la volví a ver una vez. Y esa vez no me dijo casi nada. Diez años sin llamadas, ni vídeos, ni cartas. Sin mamá. Nada, hasta que llegó la noticia de que había muerto. Su funeral estaba lleno de gente que no conocía.


–¿Y no quieres saber nada más?




–Pues… no. Tengo otras cosas en que pensar. Ella tomó sus decisiones y yo no formé parte de ellas. Por suerte mi padre se quedó. Se quedó por mí. Y fue muy importante en todo lo que pasó aquí, aunque nunca quiso que nadie le hiciera un homenaje. –Una lágrima corrió por la mejilla de Alex–. Su partida también lo destruyó y lo amargó, sobre todo hacia el final de su vida.


–Está bien, mi amor. A mí también me gusta Carolina. Incluso… ¿Antonia? –Lia le besó la mano y él sonrió con una mueca–. Pero creo que tienes que saber lo que pasó.


–Lo intenté durante años, pero mi padre nunca me ayudó.


–El bebé merece conocer la historia de su familia.


–Quieres saberlo tú, ¿verdad, chismosa? –se rió.


Lia palmeó el hombro de su compañero.


–Sí, yo también tengo curiosidad y quiero saberlo. Si fuera mi familia, seguro que no pararía hasta averiguarlo todo.


–Me lo pensaré. Quizá después de que nazca el bebé.


–Piénsalo. Me encantaría.


En mayo de 2042, nació António.



Computer Screen
  1. fatima

De: alexaguas@voo.com

Para: fidrissi@nhope.ma

Fecha: 23 de mayo de 2042, 06:20

Asunto: Re: Mis condolencias por lo de tu padre


Salam, Fatima.


¿Cómo estás? Hace tiempo que no hablamos. La última vez fue cuando murió mi padre, cuando tuvimos aquella charla por Zoom, ¿te acuerdas? Espero que estés mejor del dolor, estaba preocupado por ti. La verdad es que estáis todos bastante fastidiados para la edad que tenéis. Espero que te estés cuidando y que la familia también esté bien.


Tengo grandes noticias. Hemos tenido un bebé, un niño al que hemos llamado António, como su abuelo. Estoy muy contento y sólo siento que mi madre y mi padre no estén aquí para verlo, seguro que estarían muy felices y orgullosos. Os enviaré un vídeo. Es muy tranquilo y duerme muy bien. Nació hace 10 días.


Te diré por qué te llamo. Lia siempre ha tenido mucha curiosidad por mi madre, por mi padre y por vuestras acciones y aventuras. Cuando estaba embarazada revisamos las cajas de mamá y me sugirió que escribiera sobre lo que había pasado en las últimas décadas, para poder contárselo al niño cuando sea mayor, para que pudiera conocer a sus abuelos.


Cuando me lo dijo, me quedé un poco indeciso, porque a papá no le gustaban esos tratamientos de «héroe» que a veces le daban, odiaba las ceremonias y sólo quería que le dejaran en paz. Y con la enfermedad empeoró. Yo no quería escribir, aunque ella insistía. Pero cuando vi a António por primera vez, algo cambió. Es igualito a mi padre, Fatima.


Fui a buscar imágenes suyas, de cuando era un bebé, y las encontré en un viejo disco con fotos escaneadas. Son iguales, el viejo y el niño: los ojos, la boca, la sonrisa, aunque la nariz es de Lia. En las cajas de mamá encontramos revistas, artículos, escritos por ti, por papá, por Sukumar, por Stephanie... Y fotos tuyas.


¿Tienes datos de contacto de estas personas? En otra unidad tenía también vídeos, fotos, recortes, noticias e informes donde aparecían cosas de Última Generación, de Mundo Nuevo. Me di cuenta de que hay muchas cosas que no sé. Recuerdo algunas cosas, por supuesto, pero aquí falta mucha información. Y también falta comprender el orden en el que sucedieron los hechos.


Por eso te envío este correo.


He decidido intentar reunir historias de lo que ha pasado en los últimos 30 años para contárselo al niño. Estoy recopilando noticias, información en general, para explicarle cómo hemos acabado así. Ya sé que muchas cosas han desaparecido junto con las grandes cadenas, pero aún quedan cosas, ¿no? También quiero saber más sobre lo que le pasó a papá y a mamá, a toda esa gente que venía a casa... A algunos los he visto por ahí, otros se han desvanecido. Estaba Pepe, por ejemplo, al que papá siempre defendía en la cárcel, y que siempre nos traía los mejores regalos, ¿te acuerdas? Andaban siempre detrás de él. Creo que tenía tu edad.


Bueno, no te molesto más con esto. Si te parece bien ayudarme y quieres hablar, quedamos un día de estos por la tarde. ¿Qué me dices?


Alex




Así empezó esta historia. Con un correo electrónico a Fatima Idrissi, una campesina marroquí de Marrakech que trabajó con mis padres en los movimientos revolucionarios de las décadas de 2020 y 2030. Fue el primero de los muchos contactos que hice durante varios meses con personas de todo el mundo. Les entrevisté y recopilé material para intentar ayudar a contar la historia de la locura que han sido estos últimos 25 años.


Perdonen la confusión, pero estos años han sido realmente una locura. Empecé escribiendo esta historia para mi hijo, pero descubrí por el camino que lo estaba haciendo en gran medida por mí, y por la memoria de mis padres y la de tanta gente que trabajó duro para detener las Grandes Crisis o el Gran Cambio, como los llamamos ahora.


No sabemos si las cosas van a empeorar. El año pasado la temperatura volvió a subir, tras cuatro años de descenso, pero no regresó al calor mortal del pasado reciente. Conseguimos reducir las emisiones que debíamos para 2030 y desde entonces no han dejado de bajar, pero aún es pronto para saber si lo hemos conseguido a tiempo.


Me convencieron otras personas, entre ellas mi compañera Lia y amigos que trabajan en la prensa y en el mundo del entretenimiento, para que hiciera pública esta historia. No soy un experto en esto, y gran parte de lo que vais a leer son apenas las entrevistas que he hecho y las noticias que he podido recopilar. creo que tal vez alguien podría tomar

esto y darle forma por escrito. Incluso, como Lia me dijo, hacer una obra de teatro o una película. Creo que sería bueno para entender lo que pasó. Yo lo he entendido todo mejor: he quedado muy impresionado, asustado y deslumbrado por la loca historia del mundo en las últimas décadas y el papel que la gente normal ha jugado en ella.


