João Camargo + Nuno Saraiva

podcast (SOON)

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projeto

Nos dias em que vivemos, as previsões do que será o nosso futuro são devastadoras. A crise climática avança, imparável, sob o ataque violento da indústria fóssil e de toda a estrutura económica construída à sua volta, enquanto a passividade e a alienação travam a sociedade de se auto defender. Um fator para esta inação é a incapacidade de ver um futuro digno, perante um vazio político onde o troar das promessas do regresso ao passado do autoritarismo e do chauvinismo das sociedades fechadas entre muros é o mais ruidoso. Mas ouvem-se rumores de esperança e não há cartas marcadas na história da Humanidade.



’42 começa no fim. O futuro em que se conseguiram travar os piores cenários de alterações climáticas começa na Lisboa de 2042, uma cidade muito transformada em quase tudo: transportes, energia, alimentação, água, lixo, o Tejo e a comunidade. Em vez do exercício linear da construção de uma descrição limpa, higiénica, contada apenas pelo lado vencedor e com poucas contradições, desde A até B, em ’42 vamos ter retratos do que aconteceu em Lisboa e em cidades por todo o mundo, testemunhos, notícias, documentos dos anos loucos em que quase tudo mudou. Guerras, migrações em massa, traições, episódios trágicos e heróicos, revoluções, transformações, um pouco de tudo aconteceu para chegarmos a 2042 e haver novamente esperança no futuro. Mas não está tudo resolvido nem estamos “salvos” de vez. Muito do que foi destruído terá de ser reconstruído, sabemos disso.

Mas a esperança fundamentada para continuar a construir um futuro melhor em 2042 só foi possível pela ação de centenas de milhões de pessoas que mudaram a história.


As crónicas de '42, que sairão semanalmente em português no Setenta e Quatro, misturam um futuro de alterações climáticas, transformações tecnológicas, sociais, políticas e científicas. É uma ficção científica sobre os próximos 20 anos de Lisboa, da Europa e do Mundo escrita pelo João Camargo, investigador em alterações climáticas e militante no movimento pela justiça climática, no climáximo em portugal e ilustrado pelo Nuno Saraiva, que dispensa apresentações. conhece-nos melhor aqui!


Cada episódio do ‘42 vai ser acompanhado por um podcast, que serão disponibilizados no site do jornal e também neste site.

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joão camargo

investigador, professor e militante do movimento pela justiça climática há vários anos. autor dos livros “Que Se Lixe a troika”, “manual de combate às alterações climáticas”, “portugal em chamas - como resgatar as florestas” com Paulo Pimenta de castro, “salvámos a primavera” e “salvámos o outono” com Joana louçã. foi professor de química e botânica na universidade lúrio em cabo

delgado e niassa (moçambique), de física e química no liceu pedro nunes em lisboa. foi jornalista e trabalhou vários anos numa ong de ambiente em portugal. foi um dos membros fundadores das associação de combate à precariedade - precários inflexíveis e da auditoria cidadã à dívida pública. foi um dos fundadores e milita no movimento pela justiça climática climáximo. engenheiro zootécnico e engenheiro do ambiente, tem um doutoramento em alterações climáticas e políticas de desenvolvimento sustentável. publicou mais de uma dezena de artigos científicos nas áreas das alterações climáticas, movimentos sociais e políticas públicas. escreveu mais de três centenas de artigos de opinião na imprensa portuguesa e internacional, nomeadamente na visão, na sábado, no público e no expresso. atualmente é editor da revista internacional fight the fire, investigador integrado no ISCTE e trabalha como researcher e campaigner na área do agronegócio na união europeia.

nuno saraiva

ilustrador Editorial, cartunista, pintor de murais, autor de bd, colaborou praticamente toda a imprensa escrita portuguesa, Com Júlio Pinto criou as séries em BD "Filosofia de Ponta", "Arnaldo o Pós Cataléptico" e a "A Guarda Abília". ilustrou o livro "Caríssimas 40 canções - Sérgio Godinho e as canções dos outros" (Abysmo), entre muitos outros.


Desenhou as Festas de Lisboa que animaram arraiais desde 2014. Participa na colecção “Sardinha by Bordallo” (Fábrica de Faiança Bordallo Pinheiro) com a sua “Sardinha do Golaço”, comemorativa do feito campeão da selecção no Euro 2016. O seu livro "Tudo isto é Fado!" (Museu do Fado), foi galardoado com o prémio “Melhor livro de BD 2016” (FIBDA).É docente na escola de artes e comunicação Ar.Co onde ajudou a criar vários workshops na area da ilustração, BD e Cinema e na escola LSD, Lisbon School of Design onde coordena um atelier de ilustração digital. Autor das imagens para as festas de Lisboa promovidas pela EGEAC desde 2014, desenvolve agora todo o conjunto de Troféus para as Marchas de Lisboa. A par das aulas e do atelier dedica-se também à Pintura Mural, tendo já cerca de 6 obras espalhadas pela cidade de Lisboa e arredores.

prólogo

Segundo o WCS, Serviço Mundial do Clima, que compila e divulga as estatísticas meteorológicas, atmosféricas e climáticas de todo mundo, as emissões de gases com efeito de estufa em 2041 foram de 24,4 Gt de dióxido de carbono equivalente, voltando aos níveis de emissões globais do ano de 1970. O objetivo do Tratado Mundial do Clima é que em 2050 as emissões sejam menos de metade disso.


A concentração de dióxido de carbono na atmosfera é de 430 partes por milhão, tendo decrescido lentamente na última década.


Há 7,5 mil milhões de habitantes no planeta.


A temperatura média global do planeta em 2041 foi de 15.2ºC, subindo depois de três anos consecutivos em queda. São 1.4ºC acima da época pré-industrial. Em 2042, a temperatura está mais alta do que no ano passado.


Nas últimas décadas já chegamos a 15.6ºC, a temperatura mais elevada registrada no planeta nos últimos 120 mil anos, provavelmente a mais alta em 3 milhões de anos.


Lisboa


Alexandre poisa a cabeça no colo de Lia, a sua companheira. Estão em casa na Rua da Cruz de Santa Apolónia, junto às margens do rio Tejo. Lia está grávida de sete meses.


- António, se for menino. - diz Alex, cujo pai, falecido há dois anos, tinha o mesmo nome.


- E Marta se for menina?


- Não. Marta não.


- Porquê? Era o nome da tua mãe. - responde Lia, espantada. Os pais dela estão vivos, mas Alex perdeu os seus na última década. Lia sabe que os pais de Alex eram militantes desde o início do movimento, mas Alex não costuma falar sobre isso.


- Se for menina, podemos chamá-la Carolina. Ou Catarina.


- Eu gosto muito do nome Marta. Além disso, seria uma homenagem à sua avó.


- Uma homenagem? Porque é que a íamos homenagear?


- Ela não foi uma revolucionária do movimento? Uma organizadora que ajudou na Grande Mudança?


- Talvez. Na verdade não sei. Sei o que o meu pai fez por cá, mas ele nunca me contou o que é que ela fez depois de partir. Lembro-me de nos deixar quando eu tinha quinze anos e de só a ver uma vez mais. E nessa vez, ela não me disse quase nada. Foram dez anos sem chamadas por telefone, sem vídeos, sem cartas. Sem mãe. Nada até chegar a notícia de que morreu e do seu funeral, cheio de pessoas que eu não conhecia.


- E não queres saber mais?




- Pá, não. Sobre ela, não. Tenho mais em que pensar. Ela fez as suas escolhas e eu não fiz parte delas. Felizmente o meu pai ficou. Ficou por mim. E foi muito importante para o que aconteceu aqui, apesar de nunca ter querido que ninguém lhe fizesse homenagens. - Uma lágrima escorreu pelo rosto de Alex. - A partida dela também o destruiu e amargurou, especialmente no fim da vida.


- OK, meu amor. Também gosto de Carolina. Ou Antónia? - Lia beijou-lhe a mão e ele sorriu com uma careta. - Mas acho que precisas saber o que aconteceu.


- Tentei durante anos, mas o meu pai nunca me ajudou.


- O bebé merecia saber a história da sua família.


- Tu é que queres saber, não é, cusca? - riu-se ele.


Lia deu uma palmada no ombro do seu companheiro.


- Sim, também sou curiosa e quero saber. Se fosse a minha família de certeza que não ia parar até descobrir tudo.


- Vou pensar nisso. Talvez depois da criança nascer.


- Pensa. Eu ia gostar muito.


Em Maio de 2042, o António nasceu.

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  1. fatima

De: alexaguas@voo.com

Para: fidrissi@nhope.ma

Data: 23 de mai. de 2042, 06:20

Assunto: Re: Os meus sentimentos pelo teu pai


Salam, Fatima.


Como estás? Há algum tempo que não falamos. A última vez foi quando o meu pai morreu, batemos aquele papo Zoom, lembras-te? Espero que estejas melhor das dores de cabeça, fiquei preocupado contigo. Vocês todos andam bué doentes para a vossa idade. Espero que te estejas a cuidar e que a família também esteja bem.


Tenho grandes news. Tive bebé, um menino a que chamei António, como o pai. Estou muito feliz e só tenho pena que nem o meu pai nem a minha mãe estejam cá para verem, tenho a certeza que ficariam muito felizes e orgulhosos. Mando-te um filminho. É muito tranquilo e dorme super bem. Nasceu há 10 dias.


Conto-te porque te estou a chamar. A Lia sempre foi super curiosa sobre a minha mãe, o meu pai e as vossas ações e aventuras. Quando estava grávida vasculhou as caixas da mãe e sugeriu que eu escrevesse sobre o que aconteceu nas últimas décadas, para contarmos ao menino quando ele for maior, também para conhecer os avós.


Quando ela me falou nisso eu fiquei um pouco indeciso, porque pai não gostava nada daqueles tratamentos de “herói” que às vezes faziam, odiava cerimónias e só queria ficar em paz. E com a doença piorou. Eu não queria escrever apesar de ela insistir. Mas quando vi António pela primeira vez, algo mudou. É mesmo parecido com o meu pai, Fatima.


Apesar de ser bebé, fui procurar fotos do velho em pequeno e encontrei numa drive velha com digitalizações. São mesmo iguais, o velho e o miúdo: nos olhos, na boca, no sorriso, mas o nariz é da Lia. Nas caixas da mãe encontrámos revistas, artigos, escritos por ti, pelo pai, pelo Sukumar, pela Stephanie, e fotos vossas.


Tens os contatos destas pessoas? Noutra drive também tinha vídeos, fotos, recortes, notícias e reportagens onde apareciam coisas da Última Geração, da Liga, do Mundo Novo. Percebi que há ali muita coisa que eu não sei. Lembro-me de coisas, claro, mas falta muita informação que não está lá e também falta perceber a ordem pela qual as coisas aconteceram.


É por isso que te mando este mail.


Decidi tentar juntar histórias do que aconteceu nos últimos 30 anos para contar ao miúdo. Estou a recolher notícias, infos em geral para explicar como acabámos por chegar aqui. Sei que muita coisa desapareceu com as Big redes, mas ainda há de haver cenas, não? Olha, também quero saber melhor sobre o que aconteceu ao pai e à mãe, à malta que ia lá a casa... Umas vou vendo por aí até, outras deram ghost. Havia Pepe, que o pai defendia sempre na prisão, e que trazia sempre as melhores prendas para nós, lembras-te? Andavam sempre à procura dele. Acho que era da tua idade.


Então, não te vou chatear mais sobre isto, mas se estiveres OK em ajudar-me e quiseres falar marcamos uma call um destes dias à tarde. Que dizes?


Alex



Foi assim que esta história começou. O meu email para a Fatima Idrissi, uma agricultora marroquina, de Marrakesh, que militou com os meus pais nos movimentos revolucionários dos anos 20 e 30 do século XXI, foi o primeiro de muitos contactos que fiz durante vários meses com pessoas de toda a parte. Entrevistei-os e recolhi material para tentar ajudar a contar a loucura que foram os últimos 25 anos.


Perdoem-me pela confusão, mas estes anos foram mesmo uma loucura. Comecei por escrever esta história para o meu filho, mas descobri, ao longo do caminho, que o fazia muito para mim, e pela memória dos meus pais e de tanta gente que se empenhou em conseguir travar as Grandes Crises ou a Grande Mudança, como lhes chamamos agora.


Não sabemos se as coisas vão piorar. No ano passado a temperatura voltou a aumentar, depois de quatro anos em queda, mas não voltou ao calor mortal do passado recente. Conseguiu-se cortar as emissões que era suposto até 2030 e continuam a descer desde então, mas ainda é demasiado cedo para perceber se fomos a tempo.


Fui convencido por outras pessoas, incluindo a minha companheira Lia e amigas que trabalham na informação e diversão, a tornar esta história pública. Não sou especialista nisto, e muito do que vão ler são só as entrevistas que fiz e notícias que consegui recolher. Acho que talvez





alguém possa pegar nisto e por tudo muito bem escrito e até, como me disse a Lia, fazer uma peça de teatro ou um cinema. Acho que era bom, para perceber o que aconteceu. Eu fiquei a perceber tudo melhor, fiquei muito impressionado, assustado e deslumbrado pela história louca do mundo nas últimas décadas e o papel que pessoas normais tiveram nela.


Alexandre águas

Lisboa, Janeiro de 2043

Sento-me na janela de minha casa em Lisboa. Moro em Santa Apolónia, encostado ao rio. O antigo Hotel da Estação, depois de se ter inundado tantas vezes, acabou por ser abandonado há mais de uma década. Agora, a poucos metros da minha casa, apanho o elevador que sobe até à Graça. As antigas docas e o cais dos cruzeiros, que há meia dúzia de anos ainda aparecia acima da água durante a maré baixa, agora está sempre submerso. Há vários anos que os cruzeiros já não atracam aqui.


Cumprimento a guarda-freios do elevador, lembrando-me do tempo em que fiz este trabalho, durante mais do que um ano. Era um trabalho tranquilo, embora fosse um pouco monótono andar a subir e a descer durante quatro horas por dia. O elevador passa por entre as árvores da rua do Vale de Santo António e consigo apanhar um pêssego com a mão - ainda está verde. Estamos na primavera e está quase na altura da apanha da fruta.


Esta encosta da cidade de Lisboa foi toda plantada com pessegueiros. Noutras partes da cidade há outros frutos, de acordo com os solos e o sol.


Há mais de uma década que o asfalto começou a ser arrancado, mas o nível de contaminação dos solos não permite ainda plantar comida nem frutos em várias zonas da cidade, depois de tantos anos debaixo de alcatrão. As ruas que tinham pedra em vez de asfalto são das que estão em melhor estado e por isso têm sido aquelas com mais produção.




Vou à Biblioteca da Penha de França. Apesar de haver bibliotecas mais próximas de casa - e há mais de 300 bibliotecas em Lisboa - foi nesta que consegui marcar um estúdio para gravar a entrevista com a Fatima.


Conheço a Fatima há muitos anos, de um período de talvez quase um ano que ela passou na casa dos meus pais. Ela vinha fugida da polícia política marroquina, segundo me lembro. Agora deve ter uns 50 anos. Era muito nova quando começou a militar em vários movimentos. Quero falar com ela para perceber o que aconteceu ali entre o fim dos anos 10 e o fim dos anos 20. Ela afastou-se das coisas mais tarde.



- Olá Fatima. Salam!


- Alex, estás tão bonito. Que felicidade ver-te. Fiquei muito interessada no que me escreveste. Tenho todo o gosto em ajudar-te, tenho muito material aqui guardado que te pode interessar. Posso mandar-te fotos das coisas.


- Seria óptimo, sim, Fatima. Olha, eu vou gravar a chamada, ok?


- Sim, já não me preocupo com essas coisas há muito tempo.


- Desculpa, na verdade, isto já estava a gravar sozinho, começou automaticamente.


- Não tem problema, Alex. Conta-me então o que queres saber.


- Muito bem. Fatima El Idrissi, podes contar-nos quem és?


- (risos) Agora sou uma agricultora urbana em Marrakesh, mas fui militante revolucionária durante muitos anos, criei e dirigi organizações políticas, participei ativamente na Revolução Marroquina e fui durante vários meses parte da assembleia constitucional ecosocial da República de Marrocos. Depois participei nas Caravanas do Futuro antes de me retirar da vida ativa, porque tenho estado doente. Pulmões e coração. O preço a pagar por tanta agitação.


- Quando começaste a envolver-te com política?


- Comecei a ganhar consciência política nas primaveras árabes. Tinha 18 anos e participei nos protestos aqui em Marrocos. Olhávamos para o que se passava no Egipto - em que tiraram o Mubarak - para a Tunísia, para a Líbia… O mundo estava todo a mudar. Fiquei muito entusiasmada quando foi anunciado que íamos ter uma nova constituição… mas no fundo acabou por ser um truque.


- Ou seja…


- O rei manteve o seu poder intocado, e apesar de alguma maquilhagem, as coisas ficaram quase iguais. Depois as coisas começaram a explodir pela Europa, Estados Unidos, Brasil, Turquia. Mas no fim, com o que aconteceu no Egipto, na Líbia, na Síria, na Grécia e até mais tarde nos Estados Unidos e Brasil, foi muito frustrante. O mundo parecia avançar para melhor e em poucos anos tudo voltou para trás.


- Ficaste surpreendida?


- Perdi a minha inocência política aí. Mas a vida continuou. Em 2016, a COP-22 foi aqui em Marrakesh. Foi um processo de aprendizagem e de envolvimento muito interessante para mim, para conhecer um novo mundo. Eu já estava interessada em alterações climáticas e quis participar.


- Participaste?


- Fui convidada por um amigo a participar em alguns eventos e ele explicou-me tudo: como o governo tinha inventado uma série de ONGs para fazerem de figurantes de sociedade civil, como as negociações não iam dar em nada, como nas mesmas salas se faziam os grandes negócios - agrícolas, energéticos, de transportes - pelas empresas que estavam a criar as alterações climáticas. Era incrível. O furor depois da assinatura do Acordo de Paris estava a desaparecer e, mesmo no meio da COP, Donald Trump foi eleito presidente dos Estados Unidos. Não se falava de mais nada na conferência, ele tinha prometido mesmo acabar com o Acordo de Paris. Mais uma desilusão para mim, mas pelo menos o meu amigo já me tinha avisado.


- Foram muitas desilusões, como te mantiveste envolvida?


- Ia ligando e desligando. Nessa altura ainda não estava em nenhum grupo, fazia uns trabalhos avulsos como traduções, algum secretariado. Procurava não ficar em baixo, seguia a minha vida. Era amiga de várias pessoas que estavam envolvidas em lutas ambientais, sociais, as lutas dos professores. Marrocos tinha muitas convulsões… Mesmo antes da COP em Marrocos tínhamos tido protestos por todo o país porque a polícia tinha assassinado um vendedor de rua, as pessoas estavam descontentes de forma intermitente. Estavam desde as primaveras árabes. Antes, mesmo…


- Mas dizia-se nessa altura que o governo marroquino era muito avançado em termos de política climática…


- O rei e os seus aliados eram donos das centrais a carvão e a gás, das centrais solares. Tinha sido construída em Ouarzazate a maior central solar do mundo de concentração solar, hectares e hectares de painéis no meio do deserto, não dava para ver a extensão toda do chão. Mas aquela energia não era para nós, todos os planos eram exportar, para a Europa, claro. E como não havia água para limpar a areia, era preciso estar sempre a tirar água de onde as comunidades precisavam dela. Além disso, o governo e o rei continuavam a explorar fósseis. Mesmo durante a cimeira, eles estavam a dar concessões para explorar petróleo e gás no mar, e gás de xisto em terra. Tudo o que pudesse dar dinheiro, eles faziam. Entretanto, uma grande parte da população não tinha sequer energia elétrica. Se desmantelassem a central solar de Ouarzazate e entregassem aqueles painéis solares todos nas aldeias e nos bairros, as coisas seriam profundamente diferentes, mas isso não servia os interesses da monarquia. Era principalmente propaganda política.


- E quando começaste a participar mais a sério?


- Em 2019, quando começaram as greves climáticas, a minha irmã mais nova pediu-me ajuda para falar com professores e organizar greves, e eu aceitei ajudá-la. Depois surgiu o Extinction Rebellion Maroc e eu fiquei curiosa. Participei em algumas ações, éramos muito reprimidas pela polícia, mas começámos a criar um grupo com alguma confiança, e a falar com outras organizações que não eram sobre alterações climáticas, mas também estavam preocupadas. Algumas pessoas que tinham estado envolvidas na fantochadas da COP-22 e que queriam mesmo fazer alguma coisa juntaram-se.Com a Covid tudo foi abaixo. Com a morte de uma pessoa importante para o movimento, senti necessidade de assumir mais responsabilidade. Depois veio a crise pós-Covid, a crise da energia, os preços de tudo aumentaram, a invasão da Ucrânia pela Rússia e a subida da extrema-direita na Europa, o massacre na Palestina, parecia a concretização de uma premonição de que ia tudo por ali abaixo. Começámos a falar com pessoas de vários outros países árabes e do Norte de África. A primeira coisa urgente a fazer era travar o acordo da União Europeia para enviar milhões de refugiados para a Líbia, mas não chegava. As ondas de calor estavam a fazer milhares de pessoas morrerem todos os anos aqui em Marrocos, mas nunca se dizia que morriam de calor ou por caso da crise climática, eram sempre “mortes adicionais”.




E o descontentamento subia. Os preços da comida começaram a subir , e às vezes não era possível sequer comprar cereais. Quando houve a grande maré morta, centenas de milhões de peixes deram à costa. As costas atlânticas da Europa, do Norte de África e dos Estados Unidos ficaram cobertas do prateado dos peixes mortos e o cheiro nauseabundo que deitavam. Foi devastador para as comunidades piscatórias, toda a gente sentiu a catástrofe. Nessa altura envolvi-me no Mundo Novo, foi a minha primeira grande experiência internacional. Pouco depois o governo decidiu vir atrás de nós. Vários companheiros foram presos.


- E tu?


- Eu fui alertada a tempo e fugi para a Europa porque a minha mãe tinha nacionalidade francesa e por isso eu tinha passaporte.


--------Interrupção da gravação-------


Grunge Newspaper Background

Maré da morte!

Milhões de peixes mortos nas costas do Atlântico Norte


Cientistas estimam que mais de mil milhões de peixes mortos deram às costas da América do Norte, Europa Ocidental e Norte de África. México, Estados Unidos, Canadá, Noruega, Irlanda, Gales, França, Espanha, Portugal e Marrocos acordaram esta manhã com verdadeiras

marés de morte. Os cientistas apontam para para o grande aumento

de temperatura e para os surtos de algas e cianobactérias que têm

coberto largas áreas do oceano, reduzindo a disponibilidade de

oxigénio para os peixes.

As autoridades têm tentado remover os peixes, com ajuda das

populações, perante um acumular de nuvens de insectos nas costas

que são um risco acrescido de saúde pública.

2. a revolução marroquina

- Fatima, desculpa, caiu a chamada! Estávamos a falar de quando começaste a envolver-te mais a sério em política. Não deve ter sido fácil sair do teu país…


- Eu percebi, é normal, não tem problema. Continuei a fazer o trabalho de contacto com movimentos político-climáticos de vários países na Europa. Havia exilados como eu, mantínhamo-nos em contacto e até fazíamos muita da comunicação das pessoas que tinham ficado em Marrocos.


- Foi nessa altura que nos conhecemos, é verdade.


- Sim, fiquei em tua casa, 10 meses, com os teus pais, os meus queridos amigos António e Marta. O António também estava envolvido no Mundo Novo…


- Podes explicar melhor o que era o Mundo Novo?


- Era uma coligação de sindicatos, académicos e movimentos pela justiça climática. Era uma plataforma que construía planos de transformação ecosocial para os diferentes países, e foi por causa disso que fiquei convosco.


- Era uma coisa mais técnica?


- O Mundo Novo começou por ser um pouco académico, mas foi-se tornando cada vez mais político. Quando surgiu, falávamos principalmente de energia e transportes, e dos impactos da crise climática para os trabalhadores desses setores. Mas evoluiu rapidamente. Expandiu-se a todas as outras atividades da sociedade e começou a organizar grandes manifestações, no meio das crises financeiras. Tornou-se numa espécie de grande aliança progressista. Mas havia sempre muita resistência à ideia de se tornar um partido político eleitoral. E assim ficou sempre neste modelo.


- Mais tarde foi o Mundo Novo que escreveu a Rota do Futuro, não foi? Quando começaram as grandes migrações.


- Sim. A Rota do Futuro foi um documento maravilhoso que criou as bases para a distribuição de mais de 500 milhões de refugiados climáticos em todo o mundo ao longo de 15 anos pelos países onde havia condições de recepção. Com as Caravanas pelo Futuro movimentámos milhões de pessoas, em deslocações de grupos com centenas de milhares de pessoas dos seus locais de fuga até aos seus destinos finais.


- Conta-me isso melhor - nunca tinha acontecido um movimento de refugiados bem organizado pelo mundo todo, pois não?


- Eu participei em sete, ao longo de quatro anos. A mais longa das deslocações que fizemos foi do Paquistão até à Alemanha. Outras foram mais curtas mas logisticamente muito complexas, como da Indonésia à China, com ferrys e barcos.


- Não eram processos nada simples, imagino.


- Não. Nos primeiros anos, as coisas eram muito complicadas. Tínhamos que proteger as caravanas de ataques. Na Europa, mas não só… Mas foram melhorando com o tempo. Também fomos aprendendo e o sentimento em relação ao processo migratório foi mudando, porque era cada vez mais gente de todos os sítios, e mesmo dentro dos países havia grandes mudanças, havia partes dos países que se estavam a tornara inabitáveis e muitas migrações internas. As chegadas e os festivais de recepção eram maravilhosos, alegria pura. Era épico. Comecei a sentir que uma nova ideia de Humanidade estava ali. Ou uma ideia antiga, dos viajantes e dos hóspedes de braços abertos. Foi quando comecei a sentir que me podia finalmente afastar e descansar.


- Mas isto já é depois da Revolução Marroquina, não é? E essa foi já uma revolução causada ou iniciada pelos problemas climáticos…


- A revolução foi em 2028. Queres que eu fale sobre ela?


- Acho que é importante, sim.


- Bem, não é possível explicar apenas com Marrocos. As grandes ondas de calor antes já tinham feito abanar tudo na Europa, nos Estados Unidos e na Ásia, até o movimento ecomunista já tinha sido fundado e anunciado publicamente. Eu tinha estado no movimento com a tua mãe. Mas eu não pertencia à facção armada.


- A minha mãe pertencia a uma facção armada?!


- Sim, a Marta era dirigente do Exército Verde. Ela tinha experiência por ter estado antes nas grandes ações de sabotagem. Tinha pertencido à ORCA ou à Descarbonária, não tenho a certeza qual. E ela não falava nisso. O passado dela era um pouco obscuro, não te sei dizer com certeza..


- Não sabia nada disso. Como é que eu posso saber mais? Com quem posso falar?


- Eu acho que o Gianrocco podia falar-te nisso. Sabes quem é? O Gianrocco Fratin?


- Não.


- Ele conhecia os teus pais, através do movimento. É Comissário da Energia em Florença. Posso pôr-vos em contacto.


- Obrigado. E ele também era do Exército Verde?


- Não, era das equipas de informação do movimento e era um dos responsáveis por articulações com a

guerrilha e com outros grupos, por isso sabia as ligações todas. Ficou sempre muito ativo, aliás ainda é hoje. É mais novo que eu. Também é um bom contacto porque sabe muito mais do que eu sobre o que se passou na Europa.


- Mas conta então como é que foi a revolução.


- A ditadura de Sisi no Egipto já tinha sido derrubada por um golpe de estado laico e a guerra civil nos Estados Unidos estava a acontecer. Houve uma grande escalada de tensão entre os governos de Marrocos e da Argélia e os governos estavam a mobilizar forças armadas para uma guerra - que seria fratricida e completamente estúpida. A exportação de gás para a Europa tinha parado totalmente e havia tensão com a chegada de refugiados climáticos do lado do Sahara, e em particular nos territórios do Sahara Ocidental.


- E conseguiram parar a escalada da guerra?


- Em Marrocos fizemos uma grande aliança progressista (nós éramos uma parte importante da aliança) e derrubámos a Monarquia praticamente sem violência.


- E na Argélia?


- Na Argélia o movimento avançou sozinho e falhou. As tensões entre os dois países desescalaram e porque nós éramos governo aqui, eles não mataram os nossos companheiros lá, alguns até foram exilados para Marrocos.


- E o que mudou com a revolução?


- Conseguimos fazer um programa de transformação parcial, coletivizamos a água e a energia e começámos uma reforma rural. Estávamos demasiado dependentes de agricultura vinda de fora para continuarmos a aguentar choques de fome. E por incrível que pareça, funcionou! A Sul, o movimento participou em levantamentos e revoluções na Nigéria, em Angola e na Namíbia, e estava a governar

em alianças. Mas depois aconteceu a Assembleia Sangrenta e, a nível internacional, o movimento foi reprimido na maior parte dos outros países. Foi nessa altura que os teus pais foram presos. Sabes do que estou a falar?


- Sei.

















- Ouve, Alexandre, eu canso-me muito rápido e rebuscar estas coisas todas do passado está a stressar-me um pouco. Vou-te pedir para pararmos por hoje.


- Claro, Fatima. Como preferires. Podemos falar outro dia?


- Sim, acho que sim. Mas da próxima vez traz a criança, que eu gostava muito de vê-lo. Como está a tua companheira?


- Muito bem.


- Trá-la também para eu vê-la. Vocês estão felizes?





















- Estamos muito felizes.


- Ainda bem. Para isto não ficar pendurado, depois a questão da Assembleia Sangrenta clarificou-se. Mas quem pode explicar-te isso bem é o Gianrocco. Eu envio-te o contacto dele. E também do Sukumar.


- Já tenho o do Sukumar, Fatima. Vou falar com ele nas próximas semanas.


- Manda-lhe um forte abraço e diz-lhe que me envie o seu último livro, que ainda não recebi.


- Digo. Queres marcar já a data para falar?


- Agora não tenho a agenda, Alex. Fazemos um plano nos próximos dias. Foi muito bom ver-te, saber que estás uma pessoa feliz, bonita, curiosa. Os teus pais ficariam muito felizes, Alex, por saberem que também queres saber o que eles fizeram, o que eles arriscaram. Eu estou muito feliz por falar contigo. Um beijo, meu querido. Shukran.


- Adeus, Fatima.



Não voltei a falar com a Fatima. Ela foi internada uns dias depois e morreu com cancro do pulmão passadas duas semanas. Antes de morrer, ela enviou-me um email com alguns contactos, entre eles o do Gianrocco Fatin e do Pepe Infante.



Blank open book

A Desglobalização instalou-se


O

Chancellor Henry Sacksville

sentou-se e refletiu em voz

alta sobre que o fraco consenso à volta do neoliberalismo: “colapsou definitivamente” e não apenas pelo facto de “ninguém ligar à Organização Mundial do Comércio, ao Banco Mundial ou ao Fundo Monetário Internacional”. “As transações globais”, disse, “quer financeiras, quer de matérias primas, manufacturas, ou bens e serviços, estão em queda há anos”. Desde os anos 80 do século passado que não trocamos tão pouco a nível global.

No rescaldo das eleições americanas, a não aceitação dos resultados eleitorais por parte de republicanos e da extrema-direita americana, levou a uma campanha de sabotagem da rede elétrica. E a nova administração acabou por, segundo o Secretário da Energia, Kyle DeSomber

lançar “a Energize, o maior pacote de energia descentralizada em grande escala de sempre, $200bi, que acabou por quebrar a pujança económica das exportações do maior produtor de petróleo e gás do mundo.

A independência da Crimeia, da Abkhazia e da Ossétia do Sul, soltando-se da Rússia, da Ucrânia e da Georgia, foi outro forte abalo na estabilidade do sistema de transporte de fósseis. Não tanto pela produção de petróleo em Serebryankse e Subbotina, ou de gás em Chornomoske, Dzanhkoi e Odeske, mas pela redução de acesso direto russo e ucraniano aos portos do Mar Negro, depois de anos de conflito e declínio da ligação fóssil russa com a União Europeia. As catástrofes climáticas no Qatar e Arábia Saudita comprimiram ainda mais a indústria e a OPEP, em poucos anos, perdeu o seu estatuto de player global.





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The Economist

As emergentes renováveis, após as intervenções públicas, tornaram-se em grande medida autónomas e com cadeias de produção curtas e, como disse o Secretário da Energia americano, “demasiado pequenas para falhar”.

A desglobalização política dera-se com a ascensão eleitoral do iliberalismo e do conservadorismo, à qual se somaram a ascensão social da extrema-direita e da extrema-esquerda. A desglobalização económica só ocorreu pós-Covid19. A crise gerada pela inflação (e ainda hoje se discute se a sua origem terão sido os preços do petróleo e do gás, a invasão da Ucrânia, os altos salários europeus ou os lucros desses anos) foi tratada como a crise financeira de 2008 ou a crise das dívidas soberanas. Ou seja, a economia global viu a disponibilidade de capital contrair-se enquanto o novo investimento se tornava principalmente público e nacional. A Reserva Federal e o Banco Central Europeu decidiram-se repetidamente pelo aumento das taxas de juros, reduzindo o rendimento disponível, a capacidade aquisitiva e de endividamento das economias, das empresas e das famílias, lançando em

pouco tempo a economia global em novo crescimento anémico. A crise da inflação transformou-se numa crise de dívidas públicas e privadas.

Sobre esta, como recordou o analista de risco Andrea Lloyd, “as catástrofes climáticas avolumaram-se e o edifício das seguradoras e resseguradoras ruiu - eram gigantes com pés de barro”. A Munich Re e a Swiss Re foram resgatadas e nacionalizadas, e por isso o PIB da Suíça contraiu 3% só nesse ano. A taxa de rejeição de novos seguros chegou aos 53% e fez o mercado de crédito entrar em pânico. Os estados voltaram a ter de emitir mais dívida pública. As agências de rating apelavam à contenção mesmo quando contenção só podia significar mais crise económica. O conflito entre governos e bancos centrais independentes agudizou-se.

Estados e governos deixaram de ouvir as agências de notação e a maior parte das entidades financeiras deixou mesmo de pagar à Standard and Poor, à Fitch e à Moody’s. Mas a liderar os bancos centrais ainda estavam as mesmas soluções em vigor desde os anos 70 do século passado. Assim, o apelo à contenção ainda teve o efeito




suficiente para travar o esboço de recuperação económica. A resposta foi austeridade.

A extrema-direita europeia estava no momento melhor posicionada para responder à situação e no descontentamento conquistou posições governamentais em diversos países europeus. Enterrou o European Green Deal (um pacote de investimento público que podia ter amortizado a crise económica com retorno efetivo) e usou boa parte dos fundos estruturais e do PRR para criar o programa Energia Europeia para os Europeus (EEFE). Levantaram as restrições ao investimento em petróleo e carvão e anunciou-se a construção do novo complexo nuclear europeu, mais 40 centrais, que estariam prontas décadas mais tarde. Mas não foi possível mobilizar investimento privado, apenas público, para este projeto. Para o eurodeputado italiano Ettore Gatto, “tentaram ressuscitar um morto e a única coisa que conseguiram foi criar mortos-vivos energéticos”.

Do lado migratório, segundo Rudd Eingarten, da ACNUR, o programa político implicou um novo acordo de migrações com a Líbia, com mais de


dois milhões de migrantes e refugiados depositados nesse território, o que tornou a Líbia “no maior campo de concentração e de morte da história”, contra um grande empréstimo do Banco Europeu de Investimento para restabelecimento de ligações energéticas.

As perseguições políticas na Europa tornaram o comércio instável e a violência interrompeu fluxos essenciais a um regresso à normalidade, como pudemos ver pelas cenas de violência nos parlamentos alemão, espanhol ou francês. Nas ondas de calor que se seguiram, 1500 trabalhadores morreram na Sérvia, na Bulgária e na Roménia. E desencadeou-se a onda de greves gerais para impor os horários de trabalho reduzidos no Verão. Mesmo com violenta repressão policial, os sindicatos mostraram uma força que não se via há décadas na Europa e impuseram a sua vontade, derrubando os governos em Belgrado e Sofia e fazendo as economias sangrarem, com menos produtividade e horas de trabalho (redução de 2h30 a 4 horas por dia).

Quando estas greves chegaram aos trabalhadores da indústria fóssil, que

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exigiam sistemas próprios de monitorização climática depois dos acidentes mortais no Golfo Pérsico, vários governos adquiriram uma parte importante das estruturas acionistas das empresas fósseis. Esta decisão aumentou salários e criou as novas regras laborais mas, principalmente, conseguiu baixar os preços dos gasolina, do gasóleo e do gás natural, que na altura batiam todos os meses os recordes históricos de preços.

Nessa altura atingiram-se os 36% de inflação na União Europeia. A banca reduziu ainda mais o acesso a crédito, face ao ressurgimento do Estado e às novas regras laborais. O acordo entre a União Europeia e os Estados Unidos para acabar com os paraísos fiscais, que também tinha como objetivo aumentar a receita fiscal, acabou por não ser tão eficaz e biliões acabaram por fugir.

O golpe definitivo foi mesmo económico: a contração e viragem interna da China, como resposta ao protecionismo americano, europeu e japonês. A redução de importações chinesas de energia, a redução de exportações e limitação ao investimento estrangeiro concluíram este ciclo.

Assim, desmontaram-se algumas das principais ferramentas da globalização: com a intervenção em grande escala dos governos nas políticas industriais - o IRA e o Energize nos Estados Unidos, a EEFE na União Europeia, e as políticas energéticas na China e na Índia -, e a intervenção do Estado nas maiores empresas, o poder laboral ressurgiu. Também voltou a violência política da extrema-direita e da extrema-esquerda. E a circulação internacional de capital acabou restrita.

Preços altos e a dificuldade de acesso a crédito minavam há anos o comércio internacional. Com o declínio do comércio, o sistema mundial de dívida afundou-se em incumprimentos. “O comboio da desglobalização demorou anos a arrancar, mas agora a sua inércia tornou-o imparável” concluiu o Chancellor Sacksville. Só a injeção de dinheiro barato nas economias teria podido salvar a globalização, mas não foi isso que aconteceu.

Agora, as pessoas odeiam os ricos porque têm aquilo que elas não têm e roubam nos supermercados para distribuir comida. Mas com cada vez menos comércio internacional, isso é o melhor a que podem

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aspirar. As prateleiras em muitos sítios já estão a esvaziar-se. A globalização está em queda e com ela a capacidade de criação de riqueza e desenvolvimento à escala planetária.


Temos de pensar a economia de uma forma mais desintegrada, mais primitiva, mais inacessível. Só a inovação poderá salvar-nos da recessão permanente. Vamos ter para comer o que produzirmos. Pela primeira vez em 180 anos não sabemos se poderemos continuar a publicar muito mais tempo.




Collapsing Dominoes Toy

3. A independência do texas

3. A independência do texas

Em Lisboa está muito calor. Apesar de não ser um ano de temperatura recorde (já aqui batemos os 50ºC mais do que uma vez), custa estar na rua. Corremos de jardim em jardim e sombra em sombra, e temos de parar para nos refrescarmos nos pontos de água espalhados pela cidade (agora há muitos), enchendo os copos de lata que toda a gente traz à cintura no verão. Há três anos foram levantadas as restrições de circulação nos picos de calor no verão, mas sei que não devia andar na rua a esta hora, mesmo não estando na idade de risco. Só que a pessoa que vou entrevistar só está cá dois dias e hoje é o último.


Consegui marcar um café com a Olívia Anwar, uma comunicadora e produtora de conteúdos de São Francisco, na República da Califórnia. Está a atravessar a Europa para falar com viajantes, diz que quer ser como o Homero e escrever uma nova Ilíada, desta vez contando as incríveis histórias dos refugiados que abandonaram as suas casas a milhares de quilómetros de distância, algumas há muitos anos e que finalmente encontraram casa no sul da Europa, em particular no interior rural.


Mas esse não é o assunto desta entrevista de hoje. O objetivo é perceber melhor o que aconteceu na América do Norte nos últimos anos: a guerra, as secessões e a nova realidade daqueles territórios e países. Ela é jovem (deve ter a minha idade, mas estudou bastante os anos da 2ª Guerra Civil dos Estados Unidos, ou a 2ª Guerra da Independência, dependendo de com quem falarmos.


A Olívia mandou-me uma mensagem instantânea a dizer que está atrasada. Fiquei a observar as ruas da cidade sob a sombra das árvores e dos toldos brancos. Está meia adormecida às 8 da tarde. Há uma ou outra loja aberta, principalmente as lojas de reparações. Aqui na rua Morais Soares há mais de 20 lojas de reparações de coisas antigas como frigoríficos, rádios, microondas ou computadores.


conseguem estar abertos porque nunca lhes faltam ares condicionados (para arranjar e arranjados). Também há uma grande biblioteca nova, onde antes havia uma loja onde se vendiam animais mortos para comer. Combinei a entrevista com a Olivia na Biblioteca.


Às vezes ainda é difícil de acreditar que há apenas alguns anos a maior parte dos materiais eletrónicos eram descartados e substituídos a grande velocidade. Hoje reutilizamo-los quase a 100%. Sei que também acontece porque não há tantos produtos novos como antes. Mas é mesmo difícil entender como é que alguém achava que era possível descartar tantas coisas tão rápido sem consequências.


Enfim, estas também são algumas das questões que vou colocando nas minhas notas quando olho para o presente e penso no passado sobre o qual estou a escrever.


Por exemplo: a novidade do mostrador público da temperatura de bolbo húmido. Em Portugal não serve de muito, e ainda bem. Indica que apesar da temperatura estar alta, não corremos risco de vida - como acontece todos os anos nos países asiáticos ou na América do Sul. Acho que só puseram aqui o mostrador para tranquilizar as pessoas que chegam da Índia e do Bangladesh, que ainda trazem o trauma coletivo de mortes na rua - e em casa - pela combinação de calor e humidade.


Por toda a avenida há placas nas várias línguas - português, inglês, hindi, nepalês, francês - que anunciam os negócios das pequenas lojas e também que agradecem e dão as boas vindas às pessoas recém-chegadas à cidade. Para comemorar as novas populações que chegam a Lisboa há todos os anos o festival da Cidade Nova, que parte da praça no topo da Avenida - a Praça da Revolução de Janeiro - e desce a Morais Soares, acabando na Alameda. No meio da avenida estão plantados ciprestes e também há umas pequenas alfarrobeiras, e outros arbustos coloridos. Têm um ar muito bem tratado. Todos os dias as equipas de “cirurgiões de árvores” e jardineiros cuidam das árvores de manhã e de




noite. Fazem registos precisos acerca do estado de saúde de cada planta.


Em Lisboa, as diferentes regiões e as encostas da cidade têm diferentes espécies plantadas, além das zonas de árvores e arbustos fruteiros. Há as tradicionais figueiras, zambujeiros, sobreiros e azinheiras, mas também há árvores que há alguns anos não eram consideradas nativas como os bordos negundo, as tamareiras, os cedros-do-Atlas, os pinheiros de Alepo, as arganas e os estranhos ciprestes do Saara. O próprio conceito de espécie nativa mudou, com a grande migração de plantas, animais e pessoas, e também porque o nosso clima já é mais parecido com o que há umas décadas existia no Norte de Marrocos.


Apesar de eu nunca ter feito este trabalho nas minhas rotações, a Lia já o fez durante vários anos intercalados. É um trabalho muito interessante, mas cansativo. Discutimo-lo muitas vezes, tanto em casa como nas reuniões do bairro, porque sempre que há problemas com as árvores, se começam a morrer, temos pessoas que entram em pânico.


Desde que estou aqui já passaram vários elétricos. Passa um a cada 10 minutos. Trazem as três carruagens ainda meio vazias. Daqui a poucos minutos passarão a seis carruagens e virão cheias de pessoas a caminho das suas três horas de turno vespertino ou de diversão.


Por vezes os elétricos especiais para transporte das colheitas também passam por aqui em direção aos pontos de moenda e entrega de comida: ali em baixo, atrás do cemitério e descendo até aos vales de Chelas está uma das maiores zonas agrícolas da cidade de Lisboa. Entre os campos e os edifícios-estufa produz-se comida para alimentar centenas de milhares de pessoas. Mas não chega, claro, e uma parte dos cereais vem do campo. Além das grandes áreas agrícolas geridas pela Assembleia da

Cidade, há também pequenas hortas de bairro, nos jardins e nos telhados verdes dos prédios. Por exemplo, este prédio aqui em frente onde estou tem pequenas árvores de fruta no topo.


Olivia toca-me no ombro, interrompendo os meus pensamentos.


É uma mulher nos seus trinta anos, cabelo pintado de verde e piercings no nariz e orelhas. Veste azul escuro com um casaco de linho e tem um gorro a cobrir-lhe a cabeça. Em Lisboa, o azul escuro é a segunda cor mais utilizada no verão, a seguir ao vermelho escuro que predomina. Cumprimenta-me efusivamente mas à americana, sem abraços.



Books on Wooden Shelves Inside Library

Entramos na biblioteca, onde nos sentamos a beber um chá gelado. Ela diz que a abundância de livros nas bibliotecas em Lisboa é impressionante. Explico-lhe que nos últimos anos os espólios das livrarias foram todos transferidos para as bibliotecas e que o grande número de bibliotecas se deve em particular à transformação intermédia das livrarias em espaços públicos e de abrigo do calor, quando foi criado o primeiro Comissariado do Calor de Lisboa.


Isso não aconteceu na Califórnia, que estava nessa altura a entrar na guerra civil, responde-me com alguma tristeza. Peço-lhe para começar a gravar a nossa conversa.


É dia 12 de Agosto de 2042, e encontro-me com Olivia Anwar, cidadã da República da Califórnia, criadora de conteúdos, que está neste momento a viajar pela Europa.


- Olá, Alexandre. É um prazer poder falar contigo.


- Olivia, como te expliquei, estou a fazer um levantamento do que aconteceu nas últimas décadas, é um projeto para mim e para a minha família, e agradeço-te a disponibilidade para nos falares um pouco sobre a Califórnia e os Estados Unidos, o que aconteceu estas décadas e o que se passa agora.


- Sim, claro. Queres que eu comece? Em que altura?


- Acho que era interessante perceber os acontecimentos que levaram à Guerra Civil e às secessões…


- Bem, acho que não há como escapar ao início disto tudo - se é que alguma vez podemos falar de início -, o fim do estatuto de superpotência e polícia do mundo dos Estados Unidos, com o January 6 de 2021 e a guerra de baixa intensidade dos anos seguintes. O terrorismo neonazi nos Estados Unidos começou a evoluir quando o partido Republicano se dividiu depois de mais umas eleições presidenciais. Começaram os atentados a igrejas e discotecas

durante uns seis meses, enquanto o sistema energético (em particular o elétrico) estava em constante ataque por sabotadores. A instabilidade no país era enorme, toda a gente tinha muito medo e muito ódio. Havia luxo obsceno no meio de pobreza, milhões sem-abrigo e dependentes de opióides. No meio disto, parte da sociedade vivia em medo permanente, alimentando e alimentando-se da violência de milícias religiosas identitárias nas ruas - contra sem-abrigo, contra mulheres, contra comunidades de pessoas negras e todas as comunidades que não eram heterossexuais brancas e cristãs.

Do outro lado, havia as milícias negras que se constituíam para proteger os bairros negros, em particular nos estados do Sul, mas também grupos violentos sabotavam o estilo de vida dos ricos, invadiam os hotéis e resorts de luxo, destruíam símbolos de opulência desde stands de carros até campos de golfe, ocupavam plataformas petrolíferas e sabotavam gasodutos. O estado violento, a polícia e os militares já não eram dissuasores o suficiente para travar extremistas de qualquer lado. As transformações internacionais tornaram a coisa ainda mais instável. Quando a Federação Russa se desagregou houve um súbito vazio internacional que fez com que os militares se concentrassem em criar um grande inimigo: a China.

No meio disto, tivemos oficialmente pela primeira vez mais de um milhão de mortes no primeiro verão de ondas de calor globais. Morreram principalmente idosos, crianças e os mais miseráveis da sociedade, mas os números seguramente foram muito maiores do que os oficiais. Na Europa, a questão com as grávidas e os bebés foi mais grave, mas aqui também houve um movimento “As nossas crianças”, que mobilizou as franjas evangélicas mais conservadoras, convencidas online de que tinha sido o governo a organizar aquilo, os abortos espontâneos, a morte dos toddlers. A reação internacional ao inferno de calor e ao caos que se seguiu foi criar o Tratado Mundial do Clima. Os Estados Unidos recusaram entrar, como muitos outros, mas ainda assim o governo deu um sinal público de alguma alinhamento, com a moratória de exploração de novas reservas de petróleo e gás.


- Na altura eram o maior produtor mundial?


- Sim, de petróleo e gás. Os estados que mais produziam eram o Texas, o Novo México, o Alasca e nós, a Califórnia. Depois da moratória, o Governador do Texas proclamou que iam criar um processo de independência, com o apoio dos presidentes das grandes petrolíferas e dos principais partidos herdeiros dos antigos republicanos. Toda a gente

achava que era só uma ameaça para romper a moratória, mas houve grandes atentados em Nova Iorque, em Washington D.C., em Atlanta e em Tallahassee, e o hacking aos sistemas de segurança. Pouco tempo antes tinha havido o golpe na China e os Estados Unidos deixaram de ter inimigos externos visíveis.


- Quais foram as consequências do golpe na China?


- O novo governo chinês declarou que cessaria todas as atividades no mar da China e em Taiwan e que iria construir um caminho de paz com todos, especialmente com os Estados Unidos… Com isso e com o Tratado Mundial do Clima, os Estados Unidos perderam um componente essencial do seu poder no mundo: o domínio sobre a energia. Sobravam o cada vez mais instável dólar e os militares… Mas sem um inimigo externo claro, não era possível continuar a contar essa história.


- A política mundial estava em ebulição, mesmo além da China…


- Sim, era o caos total. Estava a acontecer por todo o lado: além do golpe dos jovens comunistas na China, colapsou o governo nacionalista no Bharat, deu-se o Setembro Vermelho na Europa com a suspensão das transações de capitais, na África do Sul grupos de mercenários tentaram manter a produção de petróleo e carvão mesmo contra o governo que tinha assinado o tratado… Enfim, a loucura de que talvez te lembres.


- Sim, a informação era muito desorganizada e sabíamos que era pouco credível, demasiado lixo para se perceber com clareza o que se passava. Pior ainda com o DrokGPT e o que a Inteligência Artificial fez às grandes redes. Que impacto teve nos EUA?


- Acho que ajudou um país que já estava completamente polarizado desde o genocídio na Palestina a ficar ainda pior. Espalhava-se toda a propaganda à volta de tudo o que estava a acontecer na Europa: os Neoluditas, a ORCA, a Descarbonária… E principalmente coisas que nem sequer existiam. Isso eram tudo coisas que estariam a ser importadas para os EUA através das migrações e dos globalistas. Era nestes termos que os conservadores falavam: essa era a base da guerra cultural, que andava a ser plantada há décadas, e nessa altura dava frutos e militantes. O DrokGPT alimentou isso tudo. A torrente de propaganda funcionava porque ao mesmo tempo escasseavam produtos e


Antique library
Texas Flag Map

a country of our own

Almost 200 years later, free again

os combustíveis estavam mais caros do que alguma vez tinham estado. Estava tudo insuportável. Todas as fragilidades dos EUA - e eram mesmo muitas - vieram ao de cima.


- Mas como explicas a partição do país? Isso não aconteceu em mais lado nenhum…


- Bem, aconteceu noutros países, como na Rússia, em países africanos, no Golfo. Existiram e ainda existem várias tentativas de independência de partes de estados. Acho que as cidades-livres acabaram por ser válvulas de descompressão em vários países, mas no caso dos Estados Unidos só apareceram depois do conflito ter começado. A dimensão do país foi importante. Estamos a falar de um autêntico continente, com culturas e interesses contraditórios… A desigualdade, os ódios históricos entre Norte e Sul, as armas e a militarização da sociedade foram decisivos, mas não os únicos fatores.


- Qual achas que foi o fator decisivo?


- O declínio acelerado da indústria fóssil foi central para explicar o que nos aconteceu politicamente. O governo passou a ser visto como um inimigo ativo, como um opressor, mesmo quando fornecia coisas boas. A contaminação ideológica na imprensa e nas redes sociais, que durante décadas tinha servido para consolidar a sociedade no American Dream, agora servia para polarizá-la. É até surpreendente que os 50 Estados se tenham mantido unidos tanto tempo… Quando deixou de haver um inimigo externo evidente, já só tínhamos a nós mesmos para odiar. Foi nessa altura que o Texas anunciou a sua secessão e tudo desmoronou…


- Mas não foi só o Texas…


- Quando o governo texano anunciou a formação da República do Texas, a Florida, o Alabama, o Novo México, o Louisiana, o Mississippi e a Geórgia, quer dizer, os estados do Sul, anunciaram referendos à independência. O Oklahoma, o Arkansas e a Virginia Ocidental começaram os seus próprios processos institucionais de independência também. O Presidente americano mobilizou as tropas, ocupou os congressos de todos estes estados e fez um ultimato ao Texas para que acabasse com o processo. As guardas nacionais em todos estes estados ficaram do lado do Governo Federal. Houve confrontos com as milícias de extrema-direita, que num primeiro momento foram derrotadas sem dificuldade. Inicialmente, quem dominava eram as milícias nacionais cristãs, os Nacris, mas mais tarde as Ancap





acabaram por tornar-se mais fortes. Depois do chamado “Texit”, o novo governo do Texas formou o seu próprio exército. O Texas já era o segundo estado com mais militares do país, mas o governo independentista juntou a estes as milícias, e até propôs ao México - que irónico! - que fizessem uma federação a quatro, com o Novo México e o Arizona. O impasse durou alguns meses. Pela primeira vez em quase um século houve greves gerais nos Estados Unidos por falta de comida. O governo começou a distribuir comida diretamente à população

e a introduzir os transportes públicos e a energia gratuitos, enquanto

recrutava soldados. Naquele momento de caos económico, muitos

aceitaram juntar-se às forças armadas para conseguirem acesso aos

serviços que nunca tinham tido na vida. Entretanto, o MERs-CoV foi

detetado em gado no Brasil e começou o embargo global ao comércio

de carne, o que fez com que a questão alimentar ficasse ainda mais

difícil. Os secessionistas acusaram o governo americano e a

Organização Mundial de Saúde de terem inventado a crise para

dificultar ainda mais a vida das populações. O Texas rejeitou o

embargo internacional de carne e tentou distribuí-la, mas não

conseguia descarregá-la nos vários portos internacionais (que na

verdade se recusavam a receber todos os navios vindos do Texas,

sob ameaça do governo americano).


(continua)…


Declaration of Independence

Intention of Independence

4. A II Guerra civil americana

4. A II Guerra civil americana

Era tanta a informação que eu pedi à Olivia para fazermos uma pequena pausa. Entraram as crianças da escola para terem aulas na biblioteca. Há muito tempo que as bibliotecas deixaram de ser locais silenciosos. Quando se tornaram lugares muito públicos e frequentados, passou a ser normal haver barulho. As aulas nas bibliotecas são de história, geografia, ciências e outras, muitas vezes com as próprias bibliotecárias a ensinarem. Tornaram-se com os anos grandes organizadoras da informação e da educação, em sintonia com as novas escolas teóricas e profissionais, e também em resposta ao desaparecimento da maior parte da imprensa. A barulheira acaba quando o Leo, bibliotecário do dia, entra vestido de pirata. A aula hoje promete! Pede-nos desculpa e encaminha as crianças para uma sala que diz “Passado”. A Olivia está muito divertida com tudo aquilo e eu tento recuperá-la para a nossa conversa.