Alexandre Águas

Lisboa, enero de 2043



Estoy ante en la ventana de mi casa en Lisboa. Vivo en Santa Apolónia, junto al río. El antiguo Hotel da Estação, después de inundarse innumerables veces, fue abandonado hace más de una década. Ahora, a pocos metros de mi casa, subo en ascensor hasta Graça. Hoy, los viejos muelles y el embarcadero de cruceros, que hace media docena de años aún asomaban por encima del agua cuando había marea baja, están siempre sumergidos. Los cruceros llevan varios años sin atracar aquí.


Saludo al ascensorista, recordando la época en la que hice ese trabajo durante más de un año. Era un trabajo tranquilo, aunque resultaba un poco monótono subir y bajar durante cuatro horas al día. El ascensor pasa entre los árboles de la calle de Vale de Santo António y consigo coger un melocotón con la mano: aún está verde. Es primavera y ya es casi el tiempo de recoger la fruta.


En esta ladera de Lisboa se han plantado melocotoneros. En otras partes de la ciudad hay otras frutas, dependiendo del suelo y del sol.


El asfalto empezó a arrancarse hace más de una década, pero el nivel de contaminación del suelo sigue impidiendo plantar alimentos y frutas en muchas zonas de la ciudad después de estar tantos años bajo el asfalto. Las calles que tenían piedra en lugar de asfalto son las que están en mejores condiciones y por eso han sido las que más frutos han dado.



Voy a la biblioteca de Penha de França. Aunque hay bibliotecas más cerca de casa –y en Lisboa hay más de 300 bibliotecas–, fue aquí donde conseguí un estudio para grabar la entrevista con Fatima.


Conozco a Fatima desde hace muchos años, desde un periodo de quizás casi un año que pasó en casa de mis padres. Estaba huyendo de la policía política marroquí, recuerdo. Ahora debe de tener unos 50 años. Era muy joven cuando empezó a militar en diversos movimientos. Quiero hablar con ella para entender lo que pasó allí entre finales de la década de 2010 y finales de los años 20. Después se alejó de todo.



–Hola Fatima. ¡Salam!


–Alex, qué guapo estás. Me alegro mucho de verte. Me interesó mucho lo que me escribiste. Estaré encantada de ayudarte, tengo mucho material almacenado por ahí que podría interesarte. Puedo enviarte fotos.


–Eso sería genial, Fatima. Oye, voy a grabar la llamada, ¿vale?


–Sí, dale, hace mucho que ya no me preocupo de esas cosas.


–Lo siento, en realidad, esto ya se estaba grabando, se inició automáticamente.


–No hay problema, Alex. Dime lo que quieres saber.


–De acuerdo. Fatima El Idrissi, ¿puedes decirnos quién eres?


–[Risas] Ahora soy agricultora urbana en Marrakech, pero fui activista revolucionaria. Durante muchos años creé y dirigí organizaciones políticas, participé activamente en la Revolución marroquí y durante varios meses formé parte de la asamblea constitucional ecosocial de la República de Marruecos. Luego participé en las Caravanas del Futuro antes de retirarme de la vida activa porque he estado enferma. Pulmones y corazón. Es el precio que he tenido que pagar por tanta agitación.


–¿Cuándo empezaste a implicarte en política?


–Empecé a tomar conciencia política durante las Primaveras Árabes. Tenía 18 años y participé en las protestas aquí en Marruecos. Observábamos lo que ocurría en Egipto –donde destituyeron a Mubarak–, Túnez, Libia... El mundo entero estaba cambiando. Me emocioné mucho cuando se anunció que íbamos a tener una nueva Constitución... pero al final resultó ser un truco.


–En otras palabras…



–Pues que el rey mantuvo su poder intacto y, a pesar de algunos maquillajes, las cosas siguieron más o menos igual. Entonces las cosas empezaron a explotar en Europa, Estados Unidos, Brasil y Turquía. Pero al final, con lo que pasó en Egipto, Libia, Siria, Grecia e incluso después en Estados Unidos y Brasil, todo fue muy frustrante. Parecía que el mundo iba a mejor y en pocos años todo retrocedía.


–¿Te sorprendió?


–Fue entonces cuando perdí mi inocencia política. Pero la vida siguió. En 2016, la COP22 fue aquí mismo, en Marrakech. Fue un proceso de aprendizaje e implicación muy interesante para mí, conocer un mundo nuevo. Ya me interesaba el cambio climático y quería participar.


–¿Y participaste?


–Un amigo me invitó a participar en unos actos y me lo explicó todo: cómo el gobierno se había inventado una serie de ONG para que actuaran como extras de la sociedad civil, cómo las negociaciones no iban a ninguna parte, cómo en las mismas salas se hacían los grandes negocios (agrícolas, energéticos, de transporte) de las mismas empresas que estaban produciendo el cambio climático. Era increíble. El ímpetu tras la firma del Acuerdo de París se estaba apagando y, justo en medio de aquella COP, Donald Trump fue elegido presidente de Estados Unidos. No se habló de otra cosa en la conferencia. Trump incluso había prometido desechar el Acuerdo de París. Otra decepción para mí, pero al menos mi amigo ya me había avisado.


–Fueron muchas decepciones, ¿cómo es que seguiste participando?


–Iba y venía. En aquella época aún no estaba en ningún grupo, hacía trabajos esporádicos, como traducciones y algo de secretaría. Intenté no deprimirme, seguí con mi vida. Era amiga de varias personas implicadas en luchas ecologistas, sociales y de profesores. En Marruecos hubo mucha agitación... Incluso antes de la COP, en Marruecos tuvimos protestas por todo el país porque la policía había asesinado a un vendedor ambulante. La gente estaba descontenta de forma intermitente. Lo estaban desde las Primaveras Árabes. Incluso antes...



–Pero se decía entonces que el gobierno marroquí estaba muy avanzado en política climática...


–El rey y sus aliados poseían las centrales eléctricas de carbón y gas, y también las centrales solares. En Uarzazat se había construido la mayor central de concentración solar del mundo, hectáreas y hectáreas de paneles en medio del desierto. Desde el suelo no se podía ver en toda su extensión. Pero aquella energía no era para nosotros, el plan era exportarla. A Europa, por supuesto. Y como no había agua para limpiar la arena, teníamos que seguir sacando agua allí donde las comunidades la necesitaban. Además de eso, el gobierno y el rey seguían explotando los fósiles. Incluso durante la cumbre estaban dando concesiones para hacer exploraciones de petróleo y de gas en el mar, y de gas de lutita en tierra firme. Todo lo que pudiera dar dinero, lo hacían. Mientras tanto, gran parte de la población ni siquiera tenía electricidad. Si desmantelaran la planta solar de Uarzazat y entregaran todos esos paneles solares a los pueblos y los barrios, las cosas serían muy diferentes, pero eso no servía a los intereses de la monarquía. Se trataba, sobre todo, de propaganda política.


–¿Y cuándo empezaste a participar más en serio?


–En 2019, cuando empezaron las huelgas climáticas, mi hermana pequeña me pidió ayuda para hablar con los profesores y organizar huelgas, y acepté ayudarla. Entonces apareció Extinction Rebellion Maroc y me picó la curiosidad. Participé en algunas acciones. Fuimos reprimidos duramente por la policía, pero empezamos a crear un grupo con cierta confianza, y a hablar con otras organizaciones que no tenían que ver con el cambio climático, pero que también estaban preocupadas. Se unieron algunas personas que habían participado en la farsa de la COP22 y que realmente querían hacer algo. Con la COVID todo fue cuesta abajo. Después de la muerte de alguien importante para el movimiento, sentí la necesidad de asumir más responsabilidades. Luego vino la crisis pos-COVID, la crisis energética, la subida de los precios de todo, la invasión rusa de Ucrania y el auge de la extrema derecha en Europa, la masacre en Palestina... Parecía que la premonición se hacía realidad y que todo, efectivamente, iba cuesta abajo. Empezamos a hablar con gente de otros países árabes y del norte de África. Lo primero que urgía era detener el acuerdo de la Unión Europea para enviar a millones de refugiados a Libia, pero eso no era suficiente. Las olas de calor estaban provocando la muerte de miles de personas cada año aquí, en Marruecos, pero nunca se decía que morían por el calor o a causa de la crisis climática, siempre se hablaba de «muertes adicionales».




Y el descontento aumentó. Los precios de los alimentos empezaron a subir, a veces ni siquiera era posible comprar cereales. Fue entonces cuando se produjo la gran «marea muerta»: cientos de millones de peces llegaron a la costa. Las costas atlánticas de Europa, África del Norte y Estados Unidos se cubrieron del color plateado de los peces muertos y del olor nauseabundo que desprendían. Fue devastador para las comunidades pesqueras. Todo el mundo sintió la catástrofe. En aquel momento me involucré en Mundo Nuevo, fue mi primera gran experiencia internacional. Poco después, el gobierno decidió perseguirnos. Varios compañeros fueron detenidos.


–¿Y tú?


–Me alertaron a tiempo y huí a Europa. Mi madre era francesa y por eso tenía el pasaporte.



Grunge Newspaper Background

Maré da morte!

Milhões de peixes mortos nas costas do Atlântico Norte


Cientistas estimam que mais de mil milhões de peixes mortos deram às costas da América do Norte, Europa Ocidental e Norte de África. México, Estados Unidos, Canadá, Noruega, Irlanda, Gales, França, Espanha, Portugal e Marrocos acordaram esta manhã com verdadeiras

marés de morte. Os cientistas apontam para para o grande aumento

de temperatura e para os surtos de algas e cianobactérias que têm

coberto largas áreas do oceano, reduzindo a disponibilidade de

oxigénio para os peixes.

As autoridades têm tentado remover os peixes, com ajuda das

populações, perante um acumular de nuvens de insectos nas costas

que são um risco acrescido de saúde pública.

Marea de la muerte


Millones de peces muertos en las costas del Atlántico Norte


Los científicos calculan que más de 1.000 millones de peces muertos han llegado a las costas de Norteamérica, Europa Occidental y el norte de África. México, Estados Unidos, Canadá, Noruega, Irlanda, Gales, Francia, España, Portugal y Marruecos se han despertado esta mañana con verdaderas «mareas de muerte». Los científicos apuntan al enorme aumento de la temperatura y a los brotes de algas y cianobacterias que han cubierto amplias zonas del océano, reduciendo la disponibilidad de oxígeno para los peces. Ante la acumulación de nubes de insectos en las costas, que suponen un riesgo cada vez mayor para la salud pública, las autoridades intentan retirarlos con la ayuda de la población.



2. LA REVOLUCIÓN MARROQUÍ

- Fátima, lo siento, ¡se cortó la llamada! Estábamos hablando de cuando empezaste a implicarte más seriamente en política.


- Me di cuenta, es normal, no hay problema.


- Hablábamos de cuando tuviste que abandonar el país, ¿no debió de ser fácil?


- Seguí en contacto con movimientos de clima político en varios países de Europa. Había exiliados como yo, seguíamos en contacto e incluso hacíamos gran parte de la comunicación para la gente que se había quedado en Marruecos, los presos y los clandestinos.


- Fue entonces cuando nos conocimos, es cierto.


- Sí, me quedé en tu casa durante 10 meses, con tus padres, mis queridos amigos António y Marta. António también estaba involucrado en Mundo Novo...


- ¿Puedes explicarme qué era Mundo Novo?


- Era una coalición de sindicatos, académicos y movimientos por la justicia climática. Era una plataforma que construía planes de transformación ecosocial para diferentes países, y fue a través de los contactos de Mundo Novo como os conocí.


- ¿Era algo más técnico?


- Mundo Novo empezó como una organización un poco académica, pero se fue haciendo cada vez más política. Cuando surgió, hablábamos sobre todo de energía y transporte, y de las repercusiones de la crisis climática en quienes trabajan en estos sectores. Pero evolucionó rápidamente. Se extendió a

todas las demás actividades de la sociedad y empezó a organizar grandes manifestaciones en medio de crisis financieras y guerras. Se convirtió en una especie de gran alianza progresista. Pero siempre hubo mucha resistencia a la idea de que se convirtiera en un partido político electoral. Y así permaneció, siempre según este modelo con una alianza política y un componente técnico.


- Más tarde, fue el Nuevo Mundo el que escribió la Ruta del Futuro, ¿no? Cuando comenzaron las grandes migraciones.


- Sí, la Ruta del Futuro fue un documento maravilloso que sentó las bases para distribuir más de 500 millones de refugiados climáticos por todo el mundo durante 15 años a los países donde podían ser acogidos. A través de las Caravanas hacia el Futuro, trasladamos a millones de personas en grupos de cientos de miles desde sus lugares de huida hasta sus destinos finales.


- Hábleme de ello: nunca antes se había producido un movimiento de refugiados bien organizado por todo el mundo, ¿verdad?


- Participé en siete caravanas a lo largo de cuatro años. La más larga fue de Pakistán a Alemania. Otras fueron más cortas, pero logísticamente muy complejas, como la de Indonesia a China, con transbordadores y barcos. Trasladamos ciudades casi enteras, que pasaron meses en movimiento. Necesitábamos seguridad, sanidad, alimentos, logística y otras cosas. Creamos enormes procesos compartidos para llevar cada caravana hasta el final.


- No eran procesos sencillos, imagino.