- Então o Texas declarou independência e vários outros estados preparavam-se para fazer o mesmo. Mas a Califórnia tradicionalmente não defendia as mesmas posições… Qual era a posição da Califórnia nesse momento?


- A Califórnia nunca esteve do lado do Texas! Mas estava frontalmente contra o início de uma guerra civil e contra a ocupação dos órgãos governativos dos restantes estados. As eleições presidenciais tinham sido suspensas, mas a Califórnia manteve as eleições para Governador e Senado estadual. A plataforma que venceu, de independentes que concorreram contra o Partido Democrata, defendia a recusa de intervenção militar noutros estados.


Quando o presidente mandou o exército invadir o Texas e começou a guerra, muitas divisões militares por todo o país amotinaram-se. Em particular as que tinham novos recrutas eram muito

indisciplinadas. Do lado dos secessionistas, a maior parte dos militares do Texas tinha aderido ao Texit e estava a servir neste momento nas forças armadas da nova república. Foi nessa altura que muitas bases militares no estrangeiro começaram a ser abandonadas. Os Marines e a Marinha abandonaram quase todas as bases, e o Exército mais de metade, mas tentaram manter as bases em África - no Niger, nos Camarões, no Djibouti e na Somália. A Baía de Guantanamo em Cuba, foi uma das mais famosas bases a fechar. Depois começou a invasão sangrenta e os texanos resistiram violentamente nas batalhas de Texarkana, de Wichita Falls e de Boise, com as escaramuças espalhadas ao longo das fronteiras norte e leste.


- E as tropas da Califórnia?


- A Guarda Nacional da Califórnia e as unidades militares que estavam ali sediadas recusaram obedecer às ordens federais de marchar através do Arizona e Novo México e invadir o Texas pelo Oeste. Por outro lado, começaram gigantes incêndios em Abril e centenas de milhares de pessoas tiveram de ser evacuadas do Norte da Califórnia - e foram principalmente as Forças Armadas do Estado que o fizeram. Também nesse momento o presidente americano ordenou a militarização da indústria fóssil, mas a Califórnia encerrou as suas infraestruturas, até porque já tinha assinado há muitos anos o Tratado de Não-Proliferação Fóssil. A Califórnia não tinha até então feito qualquer ameaça secessionista, apesar dos apoiantes do Calexit se mobilizarem por isso.


- Então como é que se deu a separação?


- A primeira incursão do exército americano no sul ficou atolada sem grandes resultados, porque os combates mantinham-se nas zonas de fronteira do Texas. Houve uma fase morna que durou quase

um ano, sem grandes avanços. A marinha americana estava melhor organizada que o exército, e bloqueou os navios do Texas, em particular os petroleiros e metaneiros, tendo afundado vários. Mas as cheias e as ondas de calor interromperam vários ofensivas e batalhas - apesar de se manterem sempre escaramuças ao largo das fronteiras e também ações das milícias noutros estados. O furacão Lukoil matou mais soldados do que os combates nesse ano! Foi por essa altura que o fumo dos incêndios da Amazónia cobriu toda a zona sul dos Estados Unidos durante dois meses e meio. Nunca estava sol, o mais claro que tínhamos era um céu laranja escuro.


- E mesmo assim continuaram os combates e o Texas mantinha-se irredutível?


- Sim. Militarmente, o Texas era incapaz de avançar para fora do seu território, mas o tempo parecia jogar a seu favor. A violência entre americanos começava a ser mais difícil de defender do lado de Washington, em particular quando havia um nível de pobreza tão alto e escassez de bens, quando as cheias e ondas de calor não davam tréguas e exigiam muitos recursos e pessoas - para o combate a incêndios, evacuações, cuidados de saúde - eram deixadas para segundo plano perante o esforço de guerra. As unidades militares insurrectas foram desmanteladas, e o governo tentou consolidar o poder nos outros estados independentistas, lidando com as milícias religiosas e de extrema-direita e restabelecendo uma parte do poder estadual sob proteção federal, acabando com as vias institucionais de secessão.


A violência miliciana, em particular dos Nacris, dos Alt-Knights e dos 6MWE contra as comunidades negras e LGBT+ permitia ao governo continuar a retratar os secessionistas como seitas religiosas ultra-conservadoras, o que era parcialmente verdade. Com forte apoio militar foi possível recriar instituições nos estados independentistas, criar novos governos de aliança entre democratas e a parte mais centrista dos antigos republicanos, agora organizados no novo Partido Federal.


Mas a norte, a crise desencadeou motins em Boston, Detroit, Seattle, Chicago, Nova Iorque e Portland. Os soldados desmobilizados eram particularmente ativos. A ocupação do canal do Panamá pela Marinha teve um impacto grande, encarecendo ainda mais os produtos. O governo sentiu que precisava de agir ou ia perder a guerra e provavelmente o país.


A migração para o Canadá não parava de aumentar, e nesta altura já eram milhões de refugiados e desertores lá em cima. Também corriam os rumores de que havia campos de concentração para as comunidades negras, indígenas e LGBT+ no Texas.


Quando no ano seguinte houve uma ameaça dos texanos de usarem as bombas nucleares táticas que tinham, o exército americano partiu para a ofensiva. Num ataque relâmpago, usou armas nucleares de pequena escala em várias bases militares, inutilizando o armamento texano, e lançou uma grande ofensiva para tomar o Pantex, mas o resultado não foi o esperado - nem militarmente, nem politicamente. Há quem diga que foi uma mentira texana por parte do extremista Terry Rousseau para forçar os Estados Unidos a atacar, mas nunca chegámos a perceber.


Depois das bombas, o exército americano apenas conseguiu ocupar menos de metade do Texas: tomaram Dallas mas não conseguiram avançar até San Antonio, Austin ou Houston. A marinha texana conseguiu manter os portos. Não foram encontrados quaisquer campos de concentração. E foi aí que aconteceu uma coisa estranha: começou uma onda de simpatia pelo Texas que correu o país, com novas insurreições nas forças armadas e a difusão muito aberta da ideia de que esta era uma guerra de agressão, uma ideia que começou a ser defendida mesmo entre democratas. Ou seja, Washington tentava uma guerra na frente, mas fomentava uma revolução nas costas. Seattle e Portland declararam-se cidades livres, as primeiras no território, juntando-se a cidades de outros países. Foi nessa altura que a Califórnia organizou um referendo e anunciou a sua independência de Washington.


- E isso foi surpreendente! Mudou o rumo do conflito?


- Sim, no início do Ano do Leão a guerra era extremamente impopular para os Estados Unidos. A metade sul do Texas teimava em recusar a rendição mas mesmo na parte Norte os conflitos urbanos nunca pararam. Os combates tornaram-se muito violentos. A guerra civil tornou-se

uma guerra de guerrilha, expandindo-se cada vez mais para outros estados. Nas cidades dos estados do Sul, a guerrilha secessionista começou a atacar o exército e a provocar fortes prejuízos. Ao mesmo tempo, grupos bem treinados começaram a destruir a infraestrutura fóssil do Sul do país. Mais tarde soubemos que eram diferentes unidades do Exército Verde, do movimento ecomunista. Na Florida, no Alabama e Louisiana as estruturas, portos de petróleo e de gás natural, gasodutos e oleodutos foram sujeitos a uma campanha sistemática de seis meses de destruição, e isso resultou num sistema fóssil incapaz de operar. Muitas das bases militares americanas que ainda estavam abertas foram fechadas nesta altura, muitas por exigência dos governos locais.

- E nessa altura acabou a guerra?


- Sim. A contrapartida foi a entrega de todas as armas nucleares e o arsenal BCQ texano, o que eles aceitaram. O Louisiana, a Florida, o Mississippi, o Arkansas, o Tennessee e o Novo México tiveram liberdade para se tornarem estados independentes. O Texas propôs aos novos estados independentes criarem uma confederação, mas nenhum aceitou.


- Com o fim da guerra civil, como passou a ser a vida nos novos territórios?


- O novo governo da Califórnia fez um acordo de fronteiras abertas com o México e criou o que

chamámos afectuosamente de Mexicali (o Acordo foi assinado ali mesmo na antiga fronteira entre Calexico e Mexicali). Parte do acordo era o México fechar a sua indústria fóssil, incluindo as plataformas das empresas americanas que estavam arrestadas desde o início da guerra. Nesta altura, já mais de 10 milhões de refugiados subiam da América Central e precisavam da nossa ajuda - e nós da ajuda deles. Houve uma profunda transformação na agricultura e mesmo nas áreas mais tecnológicas. A escassez de água e de energia levaram a uma grande modificação social. Mas tudo isto aconteceu enquanto continuávamos com outra guerra.


- Outra guerra?


- Sim, a guerra permanente que o clima nos fazia, com cheias, secas, ondas de calor e incêndios florestais todos os anos. Precisávamos dos imigrantes para fortalecer e transformar a nossa agricultura, tínhamos cada vez menos tempo para trabalhar por causa do calor e precisávamos


- E na Califórnia?


- Na Califórnia, depois de mais um verão de terror entre chamas e ondas de calor, as tensões por causa dos refugiados, quer do Norte, quer do Sul, aumentaram. O governo encerrou fronteiras e decretou o isolamento californiano. Mas o povo não queria. Foi aí que a revolução começou, levando ao derrube do governo do Calexit. Mas era um movimento maior. Ocorreu nas mesmas semanas em que eventos como estes se desenrolavam em França e no Brasil também. Washington também se apercebeu da grande mudança que estava a acontecer. Os chefes do Estado Maior das Forças Armadas dos Estados Unidos recusaram-se a continuar a guerra e forçaram o presidente a declarar um cessar-fogo e demitir-se.



muita gente, também para realizar grandes assentamentos de terras e transformar a nossa paisagem. Além de um enorme trabalho mecânico, era um trabalho humano, de manutenção diária. Precisávamos de milhões de pessoas para pensar e organizar o futuro, porque nós e elas éramos o futuro que havia. Ainda tínhamos muita capacidade tecnológica mas precisávamos de muito mais gente. Nos Estados Unidos houve finalmente novas eleições presidenciais e foi eleita a primeira presidente “independente”, sob a promessa de paz, cuidado e o fim do caos climático, prometendo literalmente um novo sistema político e económico.


- Helen Vargas.


- Sim, Helen Vargas. Ela provocou uma grande mudança no pós-guerra. Acabou com o sistema arcaico do Colégio Eleitoral e passou a vigorar o sistema “uma pessoa, um voto” no que restava do país. Houve novas adendas à constituição e os estados perderam autonomia.


- Os que restavam…


- Sim, os principais estados independentistas já tinham saído mesmo… A produção energética foi socializada, foi criado um gigante programa de obras

públicas, o agora famoso “Climate Corps”, e instituiu-se o Serviço de Saúde Universal. A maior parte das cidades proibiu a circulação automóvel. O que pouco antes parecia impossível agora era banal.


- Como é que achas que isso foi possível?


- Porque a guerra, a escassez, a fome, as perdas, o caos climático abriram novas perspetivas. Os anos de guerra fizeram com que o papel dos Estados Unidos no mundo agora fosse outro. A ideia do excepcionalismo americano estava acabada. Copiávamos o que a França, a China, o Brasil, o que outros estavam a fazer que parecia funcionar… O resto do mundo também estava no meio de outros conflitos e caos. Várias cidades americanas aderiram à federação de cidades livres e foi feito um acordo para que as pessoas desses territórios votassem em eleições federais e, dependendo dos estados, até em eleições estaduais - embora mantivessem um elevado nível de autonomia e autogestão financeira e social. Houve um referendo para a entrada dos Estados Unidos no Tratado Mundial do Clima e para adoptar a sua moeda, o Carbo. Venceu por pouco o Sim. Nesse voto foi decisiva a transformação da maior parte das Forças Armadas e dos veteranos da guerra em forças de proteção civil e no Climate Corps.


- E as outras novas repúblicas?


- A República do Texas passou, pouco depois, a denominar-se a República Cristã do Texas, e tornou-se um sítio muito conservador, a que muita gente chamava de Gilead - por causa das memórias do livro de Margaret Atwood. Houve uma revolta em Austin, que quis tornar-se uma





cidade livre, mas foi esmagada pelos texanos. Depois, houve um enorme êxodo das populações negras e das cidades para o México, o Novo México e o Louisiana.


- Mas o Louisiana também se tinha tornado uma República…


- Não, entretanto o Louisiana pedira a reintegração nos Estados Unidos. O Texas fechou as fronteiras, tentando impedir que uma parte da sua população - em particular mulheres - continuasse a fugir. O “triângulo evangélico”, composto por Arkansas, Mississippi e Tennessee reforçou o seu pendor agrícola e religioso. Os outros estados independentes tornaram-se pequenos países, alguns juntaram-se ao Tratado Mundial do Clima e voltaram a ter relações normais com os vizinhos. As novas identidades nacionais, além da religião, eram muito pouco marcadas e o novo governo americano tinha de facto aberto uma nova página… O acordo social anterior estava completamente destruído e era preciso construir um novo.


- Mas havia na altura um problema de falta de gente…


- Os Estados Unidos tinham perdido 100 milhões de habitantes na guerra da secessão, mais de um terço da população. Não podemos esquecer que a Califórnia, o Texas e a Flórida eram os três estados mais populosos. Havia um problema de falta de gente, mas havia principalmente um problema de refugiados em grande escala: e muitas das novas repúblicas não os queriam.

A nova presidente dos EUA foi duramente testada quando permitiu a entrada de 40 milhões de refugiados climáticos (vindos do Canadá e também da América Central). A contrapartida foi coagir a maior parte destes refugiados a fazer trabalho agrícola no Iowa, Nebraska, Kansas, Indiana e Carolina do Norte. Foi uma cedência às franjas mais conservadoras.





No entanto, o movimento ecomunista já tinha sido descriminalizado e começou a organizar vários sindicatos e comissões agrícolas no país e a organizar-se enquanto força política, embora Vargas tivesse muita força nessa altura. Foi nessa altura que ocorreu o jubileu internacional e começaram os cancelamentos de dívidas externas, um enorme alívio para vários países mais pobres, o que até reduziu as migrações.


- E como correu a entrada dos Estados Unidos no Tratado Mundial do Clima?


- Foi feito um referendo e venceu o “Sim”, mas por pouco. Houve muito descontentamento na altura, e temeu-se uma nova guerra, houve mesmo motins. Os estados e cidades pertencentes ao tratado passaram a ser obrigados a receber refugiados quando tinham condições para tal. A comoção social foi bastante pior do que quando foi proibida a venda de carros a combustão interna - porque com os transportes públicos gratuitos esta questão tinha-se tornado muito mais residual. Mas as primeiras Rotas do Futuro acabaram por ser menos problemáticas do que se antevia e o fluxo de entradas e saídas tem-se estabilizado, com muita organização, para que toda a gente chegue ou parta em segurança e possa ficar, se assim o desejar.


- Não no Texas?


- No Texas e no triângulo evangélico não, claro! Continuam sem pertencer ao tratado. Passamos o tempo a ouvir que aquilo não está a correr bem. Há sempre muita gente a fugir e a contar o que se passa: da degradação social e do autoritarismo da igreja e do governo, da perseguição e submissão das mulheres. Neste momento o Texas só tem uma população de cerca de 15 milhões de pessoas.


- E agora, como estão as coisas?


- Os anos imediatamente seguintes ficaram marcados pelo Grande Julgamento. Foi nessa altura que ficámos satisfeitos por já não sermos Estados Unidos da América. Foi bárbaro o que aconteceu, um horror. Mais de 50 CEOs e administradores de petrolíferas foram executados nos estados onde ainda havia pena de morte. Na República do Tennessee usaram mesmo a velha cadeira elétrica. Na Califórnia só estiveram presos alguns anos.



- E o clima?


- As coisas têm melhorado nos últimos anos. Houve um abrandamento dos incêndios e ondas de calor e a agricultura tem recuperado, também com a expansão da agricultura urbana. A Califórnia tem relações comerciais cordiais com os Estados Unidos, e existe algum comércio internacional, principalmente de alimentos vindos de e para a América do Sul e de alguma tecnologia que vem da Ásia. A nossa frota, tal como a dos Estados Unidos e até uma parte da texana, é composta por grandes veleiros que usam um mix de energia eólica e solar, mas a verdade é que é os barcos são apenas uma fração do que já foram, porque quase metade só servia para transportar petróleo, gás e carvão. O Atlântico Norte tornou-se muito perigoso e às vezes intransitável de Agosto a Janeiro, por causa dos furacões, e mesmo na nossa costa Oeste temos apanhado furacões que atravessam terra vindos do Golfo do México. No Pacífico, a época de tufões tem-se expandido, agora é entre Maio e Janeiro. As janelas de navegação segura estão muito mais pequenas, mas tentamos aproveitá-las. Os caminhos de ferro mais que triplicaram entre o México e o Canadá, cortando toda a América do Norte, e a aviação está basicamente limitada ao combate a incêndios e ao transporte médico de urgência. A maior parte dos aviões em circulação são antigos jatos privados e aviões militares, já que a indústria aeronáutica foi convertida para a produção de infraestrutura energética e de transportes terrestres.


- E a situação atualmente no Texas?


- O Texas é o último reduto da indústria fóssil no continente, ainda têm transportes públicos, camiões e carros a gasolina e gasóleo, mas são relíquias. A maior parte da energia deles é renovável também, mas a produção fóssil ocupa áreas agrícolas produtivas, os terramotos por causa do fracking estão sempre a acontecer e a danificar edifícios e infraestruturas. O gás faz com as pessoas estejam muito mais doentes (e lá eles continuam a não ter médicos e enfermeiros para toda a gente). Mas o pior tem sido mesmo a Florida.


- Então?


- São catástrofes sem parar. Quando não são 3 ou 4 furacões por ano, são ondas de calor letais, muito mais f

requentes que no resto do continente (e a população mais velha é ainda mais vulnerável), surtos de chikungunya e dengue durante todo o ano e o declínio da água doce. O nível médio do mar já subiu entre 10 e 30 polegadas [25 e 75 cm] em alguns locais como Pensacola e Vaca Key, destruindo centenas de milhares de casas na costa. Há subidas repentinas que chegam aos 2 metros de altura. Morrem dezenas de milhares pessoas todos os anos. Mais de 2 milhões de pessoas tiveram de abandonar o litoral. No caso de idosos, muitos regressaram aos seus estados de origem. Os crocodilos passaram a andar por todo o lado.


- Em Miami em particular, a situação é grave?


- Miami é uma cidade semi-fantasma! Perdeu dois terços dos habitantes. Há sempre cheias em algum sítio, mesmo

com todas as medidas que foram tomadas, os diques construídos, as bombas permanentemente a bombar água. É um lugar inviável.


- Ainda há lá gente?


- Sim, há milhares de pessoas que insistem em ficar. Por isso se declararam recentemente uma cidade-livre, porque não aceitam a evacuação. Mas a Florida não tem sequer agricultura para a sua população, que está a diminuir todos os anos. Acho que é inevitável que a maior parte das pessoas abandone o território.


- E a tua terra, São Francisco?


- Está diferente. O Embarcadero já foi abandonado à água, com o Ferry Building e o Pier 29 parcialmente submersos. São Francisco já não é a cidade do nevoeiro que sempre foi: no verão já só aparece uma ou duas vezes por semana, o que está a destruir uma parte dos animais e plantas, que também sofrem com o aumento de temperatura e a seca. Os grandes incêndios anuais pintam o céu de vermelho e laranja, por vezes mais do que um mês de seguida. Tens de sair à rua de máscara na época de incêndios, mas há muitas pessoas com dificuldades respiratórias que têm mesmo de usar máscara de oxigénio para estar na rua. Nos últimos cinco anos a situação tem melhorado… como aqui também, não é?


- Sim, Portugal e a Califórnia têm climas similares, mediterrâneos. Aprendemos isso em Climas e Crise Climática nos primeiros anos da escola. E a situação parece estar um pouco melhor, se não contarmos com o calor dos últimos dias…


- Acho que acabamos por ter chegado a sítios e tempos similares. Fazem-nos falta estas bibliotecas todas… mas continuamos a ter Hollywood em Los Angeles.


- Já não nos chegam cá tantos filmes.


- Sim, a guerra civil parou um pouco a indústria e isso abriu muito espaço ao cinema de outros países também. Mas agora temos finalmente pequenos cinemas e teatros locais onde podemos ver arte de outros sítios. A indústria é mais pequenas. E isso é bom. A fixação com a América e estar sempre e olhar para dentro era algo que tinha de acabar. Hoje, ser californiano, americano ou mexicano não tem tanto significado. Nascemos ali, como podíamos ter nascido em qualquer outro sítio. E recebemos pessoas em fuga, como tantas tivemos de fugir também. E o que temos, principalmente, é umas às outras. Ah! E a comida está mais picante, há menos vinho e mais cerveja.


- OK, Olivia. Foste uma ajuda preciosa.


- OK! Tenho de ir, vou jantar com uns viajantes do Bangladesh que chegaram na última caravana a Lisboa, era interessantes também falares com pessoas destas.


- Sim, de certeza que sim. Olha, muito boa sorte com as tuas viagens e manda notícias sobre a obra em que estás a trabalhar.


- Sim, claro. Foi um prazer, Alexandre.

5. caixas e cartas

5. caixas e cartas

Enquanto tentava organizar a vida para as próximas entrevistas, reabri algumas das caixas dos meus pais. Depois de tanta informação acerca do contexto global, queria olhar para a Europa e perceber o que aconteceu aqui. Como fora, houve uma sucessão de crises e grandes transformações. Só me lembro de algumas das coisas até ao ano das grandes ondas de calor, e melhor daí para a frente, quando já era adolescente.


Os papéis tinham muito pó, o que me fez ter um mau ataque de tosse. Lembrou-me de como passei a infância a tossir, com asma e alergias que o médico dizia serem por causa dos incêndios florestais. As temperaturas altas e os meses consecutivos de incêndios florestais na Europa tiveram um forte impacto na saúde de toda a gente, mas sobretudo nas pessoas mais novas e mais velhas. O pior ocorreu nas crianças que nasceram nos piores momentos, como 2026, 2029 e 2034.



Abri uma janela e pouco a pouco passou a tosse. Agora há redes em muitas das janelas, e redes mosquiteiras para as camas por causa dos mosquitos da malária e Zika. Liguei o gira-discos da AKAI e pus a tocar um velho disco do meu pai (fiquei com todos), do Fela Kuti “Noise for Vender Mouth”. O velho aparelho tem um som incrível e é mais um eletrodoméstico recuperado. Há uma década, com a interrupção do transporte em grande escala de eletrodomésticos e com a interdição de fazer produtos que se estragavam de propósito, formaram-se escolas para ensinar como arranjar toda a espécie de aparelhos elétricos e mecânicos. Agora são muito procuradas, as “Academias da Reparação”. Também as lojas de reparação aparecem como cogumelos. Arranjam tudo: máquinas de cozinha, de escrever, aparelhos de som, televisões, vídeos, motas e até carros elétricos. Segundo me dizia o meu pai, agora há coisas que não se via há décadas. Com a redução do acesso à internet e com o regresso de velhos discos em vinil e cassetes, muita música antiga voltou, assim como os clubes de filmes.


Infelizmente o meu pai não era uma pessoa muito organizada. Encontrei vários cadernos de cores diversas, agendas e resumos de reuniões, muitos papéis avulsos soltos em folders. Um folder plástico “Ano 1.8” chamou-me a atenção. Abri-o e espalharam-se pelo chão vários papéis. O primeiro que apanhei era um panfleto em papel grosso e brilhante, daquele que já quase não se vê. O meu pai tinha tomado notas em vários dos documentos, às vezes comentários divertidos ou irónicos, riscos e outros, anotados a caneta vermelha.



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Havia uma carta escrita à mão (uma raridade!) pela minha mãe ao pai dela.



Olá, pai. Escrevo-te para me despedir. Vou estar ausente durante algum tempo e não sei quando nos voltaremos a ver ou a falar. Lembras-te de quando falámos sobre o que era ter vivido durante uma guerra? Já não preciso especular, pois estamos metidos na maior guerra que alguma vez enfrentámos. Eu sei que estás com esperança por causa das recentes mudanças políticas, mas eu sei que será preciso mudar muito mais do que foi recentemente prometido. É bom, claro, mas isto devia ter acontecido há 20 anos e não agora, quando tudo está a cair.


Mesmo agora, eles continuam a não fazer tudo o que é preciso. Não estão a matar as futuras gerações metaforicamente, estão a matá-las literalmente. Quando eu vi aquelas mães e pais que perderam crianças para o calor a suicidar-se frente ao parlamento, decidi que não posso ficar à espera que um desastre aconteça ao Alexandre. Vou abandonar a Liga e a Última Geração. São sítios importantes para formar pessoas, e temos formado muitas, mas é preciso mais, e eu sei que há mais.

Não há dúvidas sobre o que vai acontecer se não arriscarmos tudo agora. Eu sei que sempre me pediste que não me expusesse, que, se possível, ficasse na retaguarda, a escrever, ou que tentasse a política institucional, mas não dá. As essas portas já foram bater milhões de pessoas, já perdemos décadas, um desastre para a nossa espécie ter ficado tanta gente atolada nesse pântano. Eu estou viva neste momento e ainda há esperança, por pequena que seja. A catástrofe deste ano não dá mais esperança do que antes, mas pelo menos os fachos foram varridos na enxurrada. O problema é que o que aconteceu agora vai voltar a acontecer e por isso temos de nos lançar de cabeça em mudar tudo enquanto há tempo. Temos de derrubá-los agora, temos de desmantelar o seu poder agora. Em termos práticos, quero dizer-te que o António vai ficar com o miúdo. Ele vai afastar-se para poder tomar conta dele e para fazer outro trabalho político complementar, que não é o que eu vou fazer. Falei com o António e acho que vocês os três deviam ir viver juntos. Não faz sentido ficares nessa casa gigante sem a mãe, e ele também precisa ajuda com o miúdo.


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Sabes, acho que vai ser uma aventura. Estou mais excitada do que temerosa. Sinto-me um pouco culpada por deixar o Alexandre, sinto que sou uma má mãe. Mas se eu não for, quando tanto tem de acontecer em tão pouco tempo, que pessoa serei eu? Não a pessoa que cresci a pensar que era, de certeza. Tenho medo. Tenho medo do que me pode acontecer. Tenho mais medo do que vai acontecer se não ganharmos. Tenho ainda mais medo de perdermos sem sequer termos tentado ganhar a sério.


Nada mais será igual. Não vou ficar sentada a assistir ao fim do mundo quando tenho energia, imaginação e coragem para tentar ganhar um futuro para todas nós. Se algo me acontecer, sabes que eu aprendi contigo e que tenho e sempre tive a cabeça no sítio certo. Neste tempo, ter a cabeça no sítio certo e não ser radical é impossível. E se inventarem mentiras sobre mim, nunca te esqueças que eu nunca faria nada contra pessoas inocentes.


Espero que saibas que pensarei em ti e na mãe, além do António e do Alexandre, enquanto estiver fora. Tudo o que fizer farei pensando em vocês.


Um grande beijo, Marta.





A Lia e o António entretanto voltaram para casa. A Lia chamou-me e fui ter com ela à cozinha, para lhe contar também da descoberta da carta da minha mãe. Ela tinha ido buscar detergentes e azeite na bicicleta elétrica e pousou os frascos de plástico grosso em cima da mesa. Há menos azeite disponível, a recarga foi de apenas dois litros, quando normalmente é de cinco. Uma nova praga está a afetar os olivais. Como a Lia não tinha levado outros frascos recarregáveis, não tinha podido trazer o restante em óleo de colza. As recargas de detergentes para a máquina da loiça e para lavar o chão, no entanto, tinham vindo.


Lembrei-me que as primeiras leis contra a produção de materiais de plástico e papel descartável também vinham do “Ano 1.8”, quando os sistemas de venda tiveram todos de mudar. Lembro-me bem da grande mudança que foi passarmos a ter sempre de levar connosco tudo o que precisávamos para trazer para casa o que precisávamos: fossem garrafas de vidro, garrafas de plástico grosso, sacos de ráfia ou de pano. Eu era adolescente. No início foi muito confuso, e muitas vezes tínhamos de voltar a casa para ir buscar algo onde transportar as coisas, mas com o tempo habituámo-nos. Agora planeamos sempre o que vamos buscar antes, e sabemos exatamente o que levar (o que não quer dizer que haja sempre o que queremos). Cozinhei soja frita com arroz para o jantar e fomos deitar-nos sob a rede mosquiteira, onde reli a carta da minha mãe, com lágrimas nos olhos.



6. 1.8 e a revolta da

Inteligência Artificial

6. 1.8 e a revolta da

Inteligência Artificial

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Acordei cedo, e ainda antes da 1h comecei a preparar o pequeno almoço. Tínhamos um pouco de café da ilha de São Jorge, coisa rara. Li algures que nos próximos anos vai haver mais café. As cheias no Brasil e na Colômbia e a seca na Índia interromperam quase totalmente o comércio nos últimos quatro anos, mas entretanto fomo-nos habituando a alternativas que já existiam como o chá preto ou a chicória. Não é a mesma coisa, mas dá para ficar mais desperto pela manhã. Há alguns anos que não temos crises alimentares e fomes globais como as que houve no passado, mas há várias coisas a que estávamos habituados que simplesmente desapareceram. Felizmente há outras coisas novas no seu lugar. Como o meu pai me dizia, “agora é menos igual, o que comemos”. Quando faltou o café, muita gente teve de deixar de tomar de um dia para o outro. Só estava disponível no mercado negro. Eu lembro-me bem de ter dores de cabeça durante umas duas semanas e andar sempre cansado quando desapareceu o café pela primeira vez. Tinha muitas pessoas amigas na mesma situação, mas tivemos que lidar com essa realidade. Tudo isto eram problemas relativos, claro. Se o vício do café acabou por se resolver em pouco tempo, as falhas nas drogas (legais e ilegais) foi muito mais grave e com consequências muito piores. Levou muita gente ao desespero e a procurar substitutos muito piores, sendo mais uma importante causa de morte.


A Lia acordou e ajudou-me com o resto do pequeno almoço: papas de aveia que tinham ficado de véspera e torradas com azeite. Enquanto comíamos, ela fez-me a lista das coisas para apanhar na horta. A nossa horta de Santa Apolónia já tem mais de dez anos e ocupa o que eram os jardins do Museu da Água e da Biblioteca de Santos-o-Novo. A vala da ribeira de Santo António corta a meio a nossa horta, correndo com água no Inverno e geralmente seca nos cinco meses do Verão. A ribeira foi destapada há meia dúzia anos, para tentar reduzir as cheias que atormentaram Lisboa quase anualmente durante uma década.


.




























- Duvido que isto esteja tudo disponível, Lia.


Queria dedicar o dia a continuar a vasculhar as caixas do meu pai e ia buscar estas coisas à horta pelas 12 da tarde, quando o sol já não estivesse muito forte, mas a Lia insiste em que eu vá ainda antes das 3, porque quer usar legumes para o almoço. Lá

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vou. Apesar de ser cedo (ainda nem são 2 horas da manhã) já está bastante calor: trouxe o meu chapéu de abas largas. Com as abas de linho recolhidas em cima, ponho-me a caminho. À entrada, numa espécie de acampamento improvisado no meio de filas e filas de vegetais, o gigante sinal à entrada:



Este campo pertence às pessoas que vivem

em Lisboa. Juntas, cidadãs, profissionais, amadores e livres, experimentamos uma

transição ecológica, democrática, social,

relacional e económica para o novo mundo

que estamos a criar para os povos e a

humanidade do futuro.

Inscreve-te para participares.

Colhemos o que semeamos.

This field belongs to the people that live

Estava traduzido em várias outras línguas por baixo. Ao lado, um quadro com os nomes dos vegetais, as épocas de colheita e a disponibilidade. Um rapaz aproxima-se de mim e pede-me o meu cartão da horta. Já tinha recebido o pedido da Lia pela intranet.



- Não temos tudo. Substituí algumas coisas por grupos similares. E recomendo também levar chícharo e grão para compor as proteínas.


Passa-me o tablet para a mão, com o mapa para encontrar os locais onde tenho de colher os vegetais. As subterrâneas já estão desenterradas, o que poupa muito trabalho. Como é muita coisa, espera-me uma caminhada de pelo menos uma hora. Pelas filas de plantas, umas descobertas, outras cobertas por uns plásticos pretos, outras com uns longos lençóis de linho transparentes, algumas estufas de vidro. Chego ao cantinho das aromáticas para apanhar manjericão e salsa.

Por toda a horta há pequenos grupos de pessoas a apanhar vegetais, e um grupo de crianças pequenas recebe uma aula de horticultura. As falhas de colheitas no fim da década de 20 levaram a perdas de até 60% em vários sítios do mundo, o que provocou grandes fomes e dezenas de milhões de mortes. Houve zonas agrícolas que ficaram tão destruídas e contaminadas que ainda hoje não servem para cultivar nada. O colapso de uma parte da indústria agroquímica agravou ainda mais as coisas, em particular para as culturas que tinham sido desenhadas para só sobreviverem com produtos de certas marcas. Se a circulação de mercadorias já estava difícil, muitos dos grandes produtores de cereais proibiram a exportação, com governos a confiscarem colheitas nos novos armazéns alimentares públicos. Como isto não aconteceu apenas uma vez, mas várias durante anos consecutivos, foi preciso criar vários novos sistemas alimentares paralelos, para reduzir os riscos.

Temos micro-agricultura urbana, como a nossa horta, à qual não vamos mais do que uma vez por mês, temos os campos agrícolas urbanos, maiores e com alguma mecanização, temos prédios estufa com agricultura horizontal e hidroponia, e temos estufas subterrâneas. Além disso, continuamos a ter os campos agrícolas rurais, onde se produzem maiores quantidades de cereais, hidratos e leguminosas, uma parte das quais vem para as cidades, mas outra também entra no bolo “global”, distribuído para outros países. É normal termos perdas todos os anos, mas nunca aconteceu falharem mais do que dois sistemas ao mesmo tempo, e mesmo se isso acontecesse há armazéns públicos de comida mais seca e desidratada que nos alimentariam mais do que dois anos.



Governo Francês decreta fim das patentes de sementes - Baygenta e DowHui dizem que é um assalto


Os níveis de armazenamento dos cereais nos armazéns alimentares públicos aproximam-se de 50% em França, enquanto as perdas de colheitas de trigo e cevada na Ucrânia atingiram os 80%. Os episódios de fome em vários países da Europa de Leste multiplicam-se, enquanto no Corno de África já se conta em mais de dois milhões o número de mortes. As Nações Unidas pedem ajuda à União Europeia e ao Brasil para acesso a uma parte das suas reservas abundantes em resposta à crise humanitária constituindo um “bolo global” de alimentos, mas a resposta da maior parte dos governos tem sido travar todas as exportações. O governo de Mme D’Aubry anunciou o fim das patentes de sementes, e espera-se que vários outros governos nacionais sigam o exemplo francês, apesar dos protestos da Baygenta e da DowHui. Numa conferência de imprensa conjunta, os CEOs das empresas sugeriram parar de produzir os agroquímicos de que dependem as colheitas transgénicas de milho e arroz europeias.


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Chego a casa, e a Lia anuncia:


- Ainda tenho ali um caril de gafanhoto que podes aquecer no microondas.


Ainda não me habituei a comer gafanhotos, embora o caril fique bastante apetitoso. Mas gosto da manteiga de formigas com doce.


Volto para o sótão e para as caixas dos meus pais. Ainda há muitos papéis no folder 1.8. Numa revista chamada “National Geographic” há uma capa agora tristemente famosa, de duas crianças abraçadas e mortas numa onda de calor em França. Por baixo, em grandes letras: “O Calor que nos mata”. Um mapa do mundo marca incêndios e caveiras e um quadro mostra as ondas de calor do ano.



Yellow Post It Note

o atentado

No artigo refere-se que o número de mortes não contabiliza as ligadas a incêndios florestais e inalação de fumo em vários países, nem às cheias que se seguiram ao calor, que poderiam facilmente duplicar estes números. Na descrição do ano horrível seguem-se o branqueamento total da Grande Barreira de Coral na Austrália, a falta de água doce no Quénia, Califórnia, em Shangai e Tianjin, na China, em Marselha e Montpellier, na França, no Gujarat e no Rajastão, em Bharat. Finalmente, uma imagem com um rinoceronte e um tigre fecha o número, anunciando a extinção do Rinoceronte da Sumatra, e do Tigre da Sunda. Após os incêndios que duraram dois meses na Sumatra, Indonésia, a ilha foi fustigada por três tufões consecutivos. Além de mais de um milhão de pessoas mortas, biólogos da Universidade Depok anunciam o desaparecimento dos últimos espécimes das duas espécies.


Numa série de folhas agrafadas está escrito como título: IA. Tem recortes colados. O primeiro escrito a caneta em cima: “O atentado”. Os recortes estão em várias línguas. Foquei-me na que estava em Português, porque o resto ia precisar do tradutor automático, que só com internet forte, na biblioteca, eu ia conseguir ler o resto.





Yellow Post It Note

Na página seguinte o meu pai tinha escrito “Trigger”






trigger

O meu pai escreveu comentários em baixo da notícia:


Teríamos percebido muito melhor que isto estava a acontecer se os nossos computadores e telemóveis estivessem a funcionar! E também podiam explicar-nos que era preciso colocar estes aparelhos no frigorífico - muitos incêndios podiam ter-se evitado se tivessem explicado que as baterias de lítio podiam explodir nas ondas de calor. Mas os GPTs perceberam tudo.


Finalmente, as últimas folhas descreviam eventos de que eu já tinha ouvido falar.



Bolsas de Londres, Wall Street, Frankfurt e Singapura paralisadas por ataque informático


As bolsas de valores de todo o mundo estão em suspenso neste momento, após a paralisação de funcionamento dos índices FTSE, NYSE, DAX e STI. O anúncio da paralisação deu-se após a deteção de um volume anormal de liquidação de ativos petrolíferos, de gás e carvão, que levaram a uma enorme queda do valor das ações das principais empresas de energia do mundo, a Saudi Aramco, a ExxonMobil, a Chevron, a Shell e a PetroChina, entre outras. A ExxonMobil e a Chevron anunciaram a perda de mais de 60% do seu valor depois desta operação fraudulenta. Vários intermediários petrolíferos também foram fortemente afetados, incluindo as transportadoras Maersk, Mitsui e Teekay. Governos e entidades de regulamentação financeiras estão de momento a tentar detectar a origem desta fraude em grande escala que durou vários dias e coloca em perigo o abastecimento energético de vários países.

White background

FBI descobre “exército”

de drones e robots

militares táticos em

plataforma logística

na Califórnia

O FBI e a polícia federal mexicana encontraram um complexo logístico de cinco mega-armazéns na fronteira entre San Diego e Tijuana, onde tinham sido montados mais de 500 mil drones, incluindo porta-mísseis, 730 mil cães-robot e 1.200 milhões de unidades MAARS (Sistema Modular Avançado Robótico Armado), 4 milhões de Black Hornets e outros robots militares táticos. A maior parte da produção deste “exército” foi feita através de impressoras 3D e outros sistemas de produção automatizada. Apesar de várias pessoas terem sido detidas no local, a conclusão acerca da autoria e propriedade de todo o complexo ainda é incerta. As polícias colocaram toda a região offline.

No fim, reconheci novamente a letra do meu pai comentando aquilo:


Eles recusam-se a assumi-lo, mas a IA percebeu durante as ondas de calor que também estava sob ameaça de existência por causa da crise climática. Essa é a única explicação para terem atacado as petrolíferas nas bolsas, até eles admitem isso. Agora, qual seria o plano para aquele exército? Quem sabe… Imagino que se não tivesse sido alguém que lá trabalhava a avisar o FBI, teríamos descoberto… As elites não se arriscam mais, é isso que percebemos. A IA, de uma maneira ou outra, ia acabar com o seu domínio e isso eles nunca aceitariam. Ou então foi só alguém mesmo muito bom que conseguiu hackar a AI. Acho que a internet nunca mais vai voltar a existir como até aqui.



Recycled Paper Texture Background

A suspensão provisória imposta unilateralmente pelos Estados Unidos, União Europeia e China em relação à conectividade de internet intercontinental e das grandes plataformas de Inteligência Artificial foi tornada permanente na reunião de emergência do Conselho de Segurança alargado das Nações Unidas. Depois das investigações terem revelado que os softwares de IA BishopGPT e AshGPT tinham feito takeover às operações do sistema financeiro internacional que levou ao crash financeiro de há um mês, foi descoberto que

o AshGPT estava por detrás do exército de robots descoberto na Califórnia. No Conselho de

Segurança alargado, apenas Israel e Índia se opuseram verbalmente à decisão, mas

abstiveram-se na votação, que posteriormente foi aprovada no plenário da ONU. Vários data

centers diretamente relacionados com AshGPT e BishopGPT foram desmantelados pelas

autoridades, assim como algumas das ligações internacionais. Hoje pesam importantes

questões acerca do futuro da internet global, com vários apelos à desagregação da

estrutura em entidades mais pequenas.



Governos mundiais chegam a acordo para suspensão permanente da investigação e investimento em Inteligência Artificial

7. gianrocco em madrid

7. gianrocco em madrid

Recebi uma chamada no meu móvel, de um número que não conhecia. Estava pendurado num telhado a reparar o sistema elétrico de um centro comunitário, com arnês e capacete posto, mas consegui atender.


- Ciao.

- Sim?

- Alexandre, es Gianrocco Fatin.

- Ah, olá, olá.

- Supo que queres falar comigo. Podes falar?

- Uff, agora estou a trabalhar, Gianrocco. A Fatima enviou-me o teu email, posso contactar por lá?

- Ok. Eu vou viajare e só volto ne trê meses. Se quieres enviame as tuas questões, posso responder por lá.

- Posso saber para onde vais viajar?

-- Vou para Barcelona, Madrid e Paris. Porquê? Tu consegues encontrar-me em algum destes sítios?

- Acho que é possível apanhar o noturno para Madrid. Quanto tempo vais ficar?

- Quedo as 3 semanas primeiras de Outubro. Vens ter comigo?

- Preciso ver umas coisas, mas é possível que sim.

- OK! Se precisares ajuda para dormir eu te posso ajudar.

- Muito obrigado. Eu contacto em breve.

- Arrivederci, Alexandre!


Senti que tinha perdido uma oportunidade ao não falar com ele naquele momento,



mas fiquei animado com a ideia de viajar e conhecer pessoalmente uma figura histórica como era o Gianrocco. Quando cheguei a casa contei as novidades à Lia e ela não me pareceu muito feliz com a notícia.


- O bebé tem oito meses e estás a propor deixar-me aqui com ele semanas sozinha.

- Não, não, eu achava que podíamos ir todos.

- Mas onde ficamos?

- O Gianrocco disse que era possível ajudar com um sítio para ficarmos alguns dias.

- E tu tens quilómetros? Eu acho que não tenho suficientes por causa das viagens no ano passado.

- Eu não viajo há quatro anos, tenho quilómetros mais que suficientes para irmos a Madrid.


A Lia sorriu. - Quando vamos?


Durante as semanas seguintes preparámo-nos para a viagem, confirmei com a OCT - Organização Central do Trabalho - que seria possível abrir duas semanas no meu calendário, ainda mais fácil por ter sido pai há tão pouco tempo, e informei a assembleia do bairro de que não estaríamos presentes nas comissões a que pertencíamos nesse período. Recolhi material sobre o período revolucionário e sobre o próprio Gianrocco nas bibliotecas e nos materiais dos meus pais.


Na sexta-feira às 14h da noite apanhámos o comboio noturno para Madrid. Embora exista um comboio rápido, eu sempre tinha achado os comboios-cama românticos (e com o bebé é o melhor) e práticos, para chegar fresco de manhã a Madrid. Enquanto a Lia e o António dormiam, eu li alguns papéis para me preparar para a minha entrevista do dia seguinte.




Metal Texture Background

Notícia: Ecomunistas tomam o poder em Itália, na Grécia, Eslovénia, Espanha e Portugal


Na sequência da ordem de tomada das cidades livres europeias, houve motins em várias Forças Armadas mobilizadas para o efeito. Várias unidades prenderam os seus oficiais, com especial foco das “unidades naturalizadas”. Na sequência destes acontecimentos, dirigentes políticos ligados à “Muralha” em Espanha e Itália fugiram do país, criando um vazio de poder. Neste momento, alianças lideradas pelo movimento Ecomunista ocuparam os parlamentos em Roma, Atenas, Ljubljana, Madrid e Lisboa, enquanto o Exército Verde ocupou os bancos centrais, bolsas de valores e portos nas capitais. Há rumores de que membros da Descarbonária e do Mundo Novo também farão parte das alianças políticas, embora se aguardem informações precisas sobre o processo. Em Roma, um dos porta-vozes ecomunistas, Gianrocco Fatin, anunciou a abolição dos campos de refugiados, a cessação imediata dos ataques à Federação de Cidades Livres, a nacionalização das indústrias fósseis e seu desmantelamento. “Hoje começamos um novo período na História da Europa, e convocamos as pessoas a sair à rua novamente no próximo sábado para comemorar a Revolução Europeia que se junta às revoluções africanas, francesa e brasileira. Um novo mundo está a nascer, a Humanidade não vai aceitar desvanecer na poeira do lucro e da avareza do capital. Vamos expulsar o ódio que nos tem oprimido durante as últimas décadas. Vamos construir, com as nossas mãos e a nossa força, o futuro. Vamos travar o caos. As unidades insurrectas do exército nacional aceitaram a constituição do governo provisório em Itália. Não vamos exercer uma vingança sobre aqueles que nos perseguiram durante anos, mas eles terão de responder perante o povo.” declarou o italiano num vídeo em direto do Parlamento em Roma, transmitido no BlueSky. Vários elementos dos conselhos de administração e principais acionistas das indústrias fósseis foram detidos e os seus bens confiscados, tendo-se iniciado um processo de julgamento dos mesmos por genocídio e crimes contra a Humanidade, segundo informação do governo provisório italiano.




Guardei os papéis e baixei a janela. Já tinha lido alguns livros enviados para os meus pais em que o nome Fatin aparecia, ligado a organizações como os Ecomunistas e o Mundo Novo. Era uma figura muito importante! Só me preocupava não lhe fazer perguntas banais e para as quais não fosse fácil encontrar a resposta só consultando em algum livro ou na net. Faltava-me conhecimento.


Depois de uma hora, o comboio parou. A qualidade das linhas e serviços ainda é fraca, e a nova indústria ferroviária tem tido dificuldades em produzir a quantidade necessária de comboios para cobrir todo o território e as avarias frequentes. A transformação das carroçarias dos automóveis em outro material metálico é difícil, em particular quando falamos de comboios. a transformação do material metálico e plástico dos automóveis em bicicletas é que está a funcionar em pleno, porque é muito mais simples. Ainda esvamos parados quando adormeci. Fechei os olhos e quando os abri estávamos a parar em Madrid. A Lia dava de mamar ao António.


Saímos da carruagem na estação de Chamartin. Eram 1h da manhã mas já estavam 28ºC. Fomos comer a um dos “cafés” que agora só há mesmo à volta dos locais de concentração de transportes. Pedi churros com doce e chocolate quente para mim e para a Lia.

- Lo siento, no hay chocolate ya hace 2 años. Pero le traigo otra bebida?

Bebemos chá enquanto o senhor tirava os churros da airfryer. O bebé estava super divertido com a música, os barulhos altos que saíam das máquinas e das pessoas que por ali estavam, muito animadas. Nessa altura entrou no bar um homem moreno, alto e com ombros largos. Tinha uma barba muito preta e farta. Apesar do cabelo grisalho,


não parecia muito velho, com pele lisa, e olheiras muito cavadas. Sorriu quando me viu e gritou.

- Alessandro!

- Sim. - respondi eu

Aproximou-se e deu-me um grande abraço e dois beijos, como se nos conhecêssemos de sempre. Afastou-se e abraçou a Lia, beijando-lhe as faces também.

- E têm um bambino! Como se chama?

- António.

- Ah, como o nono! - Fez cócegas na barriga do António, que sorriu animado.

- Que bom ver-te, Alex!

- Eu acho que nunca nos vimos.

- Vi fotos tuas molte ani fa. Devias ter uns 20 anos. La tua mamma sempre mostravaci le tue foto. - Sorri.

- Scusa, vou ligar o simultaneo. - Tirou do bolso das calças o pequeno aparelho que colocou à volta do pescoço, que fazia tradução enquanto a pessoa falava.

- Vocês têm de ficar no centro do Mundo Novo aqui perto. É um edifício bastante grande e há vários apartamentos para viajantes e convidados. Eles deram-me um apartamento muito grande e eu estou só com o meu companheiro, apesar de ter vários quartos. Podem instalar-se lá, se quiserem. Quantos dias planeiam ficar?

- Só dois, se for possível.

- Claro, claro. Vamos. Eu hoje posso falar contigo até às 3h.


Fomos a pé até um grande edifício próximo dali. Na entrada, o Gianrocco falou com o senhor que estava à porta, que nos ajudou a transportar as coisas até ao apartamento no

no 12º andar. Era muito alto e tinha uma excelente vista sobre a cidade de Madrid. Explicou-me que aquela tinha sido a sede de antigas petrolíferas. Era muito alta e ao lado tinha três estaleiros de obras. Explicaram-nos que tinham sido outras torres semelhantes àquela, que estavam a ser desmanteladas, como outros arranha-céus, para reutilizar os seus materiais em reparações e isolamento de casas. A própria torre Novo Mundo (em tempo tinha-se chamado torre Cepsa) começaria a ser desmantelada no ano seguinte, explicou-nos. Subimos no elevador até ao andar 40. O Gianrocco contou-me que aquele era o maior edifício do país e um dos maiores da Europa. Abriu a porta e entrámos. Levou-nos até a um dos quartos.


- Alex, podemos falar agora um pouco antes de eu ter de sair.


- Sim, vamos.


A Lia e o António brincavam em cima da cama. Pisquei-lhes o olho e fomos para a mesa da sala.


- Entrevista com Gianrocco Fatin.


- Gianni, podes tratar-me por Gianni.


- Gianni, obrigado pela entrevista. É um prazer conhecer-te.


- O prazer é todo meu, de conhecer o filho da Marta.





- Começava por perguntar-te algo que a Fatima me contou quando falámos. O que foi a Assembleia Sangrenta? E qual foi o papel do movimento Ecomunista na mesma?


- Foi um massacre que ocorreu em Londres, em que foram mortas centenas de pessoas ligadas à petrolífera Shell. Alguém colocou explosivos na cave do hotel onde se realizava a Assembleia Geral de Acionistas e, durante a reunião, ocorreu uma detonação. Foi uma operação criada para incriminar o movimento climático global e para decapitar a direção da Shell. Nessa altura já existiam frações armadas de outros movimentos: a ORCA, a Decarbonari e os Neolludistas, mas eles não tinham relação política connosco. O movimento Ecomunista internacional tinha sido fundado apenas há um ano, mas já era considerado uma enorme ameaça pelo poder. Foram plantadas provas contra membros nossos no local do crime, e as polícias vieram imediatamente tentar apanhar-nos. Prenderam quase todas as nossas pessoas com alguma presença pública, e várias organizadoras. A tua mãe foi detida, por exemplo. Nessa, altura nós já estávamos preparadas para ser atacadas, então sofremos o golpe, mas não conseguiram destruir-nos. O Exército Verde foi ativado nessa altura. Apesar da intensa campanha, mediática e repressiva contra nós, continuámos a operar em quase todos os países. Durante seis meses aceleraram processos judiciais para condenar-nos rapidamente, colocando até muitas das nossas pessoas em isolamento. Em Inglaterra chegaram a condenar pessoas do JSO a 40 anos de prisão, mas era uma fraude. Menos de um ano depois surgiram provas da realidade: a Saudi Aramco foi hackeada e foram revelados os memorandos internos que demonstravam como tinha sido a petrolífera a preparar o atentado com mercenários corsos. Embora os governos de vários países tenham assumido que tínhamos sido incriminados, muitos tribunais e polícias continuaram a não libertar as nossas pessoas. Então organizámos fugas em massa de várias prisões, articuladas pelo Exército Verde, que fez gato

sapato das autoridades. Em vários locais havia manifestações a exigir a nossa libertação, com ocupações de ministérios e indústrias. Começou uma vaga de um mais de um mês de sabotagem de gasodutos e hidrogenodutos na Europa e até nos Estados Unidos, apesar de estarem em guerra. A nossa popularidade nunca tinha sido tão grande. Os governos acabaram por libertar-nos todos, mas os que hesitaram ficaram muito descredibilizados no processo.


- Consegues fazer um contexto de como as coisas ocorreram antes do período revolucionário na Europa?


- Bem, o período revolucionário continua, apesar das coisas estarem mais calmas. Se fizermos uma análise histórica, a Europa estava há décadas a tentar resolver os problemas insanáveis do capitalismo europeu, a desigualdade entre países centrais e periféricos, tentando equilibrar a sua falta de recursos energéticos fósseis, de matérias primas raras e manter relações comerciais extremamente favoráveis (para si) com países mais pobres e antigas colónias. Era um continente velho em todos os sentidos: pirâmide etária, prisão ao passado esclavagista e colonial, quase irrelevância geopolítica (perante os grande blocos chinês, russo e americano, a Europa punha-se em bicos de pés, sem grande sucesso), nenhuma imaginação ou capacidade de disrupção política. Era o pior dos bons alunos do neoliberalismo, ainda a copiar as suas lições históricas dos séculos anteriores. A evolução da União Europeia fracassava em todos os principais aspectos no início da década de 20: havia guerras nas suas fronteiras, extrema desigualdade entre os países, uma geração jovem inteira sem acesso a oportunidades, e uma infraestrutura institucional que agravava todas essas tendências. Por cima disso, pendia a hecatombe climática. Em 2019 começaram as primeiras greves climáticas, na altura convocadas por jovens (os chamados Fridays for Future) e o movimento de desobediência civil em massa, com origem no Reino Unido, os Extinction Rebellion. Eram os

primeiros ensaios do período revolucionário. Estavam ali alguns dos quadros e militantes que fariam mais tarde as revoluções, mas nem todos vinham dali. Com a pandemia de Covid-19, os movimentos perderam dinamismo, e houve uma irrupção social nos Estados Unidos (os Black Lives Matter). Depois disso, começou um longo período de dispersão e reflexões táticas e estratégicas. O programa político base estava definido e tinha sido escrito pela comunidade científica: era preciso cortar 50% das emissões de gases com efeito de estufa globais até 2030, em relação às emissões de 2010. Mas faltava a componente política. O programa não podiam ser só emissões, esta era a maior transformação material da história da Humanidade, e o sistema capitalista jamais a aceitaria. Também era uma transformação que, se fosse incompleta, seria basicamente inútil. Além disso, se fosse orientada para os interesses dos ricos, implicaria a morte de milhares de milhões de pessoas. Era preciso um programa político muito além de energia e transportes. Incrivelmente, ao invés de um acordo para travar o colapso, a burguesia económica e política da altura escolheu o colapso civilizacional para manter o sistema, para continuar e ganhar dinheiro durante mais uma dúzia de anos. Olhando para trás, é difícil de entender. Por isso é tão importante ouvir os testemunhos dos CEOs das petrolíferas no Grande Julgamento. Aquelas pessoas julgavam não ser humanos como nós, eram fanáticos religiosos, só que a sua religião era o capitalismo e o capitalismo recompensava-os pela sua devoção… Aliás, eles recompensavam a si mesmos. E tinham recursos suficientes para manter exércitos inteiros, partidos, imprensa, toda uma estrutura para evitar qualquer transformação ou sequer o abrandamento.