- No. En los primeros años, las cosas eran muy complicadas. Teníamos que proteger las caravanas de los ataques de la mafia, las milicias y, a veces, incluso de la población local. Pero mejoraron con el tiempo. También aprendimos y cambió el sentimiento hacia el proceso migratorio, porque cada vez








había más gente de todas partes, e incluso dentro de los países había grandes cambios, con partes de los países que se volvían inhabitables y mucha migración interna. Las llegadas y los festivales de acogida fueron maravillosos, pura alegría. Fue épico. Empecé a sentir que allí había una nueva idea de la humanidad. O una vieja idea, de viajeros y huéspedes con los brazos abiertos, que se había ido desvaneciendo durante mucho tiempo. Fue entonces cuando empecé a sentir que por fin podía alejarme y descansar.


- Pero esto es después de la Revolución marroquí, ¿no? Y esa ya fue una revolución causada o iniciada por la crisis climática...


- La revolución fue en 2028. ¿Quieres que hable de ello?


- Creo que es importante, sí.


- Bueno, no se puede explicar sólo con Marruecos. Las grandes olas de calor ya habían sacudido todo en Europa, Estados Unidos y Asia, incluso el movimiento e-comunista ya había sido fundado y anunciado públicamente. Yo ya estaba en el movimiento, como tu madre. Pero yo no pertenecía a la facción armada.


- ¡¿Mi madre pertenecía a una facción armada?!


- Sí, Marta era dirigente del Ejército Verde. Tenía experiencia, ya que había participado en importantes acciones de sabotaje. Había pertenecido a ORCA o Descarbonaria, no estoy segura. No hablaba de ello. Su pasado era un poco turbio, no puedo asegurarlo...


- No sabía nada al respecto. ¿Cómo puedo saber más? ¿Con quién puedo hablar?


- Creo que Gianrocco podría contártelo. ¿Sabes quién es? ¿Gianrocco Fratin?


- No.


- Conocía a tus padres, era su contacto en el movimiento. Ahora es el Comisario de Energía en Florencia. Puedo ponerte en contacto.


- Gracias por eso. ¿Estaba también en el Ejército Verde?


- No, estaba en los equipos de información y era uno de los responsables de los enlaces con la guerrilla y otros grupos, así que conocía a mucha gente. Siempre fue muy activo, y lo sigue siendo hoy. Es más joven que yo. También es un buen contacto porque sabe mucho más que yo sobre lo que pasó en Europa, siempre estuvo involucrado en las grandes decisiones.


- Gracias, Fátima. ¿Puedes hablarme de la revolución en Marruecos?


- La dictadura de Sisi en Egipto ya había sido derrocada por el golpe de Estado laico y la guerra civil en Estados Unidos hacía estragos. Hubo una enorme escalada de tensión entre los gobiernos de Marruecos y Argelia y los gobiernos estaban movilizando fuerzas armadas para una guerra, que sería fratricida y completamente estúpida. Las exportaciones de gas a Europa se habían detenido por completo y había tensión con la llegada de refugiados climáticos al lado saharaui, y en particular a los territorios del Sáhara Occidental, y la confusión en la zona de Palestina.


- ¿Y consiguieron frenar la escalada bélica?


- En Marruecos formamos una gran alianza progresista (nosotros éramos una parte importante de la alianza) y derrocamos a la Monarquía prácticamente sin violencia. Las grandes movilizaciones derribaron el régimen, que dejó el poder en el descrédito. En el sur, el movimiento independentista saharaui declaró su independencia y expulsó al ejército monárquico. Apoyamos el fin de esta ocupación, en contra parte de nuestra alianza.


- ¿Y en Argelia?


- En Argelia, el movimiento actuó en solitario y fracasó. Pero, a pesar de ello, las tensiones



entre los dos países disminuyeron y, como aquí éramos gobierno, no mataron a nuestros camaradas de allí, algunos incluso se exiliaron a Marruecos. En el fondo, creo que incluso las élites argelinas no querían un conflicto abierto.


- ¿Y qué cambió con la revolución?

















“ASAMBLEA SANGRIENTA


Ayer explotó una bomba en la Junta General de Accionistas de Shell en Londres y murieron 200 personas, entre ellas todos los miembros del Consejo de Administración. Scotland Yard y la Policía Metropolitana de Londres ya han detenido a varios sospechosos. El Presidente de la Comisión Europea ha acusado directamente a los movimientos ecologistas y climáticos de ser los responsables del atentado y promete que la Unión Europea trabajará para castigar ejemplarmente a los terroristas responsables de estas muertes.”






















- Ouve, Alexandre, eu canso-me muito rápido e rebuscar estas coisas todas do passado está a stressar-me um pouco. Vou-te pedir para pararmos por hoje.


- Claro, Fatima. Como preferires. Podemos falar outro dia?


- Sim, acho que sim. Mas da próxima vez traz a criança, que eu gostava muito de vê-lo. Como está a tua companheira?


- Muito bem.


- Trá-la também para eu vê-la. Vocês estão felizes?





















“DETENIDOS TERRORISTAS ECOMUNISTAS


La Agencia Europea de Justicia, el gobierno de Estados Unidos y el gobierno provisional de la República de Texas han emitido órdenes internacionales de detención contra más de un millar de dirigentes relacionados con el movimiento ecomunista, de los cuales más de 600 ya han sido detenidos en Europa. Los gobiernos de Angola, Nigeria, Namibia y Marruecos (donde los ecomunistas forman parte del gobierno) rechazan los cargos y la validez de las órdenes de detención. Los países asiáticos tampoco reconocen la validez de la orden de detención. El movimiento ecomunista está acusado de estar detrás del atentado en el que murieron más de 300 personas en Londres durante la Asamblea General de la Shell.”



- ¿Y qué cambió con la revolución?


- Pudimos llevar a cabo un programa de transformación parcial, colectivizamos el agua y la energía e iniciamos una reforma rural. Éramos demasiado dependientes de la agricultura del exterior para seguir soportando choques de hambre. Y por increíble que parezca, ¡funcionó! Iniciamos una gran transformación en la organización de la producción, la distribución y la alimentación para satisfacer las necesidades de la población. Hacia el sur, el movimiento participó en levantamientos y revoluciones en Nigeria, Angola y Namibia, y gobernaba en alianzas. Pero entonces se produjo la Asamblea Sangrienta y, a escala internacional, los e-comunistas fuimos reprimidos en la mayoría de los demás países. Fue entonces cuando detuvieron a tus padres. ¿Sabes de lo que estoy hablando?


- Sí.


- Escucha, Alexandre, me canso muy rápido y volver sobre todo esto del pasado me está estresando un poco. Voy a pedirte que pares por hoy.


- Por supuesto, Fátima. Como prefieras. ¿Podemos hablar otro día?


- Sí, supongo que sí. Pero la próxima vez trae al niño, me encantaría verlo. ¿Cómo está tu compañera?