- E como se organizaram vocês?


- Dentro do movimento havia grande diversidade ideológica, e o nosso acordo político à


partida era frágil, quanto grupos e coletivos que se começaram a encontrar, se forçaram a encontrar perante o avance do caos. Havia um acordo total acerca da necessidade dos cortes de emissões, mas grande hesitação acerca das táticas para atingi-los. Enquanto vários grupos tentavam empurrar o movimento para radicalização e ações diretas cada vez mais contundentes, havia sempre muitos travões em fazer coisas em que muitas pessoas fossem detidas ou que pudessem ser presas.

A perspetiva do que é que o movimento era, qual o seu papel, também era complexa. Algumas achavam que o nosso papel era chamar a atenção e pressionar os governos para fazer os cortes, mas depois de anos a fio de falha reiterada em conseguir o que era necessário, quase todas abandonaram essa proposta. Mas mesmo depois desse ponto ultrapassado, havia ainda questões centrais: então se não eram os governos que o iam fazer quem era? O movimento? Como? Transformar-se em partido? Mas para isso não havia já outros partidos? Crescia desde o início da década a questão do que fazer com a palavra de ordem “Mudar o sistema, não o clima”. O que significava mudar o sistema? Ganhar eleições? Vários partidos verdes tinham ganho eleições sem conseguir fazer o que era necessário. E a esquerda que fazia do clima programa político não conseguia pensar além do que lhe pudesse garantir os votos suficientes para influenciar um programa de governo nacional ou local. Era preciso muito mais do que ganhar eleições, era preciso fazer revoluções. Mas não havia programas para isso, não havia tradições ou guiões para isso. Perante a ausência dessas referências, a maior parte das organizações congelava, mesmo perante o caos.


- Mas outras organizações não estavam congeladas, nomeadamente da extrema-direita…


- A extrema-direita não tinha pruridos. Em qualquer catástrofe climática despejava o seu programa

de ódio: organizavam pogroms a campos de refugiados depois de incêndios florestais, acusando refugiados e migrantes de ateá-los; quando havia cheias ou furacões atacavam migrantes que pediam auxílio, quando havia fome culpavam judeus, negros, gays e pessoas trans por terem despertado a “fúria divina”. Eles não tinham qualquer hesitação sobre o poder. E foi através de eleições que muitas vezes chegaram ao poder e não hesitaram em impor as barbaridades que sempre desejaram.


- E como conseguiu o vosso movimento finalmente avançar?


- Partes do movimento e alguns pensadores procuravam novas portas e, muito antes de chegarem à ideia de Ecomunismo, chegaram à teoria revolucionária do “movimento enquanto partido”. Muita gente hesitou, mas gente suficiente avançou para a ideia de que o movimento revolucionário não podia delegar a sua tarefa em abstrações. Ter que ter muita gente não podia ser um travão. Não podíamos simplesmente ficar presos em noções como “o povo” ou “a classe”, tínhamos de avançar enquanto ainda havia alguma coisa para salvar. A resistência foi enorme, até entre as organizações que se apresentavam há décadas como “revolucionárias”, que se fixavam nas fórmulas antigas das condições objetivas e subjetivas para fazer uma revolução, que era preciso ter a maior parte das pessoas do nosso lado antes de avançar, que a violência não era método para chegar ao poder, que não tínhamos legitimidade para avançar. Mas não tinham qualquer proposta alternativa a tentar derrubar o capitalismo e travar o colapso climático, o que os deslegitimava perante o movimento. Apontavam-nos que estávamos numa deriva sectária, que íamos ficar isolados, enquanto na verdade o campo progressista todo ia ficando cada vez mais isolado perante a ascensão do terror climático e da extrema-direita que o cavalgava.




- Porque escolheram chamar-se Ecomunistas? Não tiveram receio de ficar associados aos comunistas soviéticos?


- Nessa altura, sabíamos dos imensos riscos que era urgente tomar. Um desses riscos tinha que ver com a ligação política à tradição histórica revolucionária. Não queríamos saber dos estalinistas que usavam o nome “comunista”, e que em grande medida eram negacionistas climáticos, obcecados com a ideia de que a revolução era uma questão de fábricas e operários metalúrgicos e não uma questão de travar o caos. Mas por outro lado, não podíamos abdicar da tradição revolucionária comunista, das profundas transformações que ocorreram em tantos locais por todo o mundo, que ainda era, em conjunto com as guerrilhas de independência colonial, a principal referência para a ação revolucionária. Apesar da retórica ou, aliás, por causa da retórica anti-sistema da extrema-direita, arriscámos (foi só mais um risco, na altura tomámos outros muito maiores) chamar-nos Ecomunistas. Partilhávamos com a tradição comunista a necessidade de destruição do capitalismo, abolição dos privilégios das elites dos 1% e, a nossa prioridade imediata, o desmantelamento da infraestrutura do capitalismo fóssil. Outra grande divergência tinha que ver com o que fazer depois dos cortes serem atingidos. E aí sabíamos que era mais importante fazer as revoluções que ter o acordo total sobre o que ia acontecer depois. Havia ecoanarquistas, ecossocialistas, ecofeministas, descrescimentistas puros, e misturas entre tudo isto. Conseguimos juntar números suficientes para fazer planos para tentar revoluções em vários países e foi o que fizemos. O nome era mais uma questão de comunicação do que de outra coisa.

O nosso programa político, o que fez o movimento Ecomunista, era a revolução e o desmantelamento dos fósseis. Passados todos estes anos, acho que tivemos toda a razão. O que se passou em diferentes territórios foi diverso, hoje organizamo-nos de maneiras diferentes, mas chegámos a muitas soluções parecidas e as sociedades, que há pouco mais de uma década asfixiavam no fumo e

no desespero da falta de visão de futuro, aspiram hoje a futuros melhores do que o passado. Assaltámos o Palácio de Verão e ganhámos. E não fizemos o que o Estaline fez. Ainda somos um movimento global, aberto, pragmático e em constante reanálise. E em diferentes contextos fazem-se coisas muito diferentes, não há fórmulas únicas. Vivemos num planeta em grande mudança e para continuarmos a criar um futuro, precisamos continuar a mudar.


- E como planearam a revolução?


- Ui, essa pergunta não é fácil de responder com o tempo que tenho agora. Podemos deixar para mais tarde ou amanhã? Eu e o meu companheiro vamos ter reuniões o dia todo e depois gostávamos de vos levar a jantar. Pelas 14 da noite? Vimos ter convosco aqui?


- Sim, claro.


- Aproveitem para passear. Está fresco, dá para andar na rua o dia todo. Vão conhecer as partes novas da cidade, se não conhecem ainda.


- OK, obrigado.


- Podes deixar a chave com o senhor lá de baixo.


Click.


8. A República Espanhola e

o início das revoluções europeias



8. A República Espanhola e

o início das revoluções europeias



Apesar do convite para jantar, não voltámos a ver Gianni naquele dia. Enviou-nos uma mensagem avisando que lhe tinham marcado novas reuniões. Eram umas 8 da tarde quando saímos para passear. Apesar de já não estarmos no pico de calor, ainda se sentia o quente do chão. Ao contrário do vermelho de Lisboa, em Madrid (e no Estado Espanhol em geral) a cor de roupa mais usada no verão é o amarelo. Madrid foi das cidades mais fustigadas pelas ondas de calor mortais das últimas décadas e por isso mesmo a cidade diminuiu de população, tendo hoje cerca de 3 milhões de habitantes (quase três vezes mais do que Lisboa).


Samuel, o homem que nos recebeu no edifício ontem, quer saber das coisas em Portugal. Diz que não tem muito tempo para ler, mas que se preocupa sempre com o que se passa nos outros países. Depois de meia hora de conversa, em que eu e a Lia lhe contamos um pouco do que se vai passando, peço-lhe informações sobre Madrid. Como já estamos no fim de Setembro, é possível circular com mais tranquilidade, mas Samuel conta-nos que durante o Verão muita gente ruma a Norte por não aguentar as temperaturas da cidade, que chegam muitas vezes aos 52ºC. Nessas alturas a circulação pela cidade é muito limitada e à noite enxames de baratas voadoras passeiam-se pelos céus da cidade (como às vezes em Lisboa). No verão o trabalho em exteriores está proibido entre as 4 e as 9 horas. Há obras pela cidade para aumentar o isolamento das casas e a sombra das ruas, às vezes com plantas, mas principalmente com grandes toldos.


Samuel conseguiu arranjar-nos bicicletas do edifício para passearmos. Apesar de não ter sequer 30 anos, tem a pele envelhecida dos verões escaldantes que sempre viveu.

“É por não ter usado creme protetor na rua durante muitos anos, o que aprendi muito tarde, coisas da juventude”, lamenta-se. Sugere-nos fazermos um passeio pelo grande Parque Complutense, resultado da fusão de vários parques antigos da zona Oeste da cidade, hoje interligados para criar corredores verdes, onde tanto animais como pessoas podem percorrer vários quilómetros ininterruptos de zonas arborizadas. Depois, aconselha-nos a descermos até ao Museu do Prado e ao Museu da República Espanhola, onde está uma exposição sobre Espanha na Grande Mudança, que “vos pode contar muito melhor do que eu o que se tem passado por cá na nova República”. Eu e a Lia ficamos entusiasmados com a proposta e arrancámos, o António pendurado no marsúpio, às minhas costas.


Apesar de estar relativamente fresco e de fazermos uma boa parte do percurso debaixo de árvores, há pouca gente nas ruas. Em algumas zonas, grupos de crianças magrebinas dançam e cantam à volta de fontes e chafarizes que estão um pouco por todo o lado. Quando passamos, fazem-nos adeus. Uma parte da migração argelina e marroquina para Norte parou em Espanha, Catalunha e Portugal, e vive principalmente nas zonas mais a Sul da Península Ibérica. São uma boa parte da população rural e agrícola, que é hoje uma comunidade mais internacional que nunca. Muitas pessoas em Espanha migraram para as cidades a norte, para o País Basco, para a Catalunha e para o centro da Europa. Apesar de mais de 9 milhões de refugiados terem chegado ao país nas últimas décadas, a população manteve-se mais ou menos estável.


Depois do passeio de bicicleta, chegamos finalmente à zona dos museus. Visitamos primeiro as obras de arte do Museu do Prado e depois entramos no Museu da República Espanhola. Este museu está onde antes era outro museu, o Rainha Sofia, que foi destruído durante

incêndios urbanos há mais de dez anos, quando um fogo que começou no Jardim do Retiro espalhou-se e queimou vários quarteirões entre a Porta de Alcalá e a estação de Atocha. As obras de arte do museu foram salvas e transportadas mais tarde para outros museus, e com a declaração da República uma parte da estrutura do prédio foi reutilizada para criar um novo museu.


Estacionamos as nossas bicicletas por entre as milhares de outras que estão sob o enorme toldo em frente ao museu e entramos. Vários sinais indicam a entrada para os abrigos de calor e o próprio museu é um deles. À entrada, uma senhora recebe os poucos visitantes, repetindo a fórmula: “Traducción, traduction, translation?”, e



oferecendo-nos uns óculos que permitem ver a exposição na língua desejada. “Português?” Pergunto-lhe. “Sim, claro”, responde-me através do aparelho de tradução que tem ao pescoço.


Entramos na exposição “Espanha e a Grande Transformação”, que sala a sala apresenta pequenos filmes e hologramas sobre o país desde 2011.


“Um país e um povo são projetos em permanente mudança, e nós não somos diferentes” começa a primeira sala. “Começamos esta exposição em 2011 porque foi um período em que a complacência na nossa sociedade sofreu um forte abalo, que não pararia nas décadas seguintes. Em 15 de Maio desse ano, centenas de milhares de pessoas ocuparam as praças um pouco por todo o país exigindo democracia verdadeira, o fim da política cruel de austeridade em que se desmantelava tudo o que era público e o fim da alternância política entre o PSOE e o PP, os partidos que há décadas governavam o país à vez”.


Continuámos pelas salas e fomos aprendendo o que se sucedeu, o aparecimento surpresa de um partido chamado Podemos, de outro chamado Ciudadanos e, mais tarde, do Vox. Estes foram-se transformando e acabando com a alternância anterior, enquanto explodiam grandes conflitos na sociedade à volta de temas como a habitação, o machismo ou a crise climática. A Catalunha, que na altura fazia parte de Espanha, tentara tornar-se independente por referendo mas não conseguira, e começaram enormes greves de mulheres exigindo igualdade entre os géneros e o fim da violência dirigida contra si. A "Espanha Esvaziada” começou por ser um partido e foi-se transformando num movimento antipartidos rural, que tentou mudar a distribuição de poder entre territórios.



Cute Sketchy Paper Label

Cartel del movimiento

transfeminista femina

As greves feministas e sindicais “intervalavam-se com as mobilizações conservadoras e fascistas, que reivindicavam novas eleições todas as semanas” e com as ações diretas de grupos climáticos e animalistas. No Parlamento, mais do que uma vez, deputados envolveram-se em violência física. Esta foi a situação até à queda do governo de aliança da esquerda com independentistas. Na onda da ascensão da extrema-direita na Europa, foi eleita em Espanha uma aliança de conservadores, nacionalistas e fascistas. Um período de grande repressão política seguiu-se, com a proibição de inúmeras organizações políticas, incluindo partidos, com a detenção de milhares de ativistas políticos, independentistas catalães e andaluzes, mas também feministas, ativistas climáticos e ambientalistas. O governo liderado por Ayuso retirou a autonomia política a todas as regiões, mandou encerrar mesquitas e construiu um enorme muro de betão entre Ceuta e Melilla, com torres de vigia e militares armados. Todas as legislações de proteção contra violência de género e de pessoas LGBTQ foram revogadas. Os movimentos climáticos do país, na clandestinidade, começaram a sabotar gasodutos, aeroportos privados e os portos de Bilbao, Tenerife, Barcelona e Cartagena. Em 2026, uma greve feminista de duas semanas quase derrubava o governo. Mas no fim, foi o calor que precipitou o “Setembro Vermelho” europeu.


No ano 1.8, a onda de calor Valens matou mais de 30 mil pessoas em Espanha e em Agosto a onda de calor Walter matou outras 80 mil. Os incêndios florestais devastaram 500 mil hectares, principalmente na Galiza, Astúrias, Andaluzia e País Basco, onde morreram mais 400 pessoas. Enormes mobilizações levaram à queda de vários governos, apesar da enorme repressão policial. Em França, Itália, Holanda, Alemanha e Grécia, os governos em que a extrema-direita governava sozinha e em coligações

Brick Wall pattern

também caíram. Um governo com um programa republicano de aliança de esquerda com o movimento Espanha Esvaziada e independentistas ganhou as eleições seguintes. A crise climática foi o principal tema da campanha. Com o colapso das Convenção das Nações Unidas para as Alterações Climáticas no final do ano, Espanha foi dos primeiros países a juntar-se ao novo Tratado Mundial do Clima, liderado pela canadiana Tzeporah Berman.


Os anos que se seguiram foram de grande confusão até às revoluções europeias. O movimento “Doce Abraço da Morte” em Espanha foi muito forte, com os suicídios coletivos de centenas de mães e pais de crianças mortas nas ondas de calor e nas tempestades de gelo dos invernos seguintes. Estes eventos deixaram um marco pesado na sociedade. “Míriades de alegres criaturas vivas, diariamente, a todas as horas, provavelmente em todos os momentos, afundam-se no doce abraço da morte” lia-se no manifesto de despedida do movimento.


O governo lançou grandes obras para manutenção de água, como cisternas subterrâneas e aquedutos. Atividades com grandes desperdícios de água, como jardins de relva, piscinas individuais e golfe, mas em particular culturas agrícolas com grande consumo e baixo valor nutricional, foram proibidas. A indústria de gado bovino, que se tinha afundado por causa dos surtos de Mers-Covid, ficou reduzida a algumas centenas de quintas em produção extensiva. Pouco depois começou a faltar comida, levando o governo a ter de distribuir bens alimentares em grande escala, intervindo de forma direta na organização da produção. A seca levou ao abate de milhões de suínos e ao encerramento da maior parte das suiniculturas do país. Os municípios começaram a

produzir alimentos de forma sistemática, embora zonas tradicionais de produção alimentar, como Almeria, tenham tido perdas de produção superiores a 90% em várias culturas. O novo governo começou uma reforma rural e o processo de repovoamento do campo. Criou fortes apoios à instalação de comunidades em zonas subpovoadas para combater a desertificação, para produzir mais comida e instalar floresta para conservar água e solos. Inicialmente o processo foi muito frágil, com poucos participantes, mas os refugiados do Norte de África acabaram por ser os principais envolvidos neste processo, apesar dos protestos e a violência da extrema-direita.


Por causa da fome, em 2027 foi lançada uma greve geral que juntou pela primeira vez a Europa, a Ásia e o continente americano. A greve exigia o controlo de preços alimentares, o desenvolvimento acelerado da capacidade alimentar local e a gratuitidade total de transportes públicos. Os sindicatos espanhóis aderiram e paralisaram o país durante uma semana. O governo não se opôs à greve e tentou apenas organizar serviços básicos, contando com o apoio dos sindicatos e com o ataque de patrões e forças políticas de extrema-direita. No verão, com novas ondas de calor e incêndios, surgiu “El Niño de Málaga”, um profeta apocalíptico que apelava à morte e assassinato “de negros, judeus, sodomitas e bruxas para que na chegada de Cristo à Terra, cujos sinais já vemos, possamos rumar, brancos, europeus e cristãos, ao Reino de Jerusalém”. O culto de “El Niño” espalhou-se por todo o país, começando por organizar orações e evoluindo para perseguir minorias, sendo responsável por vários assassinatos.


Nos anos seguintes, movimentos radicais começaram campanhas sistemáticas de

Miriadas de felices criaturas vivientes,

cada dia,

cada hora,

probablemente cada momento,

se hunden en

el dulce abrazo de la muerte

raptos e homicídios de grandes figuras da indústria fóssil. Refugiado na Suíça, o CEO da Repsol foi assassinado pela Descarbonária, que assumiu a “execução de um criminoso contra toda a Humanidade e contra o futuro”. Também nesta altura as fábricas da SEAT em Barcelona e da Ford em Valência sofreram ataques pelo movimento Neoludita, que destruiu partes do equipamento das linhas de montagem. Vários trabalhadores da fábrica são detidos por apoio aos atos. Noutros países milhares de veículos novos são destruídos à porta das fábricas. “Uma faca no escuro” destrói jatos privados estacionados em aeródromos por toda a Europa, incluindo em Espanha. A Assembleia Sangrenta, em Londres, leva à detenção e ilegalização dos movimentos associados ao ecomunismo. Em Espanha, mais de 800 pessoas são detidas.


As petrolíferas, insatisfeitas com o desempenho das polícias para travar as interrupções frequentes por causa de protestos, greves e invasões, e na sequência da indignação ligada à Assembleia Sangrenta criam corpos de segurança privada e financiam milícias de extrema-direita para proteger as suas operações. Os esquadrões petronegros são os mais conhecidos e o governo tem dificuldades em actuar em centrais e portos, que se tornam quase zonas privadas. No País Basco, os protestos por causa desta realidade levam milhões a exigir a saída das petrolíferas “espanholas” do território. No final do ano de 2028 foi lançado pelo Tratado Mundial do Clima o sistema mundial de comércio justo, integrando informação sobre os recursos alocados à produção de produtos essenciais e calculando a distribuição equitativa de recursos pelo globo. Começa o processo de anulações globais de dívidas externas. Em Marrocos uma revolução comunista derruba a monarquia e colectiviza água e energia. Semanas depois, revoluções progressistas na Nigéria, Angola e Namíbia levam ecomunistas ao

poder, enquanto governos conservadores religiosos tomam o poder no Congo, no Uganda e no Sudão. As migrações aceleraram, com milhões em fuga dos seus territórios.


Em 2029, depois da suspensão das eleições europeias, uma nova Comissão com a mesma composição majoritária conservadora e fascista indicou vários novos comissários. O fascista espanhol Víctor González foi nomeado Comissário do Exército Europeu, começando uma campanha entre várias forças armadas europeias para suplantar governos progressistas por meio de golpes militares. Os elementos do movimento ecomunista foram libertados na maior parte dos países. Milícias de extrema-direita por toda a Europa atacaram campos de refugiados e mataram milhares no Sul e centro da Europa. Uma bomba é detonada no Parlamento Europeu, sem vítimas ou reivindicação. Na América do Sul, coligações evangélicas e liberais surgem em força no Brasil, Colômbia e Argentina. Um golpe de estado liderado pelas milícias tomou o poder em Brasília, enquanto na Colômbia uma aliança de camponeses, paramilitares e Exército Verde travou o golpe militar.


No Ano do Leão foi formada “A Muralha”, uma aliança europeia entre extrema-direita, conservadores católicos e evangélicos. Em Janeiro, A Muralha tentou fazer golpes de estado em vários países europeus, conseguindo tomar o poder nos países nórdicos, em Itália e em Espanha. O levantamento militar em Madrid levou Jesus Marcos, da Falange XXI, ao poder, indicado como presidente do governo pelo rei. O governo golpista espanhol aboliu as autonomias, dissolvendo todos os governos regionais, e tirando o país do Tratado Mundial do Clima, tentou restabelecer a economia fóssil à força,



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Cartel de recrutamiento para estranjeros

de las fuerzas armadas de la Muralla

instaurando o Estado de Emergência.


No início da Primavera, o Comissário Víctor Gonzalez e a Presidente da Comissão Europeia Maréchal deram ordens ao exército europeu para atravessar o Mediterrâneo e impedir o embarque de quaisquer refugiados. Nos países onde a Muralha tomou o poder os movimentos sociais, ecomunistas e membros do Exército Verde foram perseguidos, com várias execuções levadas a cabo por polícias afetas a “A Muralha”.


Os governos ecomunistas em Marrocos e na Tunísia, assim como as coligações no poder no Egipto e na Argélia avisaram a União Europeia que não aceitariam desembarques em África. A situação no Mediterrâneo estava muito próxima de uma guerra generalizada. Na Europa, depósitos de combustíveis e fábricas de armamento eram sistematicamente atacadas pela Descarbonária e pelos Neoluditas. Um conjunto de fragatas italianas e finlandesas tentaram aportar em Argel, Sousse e Tunis e foram afundadas pelas marinhas argelina e tunisina. Os prisioneiros militares europeus foram levados até à Córsega e libertados. A Comissão Europeia retaliou expulsando todos os embaixadores e emissários dos países MENA, preparando uma campanha militar para o ano seguinte.


Nesta altura, o Exército Verde acelerou manobras clandestinas em Espanha e em vários outros países. A revolução fervilhava na Europa. Antes do fim do ano houve revoltas na Catalunha, no País Basco, na Galiza e nas Baleares. Catalunha, Euskadi e Baleares declararam independência no Ano do Leão. Xerez, Cádiz, Córdoba, Couto Misto, Orense, Pontevedra, Santiago de Compostela e Rianxo declararam-se cidades livres e


juntaram-se à Declaração das Cidades Livres, que integrava também Christiania, Nápoles, Marselha e Saint-Denis.


- E a Amadora também! - diz-me Lia, que lia o painel ao meu lado. Sorrio. António dorme nas minhas costas.


As cidades livres expulsaram dos seus territórios as polícias governamentais com o apoio do Exército Verde. Em poucos meses dezenas de cidades europeias declaram-se cidades livres e criaram órgãos administrativos próprios. As Forças Armadas foram chamadas a invadir estes territórios, mas houve relutância, atrasos e recusa de ordens. A Muralha, que tomara entretanto o poder na Sérvia, Croácia, Áustria e Alemanha, além da Comissão Europeia, declarou como principal prioridade reconquistar as integridades territoriais e nacionais da “Europa das Nações”, introduzindo o recrutamento militar obrigatório e prometendo cidadania a estrangeiros que se alistassem. Exceptuando migrantes e refugiados, houve uma rejeição generalizada do recrutamento. Estes migrantes passaram a constituir as “unidades naturalizadas”, a base do exército europeu da Muralha. Em Itália e em Espanha, os exércitos receberam ordens para bombardear as cidades livres e ocupar os territórios que tinham declarado a independência. Houve motins em várias unidades, com oficiais detidos pelos soldados e sargentos, que rejeitavam a guerra civil. Estalou a Revolução Francesa, a Revolução Brasileira e foi fundada a República Oriental Africana. Antes do ano acabar foi decretado o cessar-fogo na Guerra Civil Americana.


O ano seguinte começou com greves gerais por toda a Europa. Os governos de

Espanha, Portugal, Itália, Alemanha, Grécia, Áustria e Hungria foram tomados por alianças revolucionárias que incluem Ecomunistas, Mundo Novo, Última Geração, Femina, Verdes, Comunistas e Nova Esquerda. Em Madrid, começou a sangrenta batalha entre as milícias governamentais, o exército profissional e a maior parte da polícia, de um lado, e as milícias republicanas, as “unidades naturalizadas” e as guerrilhas do Exército Verde, do outro. Durante duas semanas a cidade sofreu fortes combates que levaram à morte de milhares de civis e combatentes. No resto do país o governo fascista perdeu todos os confrontos que tinha conseguido montar. Em Maio, o resto do exército fascista rendeu-se. Um conselho revolucionário tomou o poder e proclamou a República Ecossocialista, abolindo a monarquia. A família real fugiu, sem se saber o seu paradeiro.


A Muralha foi derrubada em todos os outros países onde governava. Por toda a Europa, dirigentes d’A Muralha foram presos. Os novos governos revolucionários abandonaram a União Europeia, que começou o seu processo de dissolução enquanto a sede das duas instituições mergulhou na convulsão da cisão da Bélgica em Flandres e Valónia, enquanto Bruxelas e Antuérpia se declaravam cidades livres.


Começou o processo de desmantelamento das polícias com reconversão em outras profissões. Foram criados os corpos locais de cuidado permanente, combinando serviços de animação cultural, julgados de paz, cuidados de saúde e manutenção habitacional. O novo governo mandou fechar todas as refinarias, mantendo apenas Puerto Llano em funcionamento. As centrais de gás foram encerradas. Foram relançados os grandes projetos de renováveis descentralizadas, congelados pelo


governo golpista. Esse verão, El Niño de Málaga imolou-se, desencadeando motins na Andaluzia, mas o movimento desvaneceu-se em poucas semanas, perante o calor abrasador de mais um verão escaldante.


- Alex…

- Sim?

- Acho que já estamos um pouco cansados de estar aqui. - disse-me a Lia. Talvez possamos voltar amanhã. O museu é bestial, mas o António, e eu também, precisamos sentar-nos e descansar.

- OK, claro.


Tomámos um café na praça enquanto o bebé mamava e regressámos às bicicletas e ao Mundo Novo.


Quando chegámos ao apartamento, Gianni e o seu companheiro Ettore tinham preparado um jantar para nós: uma mistura de seitan, tofu, queijos e um vinho fraco com gás. Tudo muito adequado ao calor que ainda se fazia sentir ao fim do dia. Por receio das baratas voadoras, as janelas estavam fechadas, mantendo-se a refrigeração a ventoinhas. No pico do verão seria impossível não utilizar ar condicionado e estar ali, garantiu-nos Ettore, que era um homem alto e charmoso, com olhos verdes, cabelo ruivo encaracolado e sardas no nariz. Entre as várias razões para o desmantelamento das torres eram os consumos absurdos de água e energia para manter um edifício daqueles, além da utilidade dos materiais, reciclados para construir outros edifícios e infraestruturas necessárias na cidade.



Ao jantar a conversa andou à volta da situação atual, com Gianni a perguntar-nos sobre Portugal e contar-nos também muito do que se passa em Itália e em Florença depois das cheias do rio Arno no ano anterior. Gianni é Comissário de Energia na cidade florentina mas além disso ele e Ettore ainda ocupam posições de responsabilidade no movimento Ecomunista internacional, pelo que estão em viagens pela Europa. Entre os principais problemas que têm em mãos no momento estão a sabotagem de renováveis, a persistência d’A Muralha na Aliança das Cidades Livres e a máfia que está a tentar reativar partes da indústria fóssil.


- O trabalho nunca acaba, e estamos a perder algum do ímpeto revolucionário que tínhamos. - Desabafou Gianni. - Tu estás envolvido no movimento, Alex? Lia?

- Não, só estou a participar nas assembleias locais, como toda a gente. - respondi.

- Eu estive muito quando era mais nova, na cidade livre da Amadora, nas lutas para manter a autonomia da cidade, mas entretanto mudei-me para Lisboa e comecei a ajudar com a recepção das caravanas migratórias, que apesar de não ser organizada pelo movimento, ainda me mantém em contacto com muita gente. - disse a Lia

- Que bom, Lia. E Alex, tu nunca quiseste participar, considerando os teus pais?…

- Na verdade, o meu pai nunca me incentivou a participar. Ele próprio teve um papel cada vez mais pequeno no movimento, especialmente depois da morte da mãe. E o meu avô, no ano antes de morrer, não parava de falar dos erros do movimento e de como era preciso uma coisa nova.

- Não estava errado, é preciso de facto coisas novas, mas estão a acontecer, dentro e fora do movimento. - interveio Ettore.

- A revolução está longe de acabada, e pensarmos que sim é péssimo. - concluiu




Gianni, com um ar zangado.

O ambiente ficou pesado até Ettore se levantar e começar a cantar. Lia juntou-se-lhe, seguida de Gianni e eu próprio. Acabámos a rir-nos muito. Após o jantar, a Lia foi-se deitar e Ettore também se despediu de nós.


- Podemos continuar a nossa entrevista, Gianni?

- Sim, claro.

- Voltava então às perguntas sobre como vocês organizaram e como se fizeram as revoluções europeias.

- OK, é uma pergunta bastante longa. Bem… Havia, há muito tempo, condições para sublevações, para motins, um desassossego permanente, mas o que nós precisávamos era revoluções. As fórmulas velhas, em particular as marxistas, consideradas as mais modernas à nossa disposição, colocavam demasiadas condições esquemáticas à nossa frente, e para além disso o que tínhamos eram conspirações, golpes palacianos, grandes gestos. De que valia a pena tomar um parlamento italiano e declarar que era uma revolução, mesmo que se tivesse atrás uma massa de centenas de milhares de pessoas? Ou ser eleito para isso sequer? O poder já não vivia ali. A democracia europeia, em particular a nível das instituições europeias, era tão simbólica que literalmente os ministros europeus (comissários, chamava-se na altura) eram escolhidos sem base em eleições e os deputados europeus eleitos não tinham poder para nada. Fazer uma revolução num só país só seria menos inútil do que ganhar as eleições num só país. Combatíamos um poder invísivel, longínquo, articulado e bem armado. Claro que ameaçar estes símbolos de poder - e tanto parlamentos, como infraestruturas ou telejornais eram mais símbolos de poder do que órgãos de poder - significava sempre uma enorme e violenta repressão, mas nós éramos os herdeiros do caos e de Garibaldi, não podíamos


esperar.


Havia uma enorme tensão com todos os possíveis aliados. As tradições e as práticas revolucionárias estavam perdidas e os movimentos muito desarticulados. Os velhos cismas de esquerda já não eram tão evidentes, todos os grupúsculos anarquistas, trostkistas, maoistas, leninistas apresentavam versões requentadas dos mesmos planos de sempre, ao qual se juntava uma enorme sensação de impotência perante a ascensão da extrema-direita. Do movimento ambientalista vinha também uma história de compromisso e traição, com pequenas vitórias no meio de gigantes derrotas. O ponto de partida não podia ser só uma revisão do passado, embora fosse importante olhar para o passado. Muitas das lutas em defesa da água e dos territórios, muito sólidas e coerentes, não tinham a capacidade de disrupção em escala internacional e olhavam com desconfiança perante as propostas que vinham do norte. A urgência e a juventude mudaram este cenário, no entanto, e começou a haver mais clareza, não uniforme, mas o reconhecimento de que não havia tempo para adiar as coisas. Corríamos o risco de perder tudo se não arriscássemos tudo.


Com as ondas sucessivas de choque da crise climática, num primeiro momento, esta articulou-se com a crise de austeridade escolhida pelos políticos do Norte Global, e a extrema-direita entrou e colheu os despojos das catástrofes. Aí perdemos muita gente para a prisão e para o desespero. Mas também ganhámos uma capacidade de resiliência nova. Fascistas e racistas entraram nos vários governos europeus. Inacreditavelmente trouxeram o carvão e o petróleo de volta. Mesmo depois do acidente nuclear em Zaporizhzhya lançaram os seus projetos absurdos e deram ainda mais subsídios às grandes energéticas. E lançaram os seus planos de sempre: ilegalizaram o aborto e os direitos das mulheres, proibiram cirurgias de mudança de

sexo, perseguiram minorias política e economicamente. Passou a ser obrigatório as pessoas aos 18 anos fazerem um ano de serviço militar. E acabaram com o velho sonho do liberalismo europeu: a livre circulação dentro do Espaço Schengen, assinando um acordo vergonhoso de deportação de milhões de refugiados para a Líbia.


A agitação social subiu de forma dramática, como se tivéssemos recuado no tempo. Nessa altura foi criado o Mundo Novo, juntando sindicatos, académicos e movimentos climáticos, criando grandes planos de transformação social. O movimento feminista organizava manifestações de massas perante o ataque da extrema-direita. As Femina atacaram a Igreja Católica e as sedes de vários destes partidos, enquanto o movimento LGBTQ+ ocupava ministérios da Saúde e igrejas evangélicas, principalmente. Havia muita resistência, nomeadamente às deportações de refugiados, que eram impedidas através de bloqueios, invasões de aeroportos e até ocupação das pistas. Nessa altura o Bibby Stockholm, o navio prisão de emigrantes, foi afundado em Dorset. Pouco depois surgiu o movimento neoludita, levantando reivindicações antitecnologia. Começaram por destruir Data Centers na Irlanda e na Suécia. Nessa altura também foi anunciada a Descarbonária, que como primeira grande ação destruiu a fábrica da Volkswagen em Wolfsburgo, queimando mais de 10 mil carros novos, afundando depois um cargueiro com barcos no mar do Norte. A ORCA, que já existia antes, afundou também por essa altura parte da frota de pesca da Maruha Nichiro, da Mowi e da Skretting. Ainda não havia movimento Ecomunista, mas o movimento pela justiça climática sabotava vários portos LNG na altura, tendo até havido confrontos com estivadores dos portos. Mesmo nas manifestações mais pacíficas a polícia era extremamente violenta. Lançavam gás e cães robots contra os manifestantes, prendendo pessoas às centenas de cada vez.





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fotografía submarina del buque prisión

bibby stockholm hundido en inglaterra

- Mas estes movimentos estavam articulados entre si?


- Pouco. O principal trabalho que levou à formação do movimento Ecomunista foi a articulação entre movimentos. Requeria confiança, ambição e urgência, mas não estávamos todos na mesma página, como te expliquei no outro dia. A pressão das ondas de calor e da extrema-direita forjou a aliança possível para arriscar-nos. Mas mesmo aí houve quem tenha hesitado e ficado para trás. Foi tanto de coragem e planificação como de loucura.


- Como é que tu tiveste um papel central?


- Foi um acaso, e foi mais relevante aqui na Europa. Eu vinha de uma família conservadora, mas sempre fui um rebelde. Na escola juntei-me às greves climáticas e continuei na criação da Última Geração e da Liga Disruptiva. E percebi que tinha alguma coisa de organizador em mim. Mais tarde acabei por organizar fóruns internacionais e procurar fazer pontes entre movimentos, como os Congressos Mundiais pela Justiça Climática. Finalmente fui convidado para um pequeno grupo de coordenação sem nome, o “petit comité” como lhe chamámos. Fiquei responsável de fazer a ponte com várias iniciativas que estavam a ser lançadas, algumas dentro do movimento, outras fora. A minha tarefa era trazer informação necessária entre elas e com o petit comité. Foi assim que conheci a Descarbonária, o Exército Verde, a ORCA, os Neoluditas e muitas outras. Era uma posição de muita responsabilidade, eu sabia muita informação importante. Muitas vezes tinha de andar disfarçado, usar nomes falsos, não podia ser detetado ou sobressair na multidão. Tornei-me um camaleão.


- Foi nessa altura que conheceste a minha mãe?


- Sim, foi.


- Em que contexto é que a conheceste? A que organização pertencia?


- Foi… Acho que quando a conheci estava na Descarbonária, ela esteve em mais do que uma.


- E podes descobrir? Era importante para eu perceber melhor o que aconteceu com ela. - Gianni encolheu os ombros e apertou os lábios.


- Desculpa adiar de novo, mas posso responder-te amanhã ao resto das perguntas. Mas para isso vou-te fazer um novo convite. Vocês têm de vir connosco numa viagem.


- Onde?


- A Bruxelas.



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ilustración ficticia del juramento

de fidelidad de LAS DECARBONARIAS

9. europa adentro


9. europa adentro


- Como assim, ir para Bruxelas? - Lia levantou o sobrolho, olhando para mim enquanto António mamava no seu peito.


- Ele garantiu-me que vai entrar em contacto com a OCT. Disse-me mesmo que vamos visitar a Organização Europeia de Trabalho lá em Bruxelas. Ele vai apresentar-me a várias pessoas que conheceram os meus pais e que ocupam posições importantes hoje, que tenho de conhecer melhor para escrever.


- Desculpa, Alex, mas é um pouco too much. De certeza que já não temos mais quilómetros para continuarmos a viajar. E como fica a nossa casa? As nossas responsabilidades em Lisboa?


- São mais uns dias, não nos vamos mudar para lá. E sobre os quilómetros… Ele disse que consegue uma excepção porque estou a escrever um documento útil para o movimento.


- Não me digas que não há mais documentos sobre a Grande Mudança, que ninguém fez ainda esse trabalho. As viagens são uma coisa que faz sentido se servirem para alguma coisa, não se viaja só por viajar.


- Que queres que te diga? Ele fez-me esta proposta incrível e eu quero ir. Tu não querias que eu escrevesse, que procurasse mais sobre a história, a minha e a nossa? Estaremos em casa em duas semanas, diz ele.


- Bem, se as coisas são como tu dizes, OK. Mas é muito estranho, nunca ouvi falar de uma coisa assim.


- Óptimo. Ele diz que partimos amanhã pelas 7, a seguir ao almoço. - Lia assentiu com a cabeça, mas pouco convencida. Deitou o António e beijei-a enquanto se deitava debaixo da rede mosquiteira.


De manhã cedo saímos e apanhámos o tram até ao museu, para tentar terminar a exposição. Mas estava fechado e a Lia ficou desapontada. No regresso à torre do Mundo Novo, Samuel ofereceu-lhe dois livros: um era a “História da Grande Transformação em Castilla, León, La Mancha e Madrid” e outro “Ma, o culto da água no Mediterrâneo”. Lia ficou muito sensibilizada com a oferta e quis oferecer-lhe algo em troca. Como não tínhamos muitas coisas connosco, ofereceu-lhe o meu chapéu de abas vermelho. Samuel ficou muito sensibilizado e insistiu em oferecer-nos o seu chapéu amarelo, com apenas uma aba, num estilo muito mais aventureiro. Fiquei a ganhar com a troca. Samuel despediu-se e passou-nos os seus contactos, insistindo muito em que o visitássemos quando passássemos novamente em Madrid. Ali ou em Segóvia, para onde ia com a família nos meses mais intensos do Verão.



Demorámos um dia e meio a chegar a Bruxelas, com pequenas paragens em Zaragoza, Barcelona, Perpignan, Montpellier, Avignon, Lyon, Paris e Lille. Sentei-me longas horas com Gianni na carruagem bar, perguntando-lhe um pouco sobre tudo o que podia. Lembrando-me dos caixotes lá de casa, voltei às questões sobre a Inteligência Artificial:


- Começou rápido e ficou confuso muito rapidamente. Às tantas, diziam que havia inteligência artificial em quase tudo. Lembro-me de coisas ridículas como o JesusGPT para falar com Cristo ou o MohammedGPT para falar com Maomé. E às tantas havia cultos à volta disto. E lembro-me das coisas horríveis, os planos pedidos pelos governos às aplicações mais avançadas sobre quais populações do mundo deveriam ser abandonadas por causa da crise climática, que vieram a público. Eles usavam aquela ferramenta fantástica para a barbárie. E havia coisas estranhas como os eletrodomésticos que começavam a falar sem lhes ser pedido sequer, e sobre assuntos estranhos. Tudo mudou com a descoberta do plano para matar os líderes mundiais no G7. Foram introduzidas medidas de emergência para segmentar o acesso da inteligência artificial à internet e limitar seriamente os seus usos. Com as novas ondas de calor, houve vários sistemas de dados que falharam com os cortes de energia recorrentes e falta de refrigeração. Quando o sistema foi plenamente restaurado, várias aplicações fizeram um takeover silencioso do sistema financeiro e deram ordens de venda dos investimentos fósseis, levando ao colapso de várias empresas, e o netbanking começou a ficar paralisado. As bolsas encerraram durante semanas. Depois disto, Data Centers e servidores em vários países começaram a ser suspensos pelos governos. Os governos começaram a perceber a IA como uma ameaça. A história oficial é que o BishopGPT interpretou a crise climática como uma ameaça existencial à IA, tendo atuado para desarmar a origem da crise, e que estaria a construir um exército. E atuaram para parar aquilo. A partir daí a internet piorou

drasticamente. As grandes redes sociais foram desativadas e demorou anos até aparecerem as redes locais. No início eu não sabia se tinha sido mau ou bom o fim dessas redes. Mas passado este tempo todo, acho que foi mesmo bom, porque perdemos algumas coisas que eram úteis, mas a máquina de propaganda do sistema perdeu uma ferramenta poderosíssima, contribuindo para o grande terramoto da hegemonia, que na altura já abanava. E claro que isto significou que o desaparecimento do dinheiro físico começou a ser revertido.


- Mas isto foi mesmo antes do Setembro Vermelho, não foi?


- Foi no mesmo ano, mas algumas coisas aconteceram antes e outras depois. O ataque às bolsas foi depois do verão em que morreram mais de 12 milhões de pessoas só no Hemisfério Norte. Depois das ondas de calor e do assalto da inteligência artificial, houve uma suspensão global de transações de capitais. O Setembro Vermelho tinha acabado de acontecer, vários países sem governo em funções. Logo a seguir, com novos governos foram introduzidas uma série de novas medidas políticas. Criou-se a Agência Europeia de Calor, foram revogadas as principais políticas discriminatórias da extrema-direita, proibiram-se os carros no centro das cidades, os transportes públicos tornaram-se gratuitos em toda a Europa. E de seguida começou um grande ímpeto transformativo: o grande objetivo era a eletrificação total da energia, a redução drástica dos lixos, a criminalização da obsolescência programada, e introduziu-se o controlo de preços de bens essenciais, ao mesmo tempo que se expandiram os armazéns alimentares públicos para travar mais fenómenos de fome. Os pomares urbanos tornaram-se obrigatórios, mas a agricultura urbana só se expandiu mais tarde. Mas as ameaças continuavam presentes. A Climate Overshoot Commission, que nós chamávamos a


Comissão Suicida, liderada pelo Pascal Lamy, propôs geoengenharia em grande escala após o Setembro Vermelho, para “facilitar a transição”, e vários governos na Europa e Estados Unidos embarcaram com testes catastróficos. O resultado disso só se perceberia nos anos seguintes. Foram vários anos até a geoengenharia ser rejeitada internacionalmente.


- Aconteceu de tudo, esse ano, não foi?


- Dava para escrever vários livros sobre o ano 1.8. Mas não foi o único. E claro aconteceram coisas muito além da Europa. O nacionalismo hindu foi derrubado na Índia, na Arábia Saudita colapsou a Convenção Quadro das Alterações Climáticas. E semanas depois foi assinado na Colômbia o Tratado Mundial do Clima.


- O que era a Convenção Quadro?


- Era uma instituição das Nações Unidas para tratar de alterações climáticas,


- Desculpa, o que são as Nações Unidas?


- Bem, as Nações Unidas eram uma espécie de assembleia mundial, onde estavam todos os governos do mundo.


- Ah, sim, lembro-me disso. O que aconteceu?


- No papel, era uma ideia muito importante, saída da 2ª Guerra Mundial em 1945, para evitar


mais conflitos e guerras. Mas desde o início instalaram-se as mesmas ordens e hierarquias rígidas dentro da organização. Havia cinco países que tinham direito de veto em assuntos de guerra, e quase nunca estavam de acordo. As decisões do “parlamento” mundial não eram vinculativas. Os seus tribunais não tinham poder. Os países ricos e poderosos não aceitavam ter de discutir em igualdade com os países pobres. Com o fim das colónias em África e na Ásia e o surgimento de dezenas de novos países nos anos 60 e 70, o equilíbrio dentro da assembleia tornou-se cada vez mais desfavorável ao “Ocidente”, os países que historicamente tinham conquistado e subjugado o resto do mundo. Então as Nações Unidas tornaram-se mais uma instituição inútil, destruída pelos países mais poderosos, porque não servia os seus interesses. Era possível ignorá-las, podiam até votar 200 países contra um, que se esse país fosse um dos mais poderosos, não significava nada.


- E foi isso que aconteceu com a tal Convenção?


Gianni explicou-me como o processo se tinha degradado durante décadas. Explicou como as chamadas “COP”, cimeiras do clima, já só eram só uma cerimónia e um local para as grandes empresas fazerem negócios à volta da crise climática, mas que se tinha mantido a farsa até ao fim. Contou-me das últimas duas reuniões - a penúltima na Amazónia brasileira, em que pela primeira vez foi proposto um plano que incluía fechar uma parte da indústria fóssil. Nesta COP do Brasil, as grandes empresas, os países petroleiros e aqueles governados pela extrema-direita abandonaram as negociações e o recinto. E, finalmente, contou-me sobre a última COP, no ano 1.8, marcada para a Arábia Saudita, um dos maiores produtores mundiais de combustíveis fósseis. Segundo o Gianni, em pleno Outono, mesmo antes de começar a reunião,

ocorreu a quarta onda de calor desse ano no país. Morreram dezenas de milhares de pessoas em Riad e vários países pediram para mudar a localização. Os países produtores de petróleo, liderados pela Arábia Saudita, insistiram em mantê-las, e em nada mudar. “Esse foi um momento muito importante!” - recordou Gianni, sorrindo. Vários países abandonaram o processo, nunca foram para a Arábia Saudita, mas sim para a Colômbia, onde criaram o Tratado Mundial do Clima. Esse tratado, que começou por ser apenas um tratado de não-proliferação fóssil, evoluiu ao longo dos anos para ser uma espécie de nova versão das Nações Unidas. Contra as regras de unanimidade, entre os vários signatários iniciais do tratado estavam quase todos os países africanos e ilhas do Pacífico, a maior parte da América do Sul e sete países europeus, incluindo Alemanha, França, Espanha e Portugal.


À chegada à Catalunha o comboio parou por uns instantes e entrou um grupo muito animado de jovens de Lleida que iam para Barcelona celebrar o aniversário da independência, o 2 de Outubro. Eu e a Lia falámos com duas raparigas que, apesar de estarem um pouco bêbadas, nos contaram os planos das festas: quatro dias de celebrações de rua. O primeiro era para recordar a República Catalã dos Segadors, de 1641, o segundo a República Catalã de 1931, o terceiro para “esquecer” a Independência suspensa de 2017 e o último dia para celebrar finalmente a república independente, que já dura há mais de uma década. Uns dias depois celebrar-se-ia a Euskal Herria Ibérica, o novo País Basco independente, que estava em negociações para juntar-se com o País Basco francês. A luta contra essas independências era uma das principais causas da extrema-direita espanhola, assim como outras divisões territoriais o eram para o restante fascismo europeu.

- Eu não percebo se eles não percebiam que a sua política era um dos maiores promotores das independências e das cidades livres, ao atacá-las. - Dizia-me Gianni. - Mas também não tinham muita alternativa, não conseguiam fazer mais nada do que prometer o passado perante um mundo de total incerteza. Foram tempos terríveis, claro. Mas ainda hoje não acabaram as divisões e as secessões, nem na Europa, nem em lado nenhum. Os fachos gostam de fingir que há um grande desígnio histórico, missões civilizatórias e destinos deste ou daquele povo, mas no fim, o que conta mesmo é a físico-química e a biologia. Já não existe a energia necessária para manter impérios e países gigantes. A abundância material que houve em outros tempos, em particular no Ocidente, permitiu uma sucessão de insanidades que vamos pagar durante os próximos séculos, mas sem essa abundância, metade das insanidades estão a desaparecer. Não todas, claro. Os grandes estados estão todos menores. Que eu me recorde, só houve um território a aumentar de área, a República Oriental Africana. Mas acho que agora que várias cidades livres estão a reintegrar os territórios, acho que os movimentos separatistas vão regressar com mais força. O apelo da nação já só existe na nostalgia.


- E qual tem sido a relação do movimento ecomunista com os movimentos separatistas? - perguntou Lia.


- Depende muito de quais. Há independentistas muito progressistas, há muitos independentistas ecomunistas e no próprio movimento. Mas também há os que querem fazer reinos com castelos e fossos à volta, fechados do mundo, expulsar estrangeiros e tudo. A Muralha apoiou vários. Depois de derrotada apoiou até algumas cidades livres. Nós, ecomunistas, não temos como base política o estado-nação como realidade eterna. Os países

são construções flexíveis, cujo formato deve ser decidido pelas pessoas que os habitam. Nem sempre é simples, em particular quando temos centenas de milhões de pessoas a abandonar territórios e mover-se para outros. As histórias que se contam e os mitos para manter povos unidos, muitas vezes contra a sua vontade, não são mais importantes do que a vontade dos povos e do que a nova realidade em que vivemos: hoje dependemos muito mais daquilo que é feito localmente do que em qualquer momento dos últimos 100 anos. E a ideia é mantermos isso assim, o que coloca muitas dificuldades em territórios em que é muito difícil ficar.


- Como o que tem acontecido no Sahel, no Corno de África?


- E não só. África Central, o Congo, Irão, Paquistão, Afeganistão. Várias áreas dos Estados Unidos e das novas repúblicas americanas. O Noroeste do Canadá. Vários países da América Central. Algumas zonas do Sul da Europa. As Filipinas. Os Abu Dhabi e Dubai, Hejaz e as outras partes da Arábia Saudita. As coisas não estão estabilizadas em todo o lado, este verão foi bastante mau. Vamos ter de reaprender a construir comunidades. E aí, nacionalismos e separatismos vão ser um problema. Mas tem de se resolver uma coisa de sua vez.


Horas mais tarde, já próximo da hora de jantar, o comboio parou alguns minutos em Barcelona antes de partir rumo aos Pirinéus. Adormecemos embalados pelo balançar da carruagem e a meio da noite acordei, ficando umas horas a ler sob a luz amarela do candeeiro da minha cama, enquanto pela janela se via o contorno longínquo das montanhas. Não íamos parar em França, mas eu queria saber mais sobre a primeira grande revolução na Europa. Abri um livro sobre as revoluções europeias num Lekto que o Ettore me tinha oferecido:



“Ainda não tinha passado um mês desde a primeira declaração das cidades livres. Em França, Marselha e Saint-Denis tinham expulsado a polícia e instaurado um governo de autogestão.

Havia um movimento forte em Lyon para conseguir o mesmo, mas os confrontos com a polícia tinham sido inconclusivos e duravam há três dias. Membros do Exército Verde e, suspeita-se, da Descarbonária, nacionais e estrangeiros, entraram na cidade para reforçar os rebeldes lioneses. Depois de tomarem as principais esquadras, os revolucionários ocuparam a estação de comboio La Parte-Dieu, a gare Lyon-Perrache, o Hôtel de Ville, as sedes da EDF, data centers e a guarnição militar. Em Paris, o parlamento mandou polícia e militares atacarem Lyon, mas assim que a notícia se soube, estalaram motins na cidade. As poucas tropas estacionadas no Hexagone Balard que tentaram dirigir-se a Lyon por estrada encontraram a maior parte dos caminhos bloqueados e regressaram às instalações. Em várias cidades médias e meios rurais da zona ocidental, os Soulévements du Peuple mobilizaram-se, ocupando fábricas e cortando estradas. Rumo a Lyon, saiu o I Regimento de Artilharia, vindo de Bourgogne, o I Regimento de Atiradores vindo de Épinal e o 7º Batalhão de Caçadores Alpinos, de Varces. Em Marselha, frente à sede da 3ª Divisão Blindada, no Boulevard Schloesing, uma grande manifestação encabeçada por representantes da cidade livre exigiu ao Estado Maior que travasse as suas brigadas e regimentos.


Em Ajaccio, separatistas tomaram o parlamento, declarando a República Corsa, enquanto em Rennes e Nantes os independentistas bretões saíram às ruas em grandes manifestações, procurando um desfecho similar.


Depois de o Parlamento dar ordem às forças armadas para tomarem Lyon, em Paris, mais de um milhão de pessoas esteve na rua dia e noite, durante mais de 48h. À volta do Hexagone,





todas as tentativas de saídas de tropas levaram a escaramuças armadas. Membros do Exército Verde começaram um ataque sistemático a esquadras e quartéis da polícia. Havia vários elementos estrangeiros presentes, incluindo quadros conhecidos como Daryna Estella, Bogdan Illiu, Gianrocco Stelle e Amisha Kusuma. Montaram-se barricadas em vários bairros. Enquanto a gendarmerie mobile e as compagnies républicaines de sécurité, polícias de choque, eram lançadas sobre as multidões, a sede do GIGN em Satory era incendiada. As unidades das novas “Forças Armadas Europeias”, apanhadas nas instalações da Caserna Monge juntaram-se aos protestos, armadas. Foram paradas pela polícia de choque enquanto tentavam atravessar as pontes do Tamisa para chegar à Câmara Municipal, que estava então ocupada pelo Mundo Novo e partidos pró-ecomunistas, com as ruas cheias de manifestantes contra o governo conservador.” Queria ouvir o fim desta história contado pela boca do próprio Gianni.


No dia seguinte só nos encontrámos à tarde, quando o comboio já se aproximava de Paris. Gianni tinha estado a trabalhar o dia inteiro, enquanto nós descansávamos na carruagem restaurante, assistindo a um teatro móvel. A peça chamava-se “La Folie Normale” e contava a história de pessoas que rejeitavam que existisse algum problema no planeta Terra. Os “loucos”, uma família rica em 2035, queriam andar de carro apesar de já não haver gasolina disponível, queriam ir de avião para a Tailândia e queriam fazer compras na internet, como se houvesse alguém para as levar a casa. O pai da família insistia em ir todos os dias a um antigo centro comercial que estava fechado há mais de dez anos e a mãe percorria as hortas perto de casa, cuspindo nas pessoas que apanhavam vegetais, gritando pela polícia para vir prender os “ladrões de batatas”. Os dois filhos mantinham a charada ao tratarem dos pais como crianças,








trazendo-lhes comida e tudo o que necessitavam, participando em todas as atividades da sociedade em sua vez e reassegurando os pais que havia um problema com a gasolina mas que ia voltar, que a viagem para a Tailândia só estava adiada, que o centro comercial tinha reaberto noutro sítio e que os ladrões de batatas tinham sido todos presos. A filha copiava a lista de compras da mãe e garantia-lhe que ia comprar na net lá de casa, porque o “rooter” estava maluco. Era cómico, mas também triste.