- Bien.


- Tráela también para que pueda verla. ¿Estáis contentos?


- Somos muy felices.


- Que bueno. Sobre el tema de la Asamblea Sangrienta, es Gianrocco quien puede explicarte esta confusión. Te enviaré sus datos de contacto. Y los de Sukumar también.


- Ya tengo los de Sukumar, Fátima. Hablaré con él en cuando pueda.




- Envíale un fuerte abrazo y dile que me envíe su último libro, que aún no he recibido.


- Le digo. ¿Quiere concertar una cita ahora?


- Ahora mismo no tengo agenda, Alex. Haremos un plan en los próximos días. Fue muy bueno verte, saber que eres una persona feliz, hermosa y curiosa. Tus padres estarían muy contentos, Alex, de saber que tú también quieres saber lo que han hecho, lo que han arriesgado. Estoy muy feliz de hablar contigo. Un beso, cariño. Shukra


- Adiós, Fátima.


Nunca volví a hablar con Fátima. La hospitalizaron a los pocos días y murió de cáncer de pulmón dos semanas después. Antes de morir, me envió un correo electrónico con algunos contactos, entre ellos Gianrocco Fatin y Pepe Infante.



La desglobalización se ha impuesto


El canciller Henry Sacksville se sentó a reflexionar en voz alta sobre cómo el débil consenso en torno al neoliberalismo: "se ha derrumbado definitivamente" y no sólo porque "a nadie le importen la Organización Mundial del Comercio, el Banco Mundial o el Fondo Monetario Internacional". "Las transacciones mundiales", dijo, "ya sean financieras, de materias primas, manufactureras o de bienes y servicios, llevan años cayendo". No comerciábamos tan poco a nivel mundial desde la década de 1980.


Tras las elecciones estadounidenses, la no aceptación de los resultados electorales dio lugar a una campaña de sabotaje de la red eléctrica. Y la nueva administración acabó, según el Secretario de Energía Kyle DeSomber, lanzando "Energize, el mayor paquete de energía descentralizada a gran escala de la historia, 200.000 millones de dólares", lo que acabó quebrando la fuerza económica de las exportaciones del mayor productor de petróleo y gas del mundo.


La independencia de Crimea, Abjasia y Osetia del Sur, separándose de Rusia, Ucrania y Georgia, supuso otro fuerte golpe a la estabilidad del sistema de transporte fósil. No tanto por la producción de petróleo en Serebryankse y Subbotina, o de gas en Chornomoske, Dzanhkoi y Odeske, sino por la reducción del acceso directo ruso y ucraniano a los puertos del Mar Negro, tras años de conflicto y el declive de la conexión fósil de Rusia con la Unión Europea. Las catástrofes climáticas de Qatar y Arabia Saudí han hundido aún más el sector y la OPEP ha perdido en pocos años su estatus de actor global.


Las energías renovables emergentes, tras las intervenciones públicas, pasaron a ser en gran medida autónomas y con cadenas de producción cortas y, como dijo el Secretario de Energía estadounidense, "demasiado pequeñas para fracasar".


La desglobalización política se produjo con el ascenso electoral del iliberalismo y el conservadurismo, y el ascenso social de la extrema derecha y la extrema izquierda. La desglobalización económica sólo comenzó plenamente en la era post-Covid19. La crisis generada por la inflación (y aún hoy se debate si su origen fueron los precios del petróleo y el gas, la invasión de Ucrania, los altos salarios europeos o los beneficios de aquellos años) fue tratada como la crisis financiera de 2008 o la crisis de la deuda soberana. La economía mundial vio cómo se contraía la disponibilidad de capital, mientras que las nuevas inversiones pasaron a ser principalmente públicas y nacionales. La Reserva Federal y el Banco Central Europeo decidieron repetidamente subir los tipos de interés, reduciendo la renta disponible, la capacidad de compra y el endeudamiento de las economías, las empresas y los hogares, sumiendo pronto a la economía mundial en un nuevo crecimiento anémico. La crisis de inflación se convirtió en una crisis de deuda pública y privada.


Para colmo, como ha señalado la analista de riesgos Andrea Lloyd, "las catástrofes climáticas se cernieron sobre nosotros y el edificio de las compañías de seguros y reaseguros se derrumbó: eran gigantes con pies de barro". Munich Re y Swiss Re fueron rescatadas y nacionalizadas, razón por la cual el PIB suizo se contrajo un 3% sólo ese año. La tasa de rechazo de nuevos seguros alcanzó el 53% y sembró el pánico en el mercado crediticio. Los Estados tuvieron que volver a emitir más deuda pública. Las agencias de calificación pidieron

Blank open magazine

Analysis

moderación, aunque la moderación sólo podía significar más crisis económica. El conflicto entre los gobiernos y los bancos centrales independientes se agudizó.

Los Estados y los gobiernos dejaron de escuchar a las agencias de calificación y la mayoría de las organizaciones financieras dejaron incluso de pagar a Standard and Poor, Fitch y Moody's. Pero los bancos centrales seguían guiándose por las mismas soluciones que se venían aplicando desde los años setenta. Así que el llamamiento a la moderación seguía teniendo suficiente efecto como para detener la apariencia de recuperación económica. La respuesta fue la austeridad.


La extrema derecha europea era la mejor situada para responder a la situación en ese momento y en su descontento ganó puestos de gobierno en varios países europeos. Enterró el Green Deal europeo (un paquete de inversión pública que podría haber amortizado la crisis económica con un retorno efectivo) y utilizó gran parte de los fondos estructurales y del PRR para crear el programa Energía Europea para los Europeos (EEFE), levantó las restricciones a la inversión en petróleo y carbón y anunció la construcción del nuevo complejo nuclear europeo, 40 centrales más, que estarían listas décadas después. Pero no fue posible movilizar inversión privada, sólo pública, para este proyecto. Para el eurodiputado italiano Ettore Gatto, "intentaron resucitar a los muertos y lo único que consiguieron fue crear zombis energéticos”.


En cuanto a la migración, según Rudd Eingarten, del ACNUR, el programa político incluía un nuevo acuerdo migratorio con Libia, con más de cuatro millones de migrantes y refugiados depositados allí, lo que convierte a Libia en "el mayor campo de concentración y muerte de la historia", frente a un gran préstamo del Banco Europeo de Inversiones para restablecer las conexiones energéticas.