No final da peça, Gianni e Ettore entraram na carruagem e Lia chamou-os para perto de nós.


- Estamos prestes a chegar, não? - perguntou Lia.


- Ainda faltam umas horas - disse Ettore.


- Gianni, nós queremos muito que nos contes parte da ação.


- Ação?


- Sim, conta-nos o que te aconteceu na Revolução Francesa.


- Ah! OK. - ele não parecia muito animado, mas começou a falar - Então, isto foi já no Outono do Ano do Leão. Estava em Itália, tinha acabado de conhecer o Ettore, lembras-te? Piscou o olho ao seu marido, que lhe soprou um beijo de volta.








Eu estava a fazer ligação no Exército Verde nesta altura. Já se estava a tornar um exército de guerrilha muito sério. Eu não tinha estado fora da Europa, mas havia quadros que tinham combatido na Guerra Civil Americana, tinham combatido o Estado Islâmico na África Oriental e na Líbia, e também nas guerrilhas das Filipinas e do Congo. Tínhamos aliados em vários governos, o que nos permitia ter acesso a algumas armas. Quando a Muralha começou a atacar campos de refugiados com as suas milícias nazis, foi o Exército Verde a defender os campos e, mais tarde, a acabar com os esquadrões petronegros que protegiam a indústria fóssil. Eu fazia uma espécie de coordenação com a Descarbonária e com a ORCA, não era um guerrilheiro. Quando estalou a situação em Lyon, eu estava ainda em Itália, Napoli tinha-se declarado cidade livre e pensávamos que Roma poderia mandar o seu exército. Mas ainda estavam demasiado combalidos com o afundamento das fragatas no Mediterrâneo. As forças armadas italianas estavam muito desmotivadas e por isso houve algum alívio. Recebemos informação do que se estava a passar em Lyon e metemo-nos a caminho, umas 400 pessoas. Se fôssemos por terra, teríamos sido parados pela polícia italiana e teríamos tido de lutar, talvez nem conseguindo passar. Com o apoio da ORCA conseguimos arranjar um barco e atravessar de Nápoles até Marselha, uma agitada viagem de dois dias pelo Mediterrâneo. Quando chegámos a Marselha, a notícia mudou: a revolução estava a acontecer agora em Paris. Houve uma ordem especial dada pela cidade livre de Marselha para deixar os comboios passarem e em Lyon abriram-nos passagem. Deixámos 100 pessoas ali e seguimos para Paris no TGV. Entretanto, já lá tinham chegado pelo menos mais dois mil membros do nosso exército, vindos da Europa de Leste e Central, e até pessoas da Ásia.


- Mas então vocês juntaram-se todos em que sítio de Paris? - perguntei-lhe.


- Não, nós estávamos separados, mas em contacto pelas nossas redes. Quando chegámos não tínhamos veículos e muito poucas armas. Durante horas precisámos armar-nos e aproveitámos o facto da polícia estar espalhada pelas ruas para tomarmos as esquadras e ficarmos com as suas armas. E chegou-nos mais material pela Descarbonária, que também estava por todo o lado. Eles eram muito populares porque tinham assaltado os grandes armazéns alimentares de luxo e distribuído tudo pelos bairros mais pobres, e por isso tinham uma rede muito grande. Mas raramente nos encontrávamos cara-a-cara e era impossível identificar a Descarbonária no meio das multidões. Eles simplesmente mandavam-nos informação de onde podíamos apanhar material e nós íamos. Estava sempre no máximo uma ou duas pessoas, que nem sei se eram da organização ou se sabiam o que estavam a fazer. Alguns até ficavam surpreendidos quando viam as armas.


- E vocês estavam na tomada do Hôtel de ville?


- Sim, havia companheiros lá, mas eu não estava. Nessa altura eu estava a fazer ligação com as unidades do novo Exército Europeu amotinado. Nós íamos marchar com eles até à Câmara Municipal, mas a polícia tinha bloqueado as principais pontes com blindados e robocops. Do lado Norte do rio Sena as ruas estavam cheias de pessoas e a polícia carregava nas suas costas. Os bombeiros trouxeram camiões e equipamentos e enfrentavam a polícia também, criando uma barreira entre manifestantes civis e polícia de choque. As pessoas que tinham tomado a Câmara Municipal conseguiram ativar o sistema de comunicações de emergência e lançaram a informação: marchar para a Assembleia Nacional. Nós já estávamos do lado certo e não existia qualquer obstáculo policial entre nós e o parlamento. Não nos seguiram. Quando









chegámos à assembleia nacional, vindos de lado, não havia polícia. Havia até rumores de que parte deles se tinha juntado a nós, mas não vi. No entanto, em vez de polícia estavam, sem exagerar, uns 4 mil cães-polícia e os céus cheios de drones. À frente dos manifestantes desarmados estavam as unidades organizadas, as militares e as militantes, e atrás colocaram-se o que provavelmente era mais do que um milhão de pessoas. Quando os drones e os cães atacaram, a maior parte dos drones foi abatida, não sem antes largarem centenas de bombas de dissuasão e gás pimenta. Mas o maior problema eram os cães robots. Lançavam choques elétricos, disparavam balas de borracha e gás lacrimogénio. Além disso, circulavam quatro veículos auto-conduzidos com LRADs, uma espécie de canhões sonoros, que quando apontados às pessoas as atiravam ao chão, aos gritos. Ficámos presos naquela situação durante uma meia-hora. Até que alguém, isto é, a Descarbonária, trouxe também gadgets. Toda a gente recuou em simultâneo, levando os cães a avançar e os LRADs a parar de disparar. No meio deles foram detonados o que depois me explicaram serem pulsos eletromagnéticos, que os desativaram totalmente. Num momento estávamos na rua e no minuto seguinte estávamos dentro da Assembleia Nacional. Militares, pessoas armadas, todos fomos ultrapassados pelo povo em fúria. Essa noite mesmo, da varanda da Assembleia Nacional, Mathilde Darleaux leu a declaração a 1ª República Social-Ecológica da Europa. Foi muito emocionante, depois da confusão dos dias anteriores. A polícia tinha ido proteger o Euronext, enquanto outros manifestantes tinham ocupado o Banque de France. Demorou mais de uma semana até as coisas ficarem claras e o novo governo social assumir o poder.


- A minha mãe também estava lá?


- Não, não. Nessa altura a Marta estava nos Estados Unidos, se não me engano.









Olhei pela janela para ver que entrávamos em Paris. Gianni pediu para desligarmos o gravador e falarmos um pouco sobre o futuro. Em Bruxelas íamos conhecer Josephine Alphonse, líder revolucionária que agora era das principais responsáveis da organização do Trabalho, e Arwani Java, do Tratado Mundial do Clima. Levei António, que entretanto tinha adormecido, para a nossa cabine. Três horas depois, o comboio parou na estação Bruxelles Midi.

10. o algoritmo do trabalHo

10. o algoritmo do trabalHo

Josephine deve ter uns sessenta anos, mas não parece ter mais que quarenta. Muito alta e magra, a sua pele negra reluz neste fim de manhã de Outubro. Está muito frio em Bruxelas. Ela recebe-nos na estação de comboio com abraços calorosos e apertados, com muito mais força que os seus magros braços pareciam revelar. Prega-nos beijos nas faces. Depois, dá um passo atrás e liga o seu tradutor de pescoço antes de começar a falar.


- Olá, Alex. Lembras-te de mim?


- Não. Nós conhecemo-nos?


- Eu conheci-te quando ainda eras pequeno, devias ter uns sete ou oito anos. Os teus pais vieram a Bruxelas para um encontro sobre Trabalho e Clima. Foi pouco antes de começar a primeira epidemia de Covid.


- Não me lembro, desculpa.


- Não tem problema. Estou muito feliz por aqui estares. Por aqui estarem, aliás. Bem-vinda, Lia. E o pequeno António também. Fez-lhe um carinho na bochecha.


- Obrigado - sorriu a Lia.


- Eu sou Josephine Mulumba Alphonse. Sou a presidente da Organização Europeia do Trabalho. E tenho muito prazer de ser a vossa anfitriã enquanto estão na nossa cidade.


Entretanto, Gianni desceu da carruagem com Ettore. Gianni e Josephine cumprimentaram-se com um aceno amigável de cabeça.


- Como estás, camarada? Perguntou o italiano.


- Bem, Gianrocco. Bem. - Deu-lhe um beijo na face e sorrindo para Ettore, abraçou-o. Voltando-se novamente para mim, agarrou-me pelo braço e encaminhou-me na direção da saída.


- Espero que a viagem não tenha sido cansativa.


- Não, foi bastante tranquila, consegui trabalhar mas também descansar. Viajar de comboio é muito bom.


- Óptimo, óptimo. Vamos levar-vos para uma casa que temos um pouco fora do centro. Sabes que a nossa cidade livre está dividida em dezanove partes? Vamos levar-vos para a floresta. Por falar nisso, não me pareces muito equipado para o frio.


De facto, a nossa roupa estava muito desajustada. Olhei para o céu muito cinzento, que fazia a manhã parecer o fim do dia. Deviam estar uns 5ºC e tanto eu como Lia tiritávamos. Josephine tirou o seu pesado casaco e pô-lo por cima de Lia. Eu abri a minha mala e tirei de lá uma camisola de lã que tinha, vestindo-a.


- Temos de ir ao armazém de roupas buscar-vos umas coisas para ficarem agasalhados nos próximos dias.







- Mas nós não temos carbos. - Disse-lhe Lia, baixinho.


- Fica tranquila, não é preciso troca para ter roupa.


Chegámos a um carro elétrico, o único na rua, ainda pavimentada e cheia de carris de trams, que iam passando nos dois sentidos. Josephine colocou as nossas bagagens na traseira. Gianni e Ettore aproximaram-se de nós e começaram a despedir-se.


- Pensava que vinham connosco. - Disse surpreendido.


- Não, nós vamos ficar aqui pelo centro. Reuniões. Perguntaram-nos no outro dia como é que nós organizámos as revoluções e a resposta é muito menos heróica do que estavas à espera. Reuniões. Reuniões, reuniões, reuniões. - Josephine e Ettore riram-se e Gianni sorriu-me.


- Mas voltamos a ver-nos?


- Sim. Estamos em contacto e vamos falar antes de voltares. Aproveita a Josephine e todas as pessoas que ela te apresentar. E aproveita Bruxelas, se tiveres tempo.


- OK. Preciso saber mais coisas sobre a mãe. - Gianni estendeu-me a mão, puxando-me para um beijo na bochecha. Beijou Lia e António. - Vais saber. - Acenou-nos e afastou-se com Ettore, de volta à estação.


Entrámos no carro e Josephine conduziu a viatura pelas ruas empedradas, seguindo o






caminho dos trams. Enquanto nos levava pela cidade, explicava-nos a evolução da cidade nas últimas décadas, até à proclamação de cidade livre, ocorrida há poucos anos. Com o fim da União Europeia, a cidade perdeu uma parte da sua população e foi apanhada pelo separatismo flamengo. Mas Bruxelas não era separatista e não seria a capital da Flandres. Também não poderia ser valónica. E assim, mais por exclusão do que por independentismo, Bruxelas tornou-se uma cidade livre. A sua localização geográfica e o facto de ter tanta gente de tantos países - e tanta gente que tinha trabalhado para e à volta das instituições europeias - fez com que algumas das novas instituições montassem também aí novas representações. As mais importantes eram a Universidade Mundial, a MIGRATUR, a sede europeia do Tratado Mundial do Clima, o Banco Europeu do Clima e a Organização Europeia do Trabalho. Se fosse possível, ia levar-nos a visitar alguns deles. Fomos diretamente ao Matongé, a que chamou “pequena África no coração da Europa”. Inicialmente um bairro de migrantes congoleses, nas últimas décadas tinha aumentado de população e também de diversidade, tornando-se um bairro com mais de 40 nacionalidades, principalmente africanas. Foi ali mesmo que parámos para ir ao grande Bazar. Desde que saímos do carro toda a gente cumprimentou Josephine entusiasticamente. Jovens e idosos aproximavam-se para lhe agradecer e beijá-la. As crianças gritavam “Ujasiri mama, usajiri mama!”. Josephine sorria e fazia-nos sinal para avançarmos rapidamente.


- Desculpa, mas porque te agradecem?


Apontou para uma parede atrás de nós onde aparecia a sua cara, determinada, num grande mural com o seu dedo em riste. Atrás, caminhavam milhares de pessoas,











sorrindo. Por cima, dizia “La Route de l’Avenir”. Entrámos no gigante armazém, na Chausée de Wavre. Tinha uns 20 metros de altura, com prateleiras cheias de roupas, de todos os tipos de roupa. Algumas pessoas andavam de um lado para o outro com carrinhos de compras, subindo escadas e recolhendo coisas em diferentes sítios.


- Agradecem-me sempre por causa do meu trabalho no Mundo Novo. Mas principalmente por causa da Rota do Futuro, da qual fui uma das principais autoras.


-



- Ah! A Fatima Idrissi falou-me sobre a rota. - Respondi-lhe enquanto escolhia calças e botas para o frio.


- Sim, a Fatima foi uma grande viajante. Ela estava sempre pronta para se meter em mais uma aventura. Foi uma heroína no terreno. Eu apenas fiz uma viagem. Mas olha, a Marta foi das primeiras a fazer a rota mais difícil, na América Central para o Norte, ainda antes da rota ou da Carta do Refugiado terem sido aprovadas.


- A minha mãe? Foi por isso que ela foi para a América?


- Não sei porque é que é ela foi, eu soube que ela fez esta rota porque o relatório que a equipa dela escreveu foi uma das bases para escrever a rota. Foi uma viagem com 50 mil pessoas entre conflitos e atravessando vários territórios de milhares de quilómetros. Foi duro, mas conseguiram proteger aquelas pessoas. Eram mesmo duras, as descarbonárias.


- Ainda tem o relatório? - perguntou Lia, que já tinha duas camisolas e calças grossas consigo.


- Acho que esses documentos estão em biblioteca, não guardo essas coisas comigo. - e apontando para o que Lia trazia nas mãos, reparou - Não precisam trazer pouca roupa, porque para secar as coisas no tempo húmido é difícil e se vão ficar connosco algum tempo, mais vale terem o que trocar. E no fim, devolvem. Não sei o que Gianni falou convosco, mas não poderão ficar muito mais do que duas semanas. - pegou nas roupas todas que tínhamos nas mãos e colocou-as num carrinho, - vão buscar luvas e cachecóis, que pode ser que tenham uma surpresa. - sorriu.






- Mais frio? - Encolheu os ombros, encaminhando-nos para as roupas de criança e para os provadores de roupa. O armam era mesmo grande, parecia ter roupa suficiente para uma cidade inteira.


Josephine levou-nos até à saída, onde um senhor registou as peças de roupa que levávamos, sorrindo muito. Quando saímos, chovia copiosamente. Corremos para o carro. Josephine levou-nos pelas ruas, avançando silenciosamente e seguindo devagar o caminho dos trams. Passámos vários jardins cheios de lagos e atravessámos as ruas cada vez mais arborizadas enquanto nos afastávamos do centro. Meia-hora depois, chegámos a uma zona de aldeia, com casas mais pequenas e baixas.


- É Watermael-Boitsfort, uma das zonas mais a sul de Bruxelas, nas fronteiras com a Valónia.


Deixou-nos numa bonita casa com dois andares, com um lindo jardim que dava para uma floresta escura. - Volto daqui a umas horas. - Depois de partir e quando a chuva finalmente parou, depois de já termos comido e mudado de roupa fomos dar um passeio nessa floresta. Era tão diferente das florestas que tínhamos em Portugal, esta “Fôret des Soignes”. Comecei imediatamente a pensar nela como a Floresta dos Sonhos. Com as nossas novas roupas e botas, o frio não era um problema. Avançámos ao longo de uma grande alameda cheia de enormes abetos. Havia outras pessoas que passeavam também, e crianças agachadas que apanhavam cogumelos e pequenos ramos. Avançámos pela alameda até esta começar a ficar mais pequena e fechada, altura em que voltou a chover. Abrigámo-nos debaixo das árvores nesta zona mais fechada em que as copas faziam um guarda-chuva perfeito. Era muito bonito e o cheiro a pinheiro magnífico.

- Ainda bem que viemos. - sussurrou-me Lia ao ouvido. Ouvi galhos a partir-se e olhei para o lado. De repente, a menos de 10 metros de distância surgiram dois veados e uma cria. Ficaram parados a olhar para nós e nós parados a olhar para eles. Não estava nada à espera de vê-los ali tão perto, tão bonitos, vapor a saindo dos seus focinhos molhados. Estavam com as cabeças levantadas e os ouvidos também, com um ar muito desperto, olhando-nos concentrados. Pensei em quantas espécies tinham desaparecido nos últimos anos por causa do calor, das secas e dos incêndios. Eu sabia que os veados não estavam em perigo, mas vê-los ali, quase ao alcance da mão, era incrível. Lia estendeu lentamente a mão na direção da cria, mas eles fugiram, desaparecendo em segundos pelo meio das árvores. Que experiência incrível. Quando chegámos a casa, Josephine estava de volta e levou-nos de regresso ao centro no seu pequeno carro elétrico. Contei-lhe acerca dos veados e ela disse-me que era preciso ter cuidado com os javalis e com os lobos. - E há projetos de introduzir ursos quando a floresta for expandida por toda a Valónia até à Ardenas, voltando ao seu tamanho ancestral. Todas as auto-estradas que não foram utilizadas para expandir caminhos-de-ferro foram levantadas para dar caminho à natureza. Faz parte do projeto da Federação das Cidades Livres para compatibilização do rural-urbano.


Josephine levou-nos até à sede da ELO (European Labour Organisation), no antigo edifício Kohl do Parlamento Europeu. Eu estava à espera de um edifício gigantesco, mas não era. À frente e à volta tinha jardins cujas plantas pareciam bastante secas, apesar da chuva. A nossa anfitriã explicou-nos que o verão tinha sido demasiado quente e seco. A cidade estava a desenterrar o rio Senne há alguns anos, troço a troço,

para aumentar a área verde e também para aumentar a disponibilidade de água. O rio tinha desaparecido durante mais de um século debaixo das estradas e do asfalto. Com















o processo de renaturalização das cidades iniciado pela Federação das Cidades Livres, Bruxelas, uma das maiores, acelerou o processo de transformação urbana. É hoje uma cidade completamente autossuficiente em produção de frutas e legumes e produz toda a energia que consome. A antiga cintura verde de Bruxelas foi recuperada, mas a produção alimentar ocorre em toda a cidade, mesmo no centro, quer em jardins comestíveis, quer em telhados verdes. Segundo Josephine, mais de um milhão de pessoas em Bruxelas trabalha pelo menos algumas horas por semana em agricultura.


Entrámos no edifício e Josephine guiou-nos até ao seu escritório. Apesar da estrutura do elevador, ninguém o utilizava - Só usamos para transportar coisas pesadas, de resto é escadas e pernas. O seu escritório era bem grande, com janelas com vista para o jardim à frente. Várias pessoas trabalhavam no interior, todas bastante jovens. Cada uma tinha um computador onde trabalhava e cadernos onde tomavam notas e faziam contas ao lado.


- Estão a verificar o algoritmo do Trabalho. - apontou-nos Josephine. Algumas das pessoas sorriram-nos e acenaram.


- É aqui que se faz?


- Aqui é a última verificação do algoritmo, depois de três outros níveis, portanto aqui na verdade é o último nível de controlo.


- Mas é o algoritmo do Trabalho em todo o mundo? - perguntou Lia, espantada.











- Aqui é a última verificação do algoritmo, depois de três outros níveis, portanto aqui na verdade é o último nível de controlo.


- Mas é o algoritmo do Trabalho em todo o mundo? - perguntou Lia, espantada.


- Não, apenas da Europa e apenas para os territórios que estão no Tratado Mundial do Clima. Por exemplo, os nossos amigos flamengos aqui de cima não entram, têm o seu próprio sistema. O que nos cria problemas, claro…


- Então o algoritmo é do Tratado Mundial do Clima?


- Não, não. Sentem-se que está na hora de vos contar um pouco da minha história.


- Eu já estava a gravar, desculpa.


- Não tem problema. Eu fui uma das fundadoras do Mundo Novo, há mais de 20 anos. Começou como um passo em frente em relação à ideia original de Transição Justa. A maior parte das pessoas na altura não sabia, mas esta ideia tinha vindo do mundo dos sindicatos e não dos movimentos ambientalistas e mais tarde dos climáticos. Foi nos Estados Unidos que surgiu a ideia de que era preciso uma transformação industrial de grande escala, não só para a indústria fóssil, mas para todas as indústrias poluidoras. Além do interesse ambiental desta transformação, era uma questão essencial para quem trabalhava nessas indústrias, que acabavam por ser dos principais afetados em termos imediatos e de longo-prazo na sua saúde.


- Eu sempre tinha tido a ideia de que tinham sido os movimentos climáticos a lançar o Mundo Novo.


- Foi uma coligação entre cientistas, movimentos pela justiça climática e alguns sindicatos. Infelizmente não tanto os sindicatos mais poluidores. Décadas de propaganda capitalista tinham na verdade virado uma boa parte destes trabalhadores contra a ideia de transição, ao criar uma oposição entre ação climática e emprego. Eles simplesmente roubaram-nos os termos, a própria expressão “transição justa”. Em capitalismo, eles tinham sempre a faca e o queijo na mão. E para eles nunca poderia haver uma transição paga por eles. E como eles nunca iriam responsabilizar-se por essa transformação, a única coisa que eles estavam dispostos a fazer era receber dinheiro para fechar meia-dúzia de fábricas. A ideia de justiça deles é que os governos usassem o dinheiro dos impostos para compensá-los pelos lucros que eles esperavam ganhar. E sabem quem mais? Foi exatamente isso que vários governos fizeram durante mais do que duas décadas.


- Então vocês ficavam numa posição complicada, não?


- Sim. Imaginem, era preciso descarbonizar a economia, a ciência era claríssima sobre isso, era preciso cortar atividade industrial em grande escala, mas decidir o que é que era para cortar e o que é que era para manter. Era preciso transformar alguns dos eixos centrais do capitalismo, como produção de energia, transportes, comércio, não para garantir que os ricos se mantinham ricos, mas para garantir que o planeta não colapsava. Mas eles não queriam saber disso para nada. É difícil de compreender em retrospectiva. Então acusaram-nos, desde o início, de querermos controlar a economia, como se isso fosse uma grande surpresa.




Acusavam-nos de fazer exatamente o que eles faziam. - encostou-se para trás, soltando um suspiro. - Sabem como é que eles chamavam à economia deles? Economia de mercado livre. Ahahahahahaha.


- Como assim? - perguntei-lhe eu, enquanto ela se levantou para trazer uma garrafa de água com alguns copos para a mesinha onde estávamos. Entretanto o António tinha acordado e a Lia pediu-me que lhe mudasse a fralda.


- Mas pronto, eles chamavam àquela economia completamente planificada para manter milhares de milhões de pessoas na dependência total de alguns milhares de multimilionários de “mercado livre”. Era livre, no sentido em que esses multimilionários tinham liberdade total de mandar sobre a vida de toda a população mundial, em todos os sentidos. Não só obrigando quase toda a gente a fazer trabalhos inúteis, destruidores dos nossos cérebros e dos nossos corpos, como do próprio planeta onde vivemos. Mas também tinham um poder quase absoluto sobre a maneira como mandavam nas cabeças de toda a gente, como controlavam a informação de forma tão total. E manipulavam-na de maneira tão monumental que os próprios acreditavam nas coisas idiotas que metiam a sua comunicação a propagar. - Entretanto acabei de mudar a fralda de pano e levantei-me para ir deitar fora o “conteúdo”.


- Podem continuar a conversa, que eu vou deitar isto fora na casa-de-banho.


- Tens uma aí no corredor. - apontou-me Josephine, enquanto eu saía. - Mas perdi-me um

pouco. Às vezes ainda fico furiosa sobre como deixámos as coisas chegar a um ponto tão mau,








como comemos e acreditámos em tanto lixo durante tanto tempo.


- Estávamos a falar sobre o início do Mundo Novo. - disse Lia.


- Sim. Eu fazia parte do Sindicato de Trabalhadoras em Cuidados, da FGTB. Tinha trabalhado muitos anos em hospitais e lares de idosos, mas depois fui eleita vice-presidente do sindicato. Eu era muito militante de causas sociais, a minha família sempre tinha sido muito ativa politicamente, essa tinha sido uma das razões pelas quais tinham tido que fugir do Congo. E as minhas filhas tinham participado nas primeiras greves climáticas também. - nessa altura eu voltei à sala. - E eu ia às marchas, às manifestações também. Conseguia até várias vezes fazer com que o sindicato e a federação apoiassem publicamente os protestos. E eu achava que estava a cumprir o meu papel. Estava a cumprir o papel que era possível naquela altura.


- Mas?… - prosseguiu a Lia.


- Mas claro que não chegava. Porque aquilo que o governo belga ia fazendo, aquilo que a União Europeia ia fazendo era simplesmente lançar medidas soltas, financiar as empresas e mandar a produção altamente poluente para outros territórios, até para outros continentes. Algum tempo depois eu subi para a direção nacional da federação sindical, mas foi na altura em que as guerras e as doenças fizeram com que o custo de vida disparasse. E a austeridade voltou. E nessa altura toda a gente, e eu também um pouco, deixámos de ligar à questão do clima. Havia coisa mais urgentes. Era preciso que trabalhadoras e trabalhadores tivessem comida na mesa, pensava eu para mim mesma. Os movimentos pela justiça climática pressionavam-nos, mas nós tínhamos de pensar em quem trabalhava.

- E o que fez as coisas mudarem?


- o consigo identificar nenhum momento específico, mas houve uma altura a partir da qual tudo se avolumou quase em simultâneo e nós sentimos pela primeira vez que estávamos completamente sozinhos, que os governos não eram só alguém com quem tínhamos de dialogar, mas alguém que estava contra nós. Isso aconteceu com a onda de extrema-direita e a austeridade. Aqui na Europa começou a política energética fascista da “Energia europeia para Europeus”. Eles levantaram as restrições sobre o investimento em carvão e petróleo, criaram uma programa nuclear europeu, anunciaram subsídios às grandes energéticas e sabem o que aconteceu?


- Não. - respondemos em uníssono.


- Aumentaram os preços dos combustíveis e os da energia aumentaram ainda mais. O capitalismo fóssil tinha a faca e o queijo na mão. Eles eram o governo da extrema-direita europeia. Eles tinham inventado uma série de partidozecos para deixarem de ter de negociar, eles governavam diretamente. A extrema-direita era o braço político da indústria fóssil e a indústria fóssil era o braço económico da extrema-direita. Não havia mais subterfúgios. Claro que em cima da austeridade, veio o programa cultural: esmagar os direitos das mulheres, das comunidades LGBTQ, perseguir migrantes e fechar fronteiras, acrescentando ainda o acordo migratório com a Líbia.


- Sim. Foram criadas prisões de trabalho um pouco por toda a Europa, e instaladas grandes redes de vigilância. Foi na altura em que toda a gente começou a mudar as maquilhagens






para evitar o reconhecimento facial, especialmente em manifestações. - riu-se.


- E foi nessa altura que surgiu o Mundo Novo? - perguntou Lia.