La persecución política en Europa ha vuelto inestables los intercambios comerciales y la violencia ha interrumpido flujos esenciales para la vuelta a la normalidad, como hemos visto en las escenas de violencia en los parlamentos alemán, español y francés. En las olas de calor que siguieron murieron 1.500 trabajadores en Serbia, Bulgaria y Rumanía. Y se desató una oleada de huelgas generales para imponer la reducción de la jornada laboral en verano. Incluso con una violenta represión policial, los sindicatos mostraron una fuerza que no se veía en Europa desde hacía décadas e impusieron su voluntad, derrocando a los gobiernos de Belgrado y Sofía y haciendo sangrar las economías, con menos productividad y horas de trabajo (reducidas de 2h30 a 4 horas diarias).


Cuando estas huelgas alcanzaron a los trabajadores de la industria fósil, que exigían sus propios

The Economist

sistemas de control climático tras los accidentes mortales del Golfo Pérsico, varios gobiernos adquirieron una parte importante de las estructuras accionariales de las empresas fósiles. Esta decisión aumentó los salarios y creó nuevas normas laborales, pero sobre todo consiguió bajar los precios de la gasolina, el gasóleo y el gas natural, que en aquella época batían todos los meses récords históricos de precios.


En aquel momento, la inflación en la Unión Europea alcanzaba el 36%. Los bancos redujeron aún más su acceso al crédito ante el resurgimiento del Estado y las nuevas normas laborales. El acuerdo entre la Unión Europea y Estados Unidos para acabar con los paraísos fiscales, que también pretendía aumentar los ingresos fiscales, resultó no ser tan eficaz y miles de millones acabaron huyendo.


El último golpe fue económico: la contracción y el giro internos de China en respuesta al proteccionismo estadounidense, europeo y japonés. La reducción de las importaciones chinas de energía, la reducción de las exportaciones y la restricción de las inversiones extranjeras cerraron este ciclo.


De este modo, se desmantelaron algunas de las principales herramientas de la globalización: con la intervención gubernamental a gran escala en las políticas industriales -el IRA y Energize en Estados Unidos, el EEFE en la Unión Europea, y las políticas energéticas en China e India- y la intervención estatal en las empresas más grandes, resurgió el poder obrero. También ha vuelto la violencia política de extrema derecha y extrema izquierda. Y se ha restringido la circulación internacional de capitales.

Los altos precios y el difícil acceso al crédito llevaban años socavando el comercio internacional. A medida que disminuía el comercio, el sistema de deuda mundial se hundía en el impago. "El tren de la desglobalización tardó años en ponerse en marcha, pero ahora su inercia lo ha hecho imparable", concluyó el Canciller Sacksville. Sólo la inyección de dinero barato en las economías podría haber salvado la globalización, pero no fue así.


Ahora, la gente odia a los ricos porque tienen lo que ellos no tienen y roban en los supermercados para distribuir alimentos. Pero con cada vez menos comercio internacional, eso es lo mejor a lo que pueden aspirar. Las estanterías de muchos lugares ya se están vaciando. La globalización está cayendo y con ella la capacidad de crear riqueza y desarrollo a escala planetaria.


Tenemos que pensar en la economía de una manera más desintegrada, más primitiva, más inaccesible. Sólo la innovación puede salvarnos de la recesión permanente. Tendremos que comer lo que producimos. Por primera vez en 180 años, no sabemos si podremos seguir publicando durante mucho más tiempo.

3. lA independencia de texas

3. lA independencia de texas

Hace mucho calor en Lisboa. Aunque no es un año de temperaturas récord (aquí hemos superado los 50 ºC más de una vez), es difícil estar fuera de casa. Corremos de jardín en jardín y de sombra en sombra, y tenemos que parar a refrescarnos en los puntos de agua que hay repartidos por la ciudad (ahora abundan), llenando los vasos de latón que todos llevamos sujetos a la cintura en verano. Hace tres años se levantaron las restricciones al tráfico durante las olas de calor estivales, pero sé que no debería estar fuera a estas horas, aunque no corra peligro. Lo que ocurre es que la persona a la que voy a entrevistar sólo estará aquí dos días y hoy es el último.


He conseguido tomar un café con Olivia Anwar, comunicadora y productora de contenidos en San Francisco, en la República de California. Está cruzando Europa para hablar con migrantes, dice que quiere ser como Homero y escribir una nueva Ilíada, esta vez contando las increíbles historias de refugiados que dejaron sus hogares a miles de kilómetros de distancia, algunos de ellos hace muchos años, y finalmente encontraron un hogar en el sur de Europa, sobre todo en el interior rural.


Pero ese no es el tema de la entrevista de hoy. Se trata de entender mejor lo que ha ocurrido en Norteamérica en los últimos años: la guerra, las secesiones y la nueva realidad de esos territorios y países. Es joven (probablemente tenga mi edad, pero ha estudiado los años de la Segunda Guerra Civil estadounidense, o de la Segunda Guerra de Independencia, según con quién hables).


Olivia me envió un mensaje instantáneo para decirme que llegaba tarde. Me quedé observando las calles de la ciudad bajo la sombra de los árboles y los toldos blancos. Son las ocho de la tarde y Lisboa está adormecida. Hay algunas tiendas

abiertas, sobre todo de reparación. Aquí, en la Rua Morais Soares, hay más de 20 tiendas de reparación de cosas viejas, como frigoríficos, radios, microondas u ordenadores. Consiguen mantenerse abiertos porque nunca les faltan aparatos de aire acondicionado (para arreglar y para vender). También hay una gran biblioteca nueva donde antes había una tienda de animales muertos para comer. Concerté la entrevista con Olivia en la biblioteca.


A veces todavía cuesta creer que hace sólo unos años la mayoría de los materiales electrónicos se desechaban y se sustituían a gran velocidad. Hoy los reutilizamos casi al 100%. Sé que también se debe a que ya no hay tantos productos nuevos como antes. Pero es realmente difícil de entender cómo alguien pensó que era posible desechar tantas cosas tan rápidamente y sin consecuencias.


En fin, estas son también algunas de las preguntas que anoto en mi bloc cuando miro el presente y pienso en el pasado sobre el que estoy escribiendo.


Otro ejemplo: los nuevos paneles que informan sobre la temperatura del bulbo húmedo. No sirve de mucho en Portugal, y eso es bueno. Indica que, aunque la temperatura sea alta, no corremos riesgo de muerte, como ocurre todos los años en países asiáticos o en Sudamérica. Creo que sólo ponen la pantalla aquí para tranquilizar a la gente que llega de India y Bangladés; aún arrastran el trauma colectivo de las muertes en la calle –y en casa– por la combinación de calor y humedad.


A lo largo de la avenida hay carteles en varios idiomas –portugués, inglés, hindi, nepalí, francés– que anuncian los negocios de los pequeños comercios y también dan las gracias y la bienvenida a los recién llegados a la ciudad. Para celebrar la llegada de gente nueva a Lisboa, todos los años se celebra la fiesta de la «Cidade Nova», que comienza en la

plaza que encabeza la avenida –la Praça da Revolução de Janeiro–, baja por Morais Soares y termina en Alameda. Los cipreses están plantados en medio de la avenida y también hay algunos algarrobos pequeños y otros arbustos coloridos. Están muy bien cuidados. Equipos de «arboricultores» y jardineros cuidan los árboles todos los días, mañana y noche. Llevan registros precisos del estado de salud de cada planta.


En Lisboa, las distintas regiones y laderas de la ciudad tienen plantadas diferentes especies, además de las zonas de árboles frutales y arbustos. Están las tradicionales higueras, acebuches, alcornoques y encinas, pero también hay árboles que hace unos años no se consideraban autóctonos, como los negundos, las palmeras datileras, los cedros del Atlas, los pinos carrascos, los arganes y los extraños cipreses del Sáhara. El propio concepto de especie autóctona ha cambiado con las grandes migraciones de plantas, animales y personas, y también porque nuestro clima es ahora más parecido al que existía en el norte de Marruecos hace unas décadas.


Aunque yo nunca he hecho este trabajo en mis rotaciones, Lia lo ha hecho durante varios años. Es un trabajo muy interesante, pero agotador. Lo discutimos a menudo, tanto en casa como en las reuniones de vecinos, porque siempre que hay problemas con los árboles, si empiezan a morir, hay gente que entra en pánico.


Desde que estoy aquí, han pasado varios tranvías. Pasa uno cada 10 minutos. A esta hora aún traen los tres vagones medio vacíos. En unos minutos serán hasta seis vagones y estarán llenos de gente que irá a trabajar a su turno de tarde, de tres horas, o a divertirse. A veces, los tranvías especiales para el transporte de la cosecha también pasan por aquí de camino a los puntos de molienda y entrega de alimentos: allí abajo, detrás del cementerio y bajando hacia los valles de Chelas



se encuentra una de las mayores zonas agrícolas de la ciudad de Lisboa. Los campos y los invernaderos producen alimentos para cientos de miles de personas. Pero eso no basta, por supuesto. Parte del grano procede de los pueblos. Además de las grandes superficies agrícolas gestionadas por la Asamblea de la Ciudad, también hay pequeños huertos de barrio, en jardines y en los tejados verdes de los edificios. Por ejemplo, el edificio que tengo delante tiene pequeños árboles frutales en la azotea.


Olivia me toca en el hombro, interrumpiendo mis pensamientos. Es una mujer de unos 30 años, con el pelo de color verde y piercings en la nariz y las orejas. Viste de azul oscuro, con una chaqueta de lino y una gorra. En Lisboa, el azul oscuro es el segundo color más popular en verano, después del predominante rojo oscuro. Me saluda efusivamente, pero a la americana, sin abrazarme.


Books on Wooden Shelves Inside Library

Entramos en la biblioteca, donde nos sentamos a tomar té helado. Dice que la abundancia de libros en las bibliotecas de Lisboa es impresionante. Le explico que en los últimos años los fondos de las librerías se han transferido todos a bibliotecas y que el gran número de éstas se debe sobre todo a la transformación intermedia de las librerías en espacios públicos y en refugios contra el calor. Lo decidió la primera Comisión de Calor de Lisboa.


Eso no ocurrió en California. En aquella época estaba empezando la guerra civil, responde con cierta tristeza. Le pido permiso para grabar nuestra conversación.



- Hoy es 12 de agosto de 2042 y he quedado con Olivia Anwar, ciudadana de la República de California, creadora de contenidos, que se encuentra de viaje por Europa.


- Hola, Alexandre. Un placer hablar contigo.


- Olivia, como te he explicado, estoy haciendo un estudio sobre lo que ha pasado en las últimas décadas. Es un proyecto para mí y mi familia. Me gustaría agradecerte que te hayas tomado la molestia de hablarnos un poco de California y de Estados Unidos, de lo que ha pasado en las últimas décadas y de lo que está pasando ahora.


- Sí, por supuesto. ¿Quieres que empiece? ¿Por dónde lo hago?


- Creo que sería interesante entender los acontecimientos que desembocaron en la Guerra Civil y en las secesiones…


- Bueno, para hablar del inicio de todo esto (si es que se puede hablar de un inicio), creo que no podemos obviar el fin del estatus de Estados Unidos como superpotencia y policía del mundo, el asalto al Capitolio de 2021 y la guerra de


baja intensidad que tuvo lugar en los años siguientes. El terrorismo neonazi en Estados Unidos empezó a evolucionar cuando el partido republicano se dividió tras las nuevas elecciones presidenciales. Comenzaron los ataques a iglesias y discotecas durante unos seis meses, mientras el sistema energético (sobre todo el eléctrico) sufría constantes ataques de saboteadores.


La inestabilidad en el país era enorme, todo el mundo tenía mucho miedo y mucho odio. Había un lujo obsceno en medio de la pobreza. Había millones de personas sin techo y adictas a los opiáceos. Una parte de la sociedad vivía en un miedo permanente, alimentándolo y alimentándose de la violencia de las milicias identitarias religiosas en las calles: contra los sin techo, contra las mujeres, contra las comunidades negras… Contra todas las comunidades que no fueran blancas, heterosexuales y cristianas.


Por otro lado, estaban las milicias negras creadas para proteger los barrios negros, sobre todo en los estados del sur, pero también había grupos violentos que saboteaban el estilo de vida de los ricos, invadiendo hoteles y complejos turísticos de lujo, destruyendo símbolos de opulencia, desde concesionarios de coches hasta campos de golf, y ocupando plataformas petrolíferas y saboteando gasoductos. El Estado violento, la policía y el ejército ya no eran elementos disuasorios para detener a los extremistas. Las transformaciones internacionales volvieron las cosas aún más inestables. Cuando la Federación Rusa se disolvió, se produjo un repentino vacío internacional que hizo que los militares se centraran en crear un gran enemigo: China.


En medio de todo esto, tuvimos oficialmente más de un millón de muertos en el primer verano de olas de calor globales. Los muertos fueron, principalmente, ancianos, niños y los más pobres entre los pobres. Las cifras reales, en cualquier caso, fueron sin duda mucho más altas que las oficiales. En Europa, la cuestión de las mujeres embarazadas y los bebés fue más grave. Aquí también llegó el movimiento «Nuestros hijos», que movilizó a los colectivos evangélicos más conservadores. Estaban convencidos, porque Internet así se lo hizo creer, de que era el gobierno el que lo había organizado todo, los abortos espontáneos, la muerte de los bebés... La reacción internacional al infierno de calor y caos que siguió fue crear el Tratado Mundial sobre el Clima. Estados Unidos se negó a adherirse, como muchos otros, pero aun así el Gobierno dio una señal pública de cierto alineamiento, con una moratoria a la explotación de nuevas reservas de petróleo y gas.


- ¿Estados Unidos era entonces el mayor productor mundial?


- Sí, de petróleo y de gas. Los estados que más producían eran Texas, Nuevo México, Alaska y nosotros, California. Después de la moratoria, el gobernador de Texas proclamó que iban a poner en marcha un proceso de independencia, con el apoyo de los presidentes de las grandes petroleras y de los principales partidos herederos de los antiguos republicanos. Todo el mundo pensó que sólo se trataba de una amenaza para quebrar la moratoria, pero se produjeron grandes atentados en Nueva York, Washington D.C., Atlanta y Tallahassee, y el pirateo de los sistemas de seguridad. Poco antes se había producido un golpe de Estado en China y Estados Unidos se quedó sin enemigos exteriores visibles.


- ¿Cuáles fueron las consecuencias del golpe en China?


- El nuevo gobierno chino declaró que cesaría todas las actividades en el mar de China y en Taiwán, y que construiría un camino de paz con todo el mundo, especialmente con Estados Unidos... Con esto y el Tratado Mundial sobre el Clima, Estados Unidos perdió un componente esencial de su poder en el mundo: el dominio sobre la energía. Lo que quedaba era el dólar, cada vez más inestable, y el Ejército... Pero sin un enemigo externo claro, no era posible seguir contando esta historia.


- La política mundial estaba agitada, incluso más allá de China…


- Sí, era un caos total. Ocurría en todas partes: además del golpe de los jóvenes comunistas en China, el gobierno nacionalista de Bharat se derrumbó, en Europa tuvo lugar el Septiembre Rojo, con la suspensión de las transacciones de capital, en Sudáfrica grupos de mercenarios intentaron mantener la producción de petróleo y carbón incluso en contra del gobierno que había firmado el tratado... En fin, ya recordarás aquella locura.


- Sí, la información estaba muy desorganizada y sabíamos que no era creíble. Demasiadas patrañas para entender claramente lo que estaba pasando. La cosa empeoró con el DrokGPT y lo que la Inteligencia Artificial hizo a las grandes redes. ¿Qué impacto tuvo en Estados Unidos?


Antique library
Texas Flag Map

a country of our own

Almost 200 years later, free again

- Creo que ayudó a que un país que ya estaba polarizado se volviera aún peor. Se estaba difundiendo propaganda sobre Europa: los neoluditas, ORCA, la Descarbonaria... Y, sobre todo, cosas que ni siquiera existían. Decían que todo eso llegaba a Estados Unidos a través de la migración y los globalistas. De esto hablaban los conservadores: era la base de la guerra cultural, que llevaba décadas sembrada, y que en ese momento estaba dando sus frutos y engordando en número de militantes. DrokGPT lo alimentó todo. El torrente de propaganda funcionó porque, al mismo tiempo, los productos escaseaban y el combustible era más caro que nunca. Todo era insoportable. Todas las debilidades de Estados Unidos –y había muchas– salieron a la luz.


- Pero, ¿cómo se explica la partición del país? Eso no ha ocurrido en ningún otro sitio…


- Bueno, sí ocurrió en otros países, como Rusia, en países africanos, en el Golfo. Ha habido y sigue habiendo intentos de independencia en el interior de varios Estados. Creo que las ciudades libres acabaron siendo válvulas de descompresión en algunos países, pero en el caso de Estados Unidos sólo aparecieron después de que empezara el conflicto. El tamaño del país era importante. Estamos hablando de un país-continente, con culturas e intereses contradictorios... La desigualdad, los odios históricos entre el Norte y el Sur, las armas y la militarización de la sociedad fueron factores decisivos, pero no los únicos.


- ¿Cuál crees que fue el factor decisivo?


- El rápido declive de la industria fósil fue fundamental para explicar lo que nos ocurrió políticamente. El gobierno pasó a ser visto como un enemigo activo, como un opresor, incluso cuando proporcionaba cosas buenas. La contaminación ideológica en la prensa y en las redes sociales, que durante décadas había servido para consolidar a la sociedad en el sueño americano, ahora servía para polarizarla. Visto con perspectiva, ahora hasta resulta sorprendente que los 50 estados permanecieran unidos durante tanto tiempo... Y cuando ya no había un enemigo externo evidente, sólo nos teníamos a nosotros mismos para odiarnos. Fue entonces cuando Texas anunció su secesión y todo se vino abajo…


- Pero no fue sólo Texas…


-








- Cuando el gobierno tejano anunció la formación de la República de Texas, Florida, Alabama, Nuevo México, Luisiana, Misisipi y Georgia, es decir, los estados del sur, anunciaron referendos de independencia. Oklahoma, Arkansas y Virginia Occidental también iniciaron sus propios procesos institucionales de independencia. El presidente de Estados Unidos movilizó las tropas, ocupó los congresos de todos estos estados y dio a Texas un ultimátum para detener el proceso. La Guardia Nacional, en todos los estados, se pusieron del lado del gobierno federal. Hubo enfrentamientos con las milicias de extrema derecha, que al principio fueron derrotadas sin dificultad. Entonces predominaban las milicias nacionales cristianas, los Nacris, pero más tarde Ancap se hizo más fuerte. Tras el llamado «Texit», el nuevo gobierno de Texas formó su propio ejército. Texas ya era el segundo estado con mayor ejército del país, pero el gobierno independentista añadió más milicias e incluso propuso a México –¡qué ironía!– formar una federación a cuatro bandas con Nuevo México y Arizona. El impasse duró unos meses.


Por primera vez en casi un siglo, hubo huelgas generales en Estados Unidos por la escasez de alimentos. El gobierno empezó a distribuir comida directamente a la población y a introducir transporte público y energía gratuitos, al tiempo que reclutaba soldados. En aquella época de caos económico, muchos aceptaron alistarse en las Fuerzas Armadas para poder acceder a servicios que nunca antes habían tenido. Mientras tanto, se detectó MERs-CoV en el ganado de Brasil y comenzó el embargo mundial sobre el comercio de carne, lo que dificultó aún más la cuestión alimentaria. Los secesionistas acusaron al gobierno estadounidense y a la Organización Mundial de la Salud de inventar la crisis para hacer la vida aún más difícil a la población. Texas rechazó el embargo internacional de carne e intentó distribuirla, pero no pudo descargarla en los distintos puertos internacionales (que de hecho se negaron a recibir los barcos procedentes de Texas, bajo amenaza del gobierno estadounidense).


Continuará...


Declaration of Independence

Intention of Independence

4. lA II Guerra civil americana

4. lA II Guerra civil americana