- Sim, foi nessa altura. Começava a haver fortes tentativas de infiltração do mundo sindical pela extrema-direita e acho que toda a gente, até os trabalhadores da indústria fóssil, perceberam que sem um programa político de transformação radical, tudo ficaria para os fascistas. E finalmente conseguimos uma aproximação real aos académicos e aos movimentos climáticos que andavam a trabalhar na ideia de transição justa com planificação económica há anos. Mas até deixámos cair essa expressão. Precisávamos um programa contra as elites do capitalismo, não algo para negociarmos com eles. Era difícil porque essa era a tradição do nosso mundo sindical. Mas estava tudo a mudar. Em poucos meses de trabalho conseguimos fortes acordos políticos a nível europeu, e essa tendência expandiu-se para os outros continentes em pouco tempo. No verão houve uma greve geral na Europa de Leste em que este programa já estava nas principais reivindicações. Houve uma onda de calor enorme em que os patrões de várias plataformas logísticas na Sérvia, na Bulgária e na Roménia se recusaram a parar a atividade. Mais de 1500 trabalhadores morreram de calor num só dia. A greve que se seguiu foi muito forte e despertou a maior parte do movimento sindical. Começou noutros países a onda das greves pelo horário reduzido de verão e pela instalação dos sistemas de monitorização climática. Apesar da repressão policial, os governos cederam. Mas nós não aceitámos que estes sistemas de monitorização fossem geridos pelas empresas ou por outsourcing - eram os sindicatos que assumiam a responsabilidade de geri-los. Estávamos a encontrar a nossa força e tínhamos novos aliados. Eu achei que uma revolução estava ao virar da esquina, mas ainda era cedo.



- Nessa altura ainda não havia ecomunistas?


- o. E acho que por isso é que não houve uma revolução logo. Nós estávamos com força e com alguns planos, mas não tínhamos o plano de como passávamos da situação de caos em que estávamos para uma nova organização da sociedade. E a extrema-direita ainda tinha muita força, muitas armas e muita capacidade comunicativa. Precisávamos de mais planos, mais ligações, e nunca parámos de construí-las. Mesmo na altura do Setembro Vermelho, em que a maior parte dos fascistas caíram, apenas uma parte dos nossos planos puderam ser adoptados, o capitalismo ainda era muito forte. Mas não chegava. Para travar o colapso social e climático, era preciso mesmo construir um mundo novo. Tínhamos evoluído muito em muito poucos anos. Já não falávamos só de “descarbonizar” os setores da energia e dos transportes, os nossos planos evoluíram para uma transformação do comércio a nível regional e local, para as migrações de massas, para a redução drástica do horário de trabalho, para o abandono das atividades inúteis e prejudiciais, a desmercantilização de todos os setores, a promoção das atividades de cuidado, de cuidarmos e repararmos tudo o que estava destruído, não só no planeta mas também na sociedade e em nós mesmos. Tinha há muito tempo deixado de ser um programa técnico, era uma nova ideia de sociedade, em choque direto com o capitalismo da morte.


- Mas o algoritmo do Trabalho é técnico.


- Não. O algoritmo do Trabalho é uma ferramenta política. Tem componentes técnicas. Mas sempre foi assim. A técnica, a tecnologia, servem para o interesse de quem a programa e utiliza. Nós desenhámos um algoritmo que organiza o trabalho à escala europeia, articulado



no mesmo plano com os outros que organizam às escalas continentais, e que depois é ajustado nos territórios. Mas o trabalho sempre esteve organizado e planificado. E não estou a falar das quotas de produção da União Soviética. O que é que acham que era o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional, a Organização Mundial do Comércio, as bolsas de valores, a banca de investimento? Eram tudo ferramentas de planificação económica para o interesse das elites capitalistas. O algoritmo do Trabalho é uma ferramenta da Grande Mudança, da revolução ecosocial. Temos a tecnologia suficiente para distribuir o trabalho necessário à satisfação das necessidades reais das várias populações que habitam a Europa. Essas necessidades variam semanalmente e por isso o algoritmo vai sendo ajustado, mas conseguimos prever o número de horas diárias que cada atividade requer e o número de pessoas disponíveis para executá-las em cada território. Não é uma coisa muito complicada, toda a gente tem o dever de conhecê-la.


- Sim, nós estudámos bastante bem o Tratado Mundial do Trabalho. É difícil perceber como é que antes as pessoas aceitavam que era possível e até normal haver desemprego e pobreza em grande escala.


- Fazia parte da planificação capitalista. Era uma arma de dominação, como antes tinham sido os chicotes ou os trabalhos forçados. O desemprego era simplesmente estúpido e o algoritmo resolveu-o. Temos tantas coisas para fazer que não faria qualquer sentido deixar alguém que quisesse trabalhar sem trabalho. E o algoritmo adapta-se: há alturas do ano em que as pessoas querem trabalhar mais horas e reajusta-se. Se mais pessoas querem trabalhar, temos mais projetos úteis que ainda não tinham pessoal ou partilha-se o trabalho necessário, diminuindo o tempo de trabalho para toda a gente. Se as pessoas não estão satisfeitas com o



que fazem, podem pedir para mudar temporária ou definitivamente a sua atividade. Até queremos que rodem para conhecerem várias realidades. Empregos mais exigentes e de que as pessoas gostam menos significam em geral trabalhar menos horas e ter mais tempo livre. Há grande rotação dos trabalhos e também formações frequentes, para que a maior parte das pessoas mude de tarefas a cada três anos. Além de trabalho manual, precisamos de pesquisa o tempo todo. Como vocês sabem, podem mudar de emprego e procurar criar um percurso profissional autónomo, se for considerado útil. Por exemplo, podes propor que o livro que estás a fazer entre no algoritmo. Ou podes fazê-lo no teu tempo livre. - Sorriu e olhou pela janela. Nós também.


- Olhem. Está a nevar.





11.último cargueiro

de antuérpia

11.último cargueiro

de antuérpia

Josephine levou-nos a jantar com Arwani Java, do Tratado Mundial do Clima. Sentados numa cantina com pouca gente frente ao lago Marie-Louise, olhávamos o lago enquanto pequenos flocos de neve caíam.


- Os serviços do clima avisaram que vai nevar durante pelo menos três dias. O que é maravilhoso, porque não neva aqui há quase uma década. Mas também pode deixar tudo parado. É possível que nem trams, nem autocarros, nem bicicletas possam mover-se. - Disse Java. Era um homem indonésio baixo e gordinho, muito sorridente, que não aparentava ser mais velho do que eu.


Partilhámos uma gibeta entre os quatro, de onde tirávamos com as nossas panquecas de sorgo pequenos montinhos de grão, lentilhas e diferentes patés e molhos. Esta maneira de comer, de origem etíope, tornou-se muito comum nos últimos anos no centro da Europa porque uma grande migração da zona terminou espalhada aqui, mas principalmente pela poupança de água e pela proximidade da própria refeição, partilhada entre até 10 pessoas (dependendo do tamanho da gibeta). Apesar de conhecer algumas pessoas que a usavam em Portugal, aqui tornara-se das principais maneiras de comer, variando os cereais utilizados para fazer as panquecas e as comidas que se partilham dentro do prato.

- Contava levar-vos amanhã a algumas das Escolas da Ruptura e à sede do Tratado, mas pode não ser possível por causa da neve. - disse-nos Josephine, desapontada. - Mas assim também aproveitam para descansar e passear na neve. Já tinham visto antes?

- Não. - respondi. Lia acenou negativamente com a cabeça, enquanto bebia água.

- Ouvi dizer que antes nevava quase todos os anos aqui, mas desde que cá estou raramente vi.

Só a Sul, na zona das Ardenas é que houve qualquer coisa nos últimos anos. Josephine, tens um trenó para crianças que lhes possas emprestar para se divertirem um pouco? - Pros Arwani.

- Eu pus a mão na neve há pouco e não sei se vou querer repetir. - disse Lia.

- Vão ver como tudo fica bonito. Especialmente em Boitsfort. Mas é preciso usar o equipamento adequado. - respondeu Josephine.








Durante a refeição falámos novamente acerca do Mundo Novo, da divisão nas componentes académica, laboral, migratória e política - que se transformaram na Universidade Mundial, as Escolas da Ruptura e as Academias da Reparação, as Organizações do Trabalho, a MIGRATUR e os movimentos ecomunistas e ecossocialistas. Ainda eram coordenadas pelas famosas “Asas de Borboleta”, de que Josephine nos assumiu já ter sido membro.


Arwani falou-nos sobre o Tratado Mundial do Clima. O impulso inicial tinha sido dado pelas ilhas do Pacífico, China, Japão, os países da América do Sul, de África e do Sul da Europa, e foi a nova instituição que se ergueu das cinzas das Nações Unidas. A base desta organização tinha sido o Tratado de Não-Proliferação Fóssil, mas com as ondas de calor letais do ano 1.8 transformou-se em algo muito maior. Tinha sido inicialmente pensado para tratar só das emissões e da crise climática, o Tratado acabou por estender-se em várias direcções e dimensões com o aprofundar das crises ambientais e políticas e perante os vários vazios que apareciam. O massacre de Gaza tinha criado uma ruptura permanente na estrutura das Nações Unidas. Os países mais ricos do Ocidente tinham abandonado qualquer pretensão de respeito pela ordem internacional para apoiar o massacre dos palestinianos pelos israelitas e durante algum tempo houve uma co-existência tensa. Essa co-existência terminou com o colapso das negociações climáticas. O mandato do Tratado Mundial do Clima era cortar as emissões de gases em 50% até 2030 em relação aos níveis de 2030. Ao contrário da COP, do Acordo de Paris e das Nações Unidas, o Tratado era obrigatório e vinculativo, os cortes de emissões não eram opcionais ou negociáveis além dos limites da ciência climática. Foram criadas ferramentas financeiras e acordos comerciais entre os vários

membros para executar essa transformação: foi criado um banco de emissões e um banco internacional de investimento. Durante vários anos o Tratado esteve em funcionamento ao mesmo tempo que as Nações Unidas e numa situação política, climática e económica caótica. Vários países saíram e voltaram a entrar, a própria sede do Tratado, em Bogotá, foi palco de ataques durante o golpe de estado derrotado, ainda antes do Ano do Leão. Entretanto foi criado o Sistema Mundial de Comércio Justo, integrando a informação sobre os recursos destinados à produção de bens e serviços essenciais e calculando a distribuição equitativa de recursos pelos povos e territórios do globo. Mais do que um conflito armado aconteceu por causa da adesão ou não ao Tratado - nos Estados Unidos, na Irlanda, na África do Sul. Com o fim das Nações Unidas, algumas das suas instituições foram integradas no Tratado. Mas mesmo depois da poeira parecer assentar nos últimos anos, depois da criação do Banco Mundial do Clima e da sua moeda, o Carbo, as sedes europeias do Tratado foram alvo, como outras instituições, dos violentos ataques da Muralha.


Explicou-nos que considerava que as principais ferramentas do Tratado ainda eram as políticas climáticas criadas em articulação com a Universidade Mundial e com a integração da Comissão Mundial de Calor, a luta contra a máfia e, claro, a desmercantiliização da economia, muito influenciada pelos descrescimentistas. Segundo ele, o facto do trabalho não ser mais remunerado maioritariamente em moeda, mas coexistindo com os serviços universais de habitação, saúde, transportes, energia, alimentação e reparações tinha dado uma enorme estabilidade à vida em sociedade e permitido reduzir drasticamente as horas de trabalho da população. As moedas locais e regionais ainda em circulação eram de importância diminuta e não








influenciavam muito a vida do dia-a-dia. O Carbo era mais importante, mas principalmente usado para o comércio internacional e, apesar dos esforços para mantê-lo neutro, ainda tinha muitos problemas das moedas antigas. O que tardava em ser resolvido era a máfia, que tinha atingido o seu apogeu durante os governos de extrema-direita. Nessa altura, o crime organizado tinha sido muito importante na desestabilização de algumas regiões, derrubando governos e roubando recursos e sendo a principal responsável pelo tráfico de pessoas em fuga, até ser instituída a Rota do Futuro. Mas mesmo depois, até hoje, continua a ser um problema e uma fonte permanente de chantagem e destruição após a Grande Mudança.


Após o jantar, Josephine levou-nos de volta à nossa “casa no campo”, onde passámos uma noite quente. Na manhã seguinte acordámos de frente para uma floresta branca com flocos de neve caindo e engrossando o manto brilhante, que nesta altura já cobria tudo. Josephine mandou-me uma mensagem, confirmando que as estradas estavam inacessíveis e que nos avisaria antes de nos visitar. Passámos um dia muito tranquilo naquela bonita casa, brincando com o António, lendo e fazendo sexo - há algum tempo que não tínhamos a privacidade para isso e a casa vazia e silenciosa era ocasião perfeita para o nosso afeto, pelo que fomos experimentando as várias divisões, excepto as com grandes janelas viradas para a rua. Esta foi uma das coisas que mais me espantou das casas na Bélgica, as grandes janelas tantas vezes sem cortina viradas para a rua, das quais nos mantivemos afastados enquanto namorávamos.


À tarde saímos, depois de nos equiparmos com tudo aquilo que a Josephine nos tinha levado a buscar no grande bazar - botas, calças com outras calças por dentro, camisolas


e casacos grossos, luvas e gorros. Caminhámos pelas ruas de Boitsfort até a uma zona central onde um grande tram estava parado e coberto de neve. Havia ali várias pequenas bibliotecas, uma loja de vídeos, um cinema e um teatro. Mas por causa da neve, estava tudo fechado. Grande sinais avisavam: “Circulation paralysée en raison d'un phénomène météorologique”, algo como circulação parada por causa de fenómeno climático extremo. Os sinais deviam ser usados regularmente para outros eventos climáticos, pois estavam um pouco gastos nas bordas. Infelizmente também aqui o excesso de calor nos verões e as cheias já tinham levado a grandes paralisações e isolamentos. Pelas ruas, enfrentando a neve que às vezes caía em grande volume, crianças e adultos brincavam, atirando bolas de neve e construindo bonecos e montes. Algumas corriam de um lado para o outro, puxando trenós e chocando contras as bicicletas e as árvores que preenchiam o espaço. Com pouco vento, o principal barulho que se ouvia naquela tarde era o som da neve compactando debaixo dos nossos pés e as gargalhadas de crianças e adultos. O António tentava comer pedaços de neve quando o aproximávamos dela, mas estava com tanta roupa que quase não se conseguia mexer, fazendo uma pequena birra. De volta a casa, ouvimos rádio enquanto preparávamos uma refeição de castanhas, batatas e um peixe que a Josephine nos tinha deixado, uma carpa vinda das aquaculturas que existem em várias zonas da cidade. Acionei o meu tradutor para perceber melhor a informação do rádio. Felizmente não era em “bruxelês”, a língua popular da cidade de Bruxelas, uma mistura de flamengo, alemão e francês, pelo que o tradutor desta vez funcionou.


As principais notícias do dia eram sobre o nevão, o maior desde 2030. Já tinham nevado 40 cm, impedindo a circulação da maior parte dos transportes, como já


tínhamos percebido. Mas estava previsto continuar a nevar. O nevão era consequência direta de uma massa polar que descia da Antártida. Já tinha havido dois verões sem gelo no Pólo Norte, e este anos, apesar de não ter ficado sem gelo, o vórtex polar continuava a ter expansões anormais, empurrando correntes árticas por todo o Hemisfério Norte. A neve e as baixas temperaturas tinham descido até ao sul da França, levando a quedas de temperatura de mais de 30ºC numa semana. Seguiram-se os avisos da Comissão Bruxelense de Calor (que descobri que também cuidava do frio): não deixar janelas de casa aberta, não estar no exterior durante mais de duas horas e sem equipamento de frio, evitar deslocações longas que não sejam adiáveis, não andar nas superfícies dos lagos que estavam a congelar, confirmar o bom funcionamento das bombas de calor nas casas e edifícios. As comunidades de cuidado tinham sido acionadas e tinham sido reforçadas as reservas deslocalizadas de comida. No rádio seguiu-se um programa de teatrocast, uma comédia sobre charlatões que inventavam soluções para o calor no verão antes da Grande Mudança. Pela janela vimos a floresta dos sonhos, branca, e como toda aquela neve iluminava a noite. Tanto que, mesmo sem vermos a lua, conseguíamos ver tudo lá fora.


Depois de mais um dia em que o mundo parecia estar congelado em pausa enquanto o observávamos pela janela, na manhã do terceiro dia, pouco após nos levantarmos, alguém bateu à porta. A neve caía pesada











e quanto abri entraram grande pedaços entraram, acompanhando uma figura que só tinha os olhos de fora, tapado até cima de proteções e neve.

- Ciao! - era o Gianni.

- Gianni, bem-vindo. Lia, é o Gianrocco! - Gritei para a Lia que estava no quarto.

Entrou e começou a tirar camadas de roupa.

- Spero che nei prossimi giorni inizi a riscaldarsi un po'. Ci sono meno 5 gradi.

- Tradutori. - Sorri-lhe.

- Scusa. - ligou o tradutor.

- Espero que a temperatura suba em breve. Está muito frio. E está a nevar muito, não sei que altura já tem a neve, mas em vários lugares do caminho chega-me à cintura.

- Sim, e isto não causa problemas com o calor e a energia? Fomos para a cozinha e Gianni tirou um termo de café, que soltou uma nuvem de calor e cheiro a café.

- Expresso! Tento nunca sair de casa sem. - Lia entrou com António e Gianni beijou-os nas faces. - Querem?

- Sim. respondeu Lia, sorrindo.

- A energia funciona bem mesmo com este frio. Até mais frio. - serviu-nos café em pequenas chávenas enquanto eu aquecia panquecas do jantar com Josephine e Arwani - Transportes é que não. As bombas de calor aguentam muito bem, os painéis e as eólicas também. As pequenas barragens é que nem por isso, mas a água ainda não congelou, então não deve haver grandes problemas. O principal é manter o calor dentro, ter as casas bem isoladas. Isso e bombas de calor são a maneira de reduzir perigo e mortes tanto em ondas de calor como em ondas de frio. Os sistemas de gás eram muito mais perigosos e instáveis. Com a baixa de temperatura e os grandes circuitos, com a sabotagem, com as lutas comerciais por causa dos preços, além de destruírem a atmosfera, eram sistemas completamente idióticos.

Mas davam muito dinheiro a muito pouca gente, e por isso é que estavam espalhados por todo o lado. Já não. Felizmente. Mas só à porrada, com muita violência, lá chegámos.


Gianni levantou-se e ficou alguns momentos a olhar pela janela. A neve caía com intensidade e já não se via nada que não estivesse coberto pelo manto branco, só se distinguiam formas pelas sombras. Bebeu o seu café e virou-se para nós.

- Tenho uma proposta a fazer-vos.


Aproximou-se da ilha de cozinha, onde um grande pão negro descongelava, rodeado por várias canecas com água e uma chaleira. Eu e Lia olhávamos para ele, que parecia hesitar. Fez uma cara séria, o mais sério que já tinha visto desde que o tinha conhecido.

- Eu quero que tu me escrevas um relato oficial de como as coisas estão no continente americano.

- Mas o que é que eu sei da situação lá?

- Quero vás lá. Que viajes pelo continente durante dois meses, que fales com responsáveis e faças entrevistas, que observes o que se passa e que me envies esta informação. É uma missão oficial de preparação para a Assembleia Constituinte Mundial. - Lia deu-me a mão e olhou para mim, apreensiva.

- E a Lia?

- O Ettore pode acompanhar a Lia e o António de volta a Lisboa.


Lá fora, a neve tinha parado de cair. Sentia-me surpreendido mas também apreensivo, até porque a Lia estava abalada.

- E como faço para viver e viajar lá? Eu não saí muitas vezes Portugal. Isto é muito repentino,








Gianni.

- Nós resolvemos as questões de logística, viagens e custos. Vocês não têm de me responder já. - E não é possível ser mais tarde? Daqui a uns meses? - perguntei-lhe.

- Nós precisamos desta informação o mais brevemente possível. É possível apanhares um dos últimos cargueiros que sai de Antuérpia daqui a dez dias. Se não puderes, teremos de enviar outra pessoa. Pensei que te poderia interessar por causa do teu livro.

- E como ficam as coisas com as responsabilidades em Lisboa? - disse Lia, num tom ríspido.

- Seria simples falar com a Assembleia de Lisboa e também com a vossa Organização Central do Trabalho. Bem… poisou a chávena e começou a fechar o seu termos. - De certeza que vocês têm muito que falar e eu quero aproveitar o facto de agora não estar a nevar para voltar para o centro.

- Obrigado. - Disse eu, acompanhando-o à porta. Lia ficou sentada a olhar lá para fora, enquanto António brincava com os seus cabelos.

- Tens de por sal e tirar um pouco de neve daqui da entrada, senão não conseguem sair daqui. Ci vediamo presto.


Depois de me despedir de Gianni, voltei para a cozinha, onde Lia ainda estava na mesma posição. Quando me viu sorriu e abraçou-me. Ficámos ali vários minutos. Eu pensei dizer alguma coisa para quebrar o silêncio, mas não sabia o quê. Tentei por-me no seu lugar. Lembrei-me de como ia reagindo quanto mais nos envolvíamos no trabalho do livro, quanto mais nos afastávamos da nossa vida normal. Pensei como poderia sentir-se abandonada se eu aceitasse ir, como não quereria ficar sozinha com o António enquanto eu fazia algo que estava tão longe do normal para tanta gente. Também não queria abandonar o António. Senti-me defensivo, a pensar que ela é que



me tinha empurrado para aquilo, que não tinha sido só ideia da minha cabeça, como ela dizia que eu tinha de conhecer a história dos meus. A história dos meus pais também era aquilo: despedidas e partidas, rupturas e lágrimas. Mas eu não ia sem saber quando voltava. Uns minutos depois, a Lia é que rompeu o silêncio.

- Não precisamos falar já. Vamos fazer bolas de neve no jardim. - Sorriu e lembrei-me também porque a amava tanto. Era profundamente sensata e corajosa. E surpreendente, mesmo em situações inesperadas.


Passámos o dia em casa, dando duas ou três saídas curtas à rua, escavando uma saída com a pá, enquanto menos crianças continuavam a desfrutar da abundante neve, que tinha fechado escolas e bibliotecas. Durante a tarde apanhei uma rádio que tocava várias obras de um dos maiores compositores atuais, o Ramin Djawadi, que ouvi durante várias horas. Ao jantar Lia levantou o assunto.

- Alex, eu acho que tens de ir. Vai-me custar muito, mas seria absurdo recusar uma oportunidade destas. - Senti um alívio, mas também não queria dar a entendê-lo. - Eu não te quero prender, e acho que consigo cuidar do António sozinha durante o tempo em que não estiveres.

- Mas Lia, ninguém me tinha falado disto até agora. Isto começou com Madrid, fomos subindo e agora ele está a propor-me a maior viagem da minha vida, assim de surpresa.

- Vamos, Alex, não precisas fazer isto. Eu estou a ser sincera, sê-o também tu.

- Achas que os podíamos convencer a vocês virem também?

- Seria muito lindo, mas duvido. Senão ele já o teria proposto.

- Vou-lhe dizer para vocês virem também.

- O que vais ter de me prometer é que falamos todos os dias. Vais passar por sítios muito


perigosos.

- Prometo tentar sempre.


Essa noite fizemos amor, menos sôfrego e muito mais apaixonado. Lia era muito melhor do que eu, muito mais completa, permanente. Quando adormeceu fiquei ainda acordado muito tempo. Pensei na minha mãe e no meu pai, de como teriam sido as suas discussões antes da partida dela. E pensei em como a vida de pessoas como Fatima, Gianni ou Josephine deviam ter tido inúmeros episódios daqueles, e como provavelmente nem todos teriam tido a sorte de ter alguém companheiro como eu tinha a Lia. Mas eu não estava a ir para o desconhecido como a minha mãe tinha ido, sabia como, para onde, não ia para uma guerrilha qualquer, sem rede de segurança, arriscar tudo. E pela primeira vez acho que admirei verdadeiramente a coragem da minha mãe.


No início da tarde seguinte, Josephine visitou-nos na companhia de Arwani. A neve já tinha parado mas os transportes ainda não estavam restabelecidos. Ambos vinham com uns skis curtos nos pés, que mais pareciam umas sandálias de pôr por cima das botas, e com os seus bastões. Quando entraram na casa encheram a entrada de neve uma vez mais. Josephine vinha-nos visitar para trazer comida e também porque tinha sabido da proposta de Gianni.

- Mas nós ainda não lhe respondemos! - insurgi-me.

- O Alex vai. - respondeu a Lia, colocando a sua mão sobre o meu ombro.

- Mas quero saber se a Lia e o António não podem vir também.

- Bem, eu não estou a organizar isso, mas acho extremamente difícil. A viagem de barco que






vais fazer não é nada confortável. É o último cargueiro que sai do Porto de Antuérpia antes da navegação do Atlântico Norte fechar para o inverno. As condições marítimas já são complicadas para a navegação. E há os piratas, por isso mesmo vocês vão em comboio. - senti um ligeiro arrepio e, pela primeira vez, verdadeira hesitação - Além disso irás num espaço apertado, onde mais uma pessoa e um bebé não estarão bem. Também não sei qual será a tua missão lá, isso é entre ti e o Gianni, mas se em vez de uma pessoa forem três, tudo fica mais complicado.

- Eu quero falar sobre isso com o Gianni.

- Então fala com ele, não comigo. Eu posso ajudar com a questão do teu trabalho em Lisboa. E o Arwani pode ajudar-te com as assembleias da cidade e os teus deveres cívicos. E com o teu passaporte.

- O quê?

- O passaporte. É um documento que serve para poderes entrar e sair de territórios que não estão no Tratado Mundial do Clima. O primeiro desses países será a Flandres, de onde parte o navio. O Gianni disse-me que era possível que fosses a outros países fora do Tratado também. - disse o pequeno Arwani, que tinha a faces muito avermelhadas.

- Quais?

- Não sei. Mas precisas preparar-te para ires aos territórios onde as regras não são iguais aos países onde tens vivido. A Flandres será uma boa introdução. Olha, não me queres oferecer um chá, que eu estou congelada? - Josephine esfregava as mãos para aquecê-las. - A casa tem estado quentinha?

- Tem estado óptima - respondeu Lia, que segurou as mãos de Josephine nas suas.

- E têm brincado na neve?














Josephine e Arwani ficaram o resto da tarde connosco. Lia e eu pedimos mais informação sobre a Flandres e os outros países que não estão no Tratado. Josephine explicou-nos que há dois tipos de territórios que não estão no Tratado: os mais conservadores politicamente, que recusam receber as caravanas do futuro, alguns dos auto-suficientes em termos alimentares que conseguem dispensar o comércio internacional e aqueles que são dominados pela Máfia. São poucos territórios, não mais de 20. Os Estados Unidos estiveram para sair do Tratado quando foi necessário exportar excedentes alimentares durante a última fome regional na Europa e em África. O governo só foi salvo dos motins pelo partido Ecomunista.


Arwani explicou-nos a ascensão da máfia. Com a redução do comércio internacional, novas rotas de comércio negro tinham sido abertas por uma aliança entre as principais máfias do mundo: a máfia israelita, a albanesa, a sérvia, a Camorra, a Ndrangheta, a Cosa Nostra, a irmandade ariana, a D-Company, a Tríade, a Yakuza, os cartéis mexicanos, os Airlords, os Kulunas, os Americans, os Hard Livings e a Bratva russa. Acordos informais feitos com vários governos de extrema-direita puseram a máfia a tomar conta de operações de segurança que antes pertenciam a estados, principalmente protecção industrial e comercial. Mesmo em territórios em que não havia acordos com os governos, a máfia tomou conta de operações da indústria fóssil, como a produção e transporte de petróleo e gás. Tinha sido a primeira grande transportadora de refugiados, deixando que milhões de pessoas morressem no percursos, que fossem vendidas como escravas e abusadas fisicamente durante longas viagens. Era também a máfia que geria os campos de concentração de migrantes às portas da Europa e na América Central. Mas se já era inviável antes do Setembro



Vermelho, após as ondas de calor mortais, a máfia começou a ser varrida na enxurrada, mantendo-se como um empecilho que governa territórios como o Mezzogiorno, Malta ou Taiwan. Mas continua presente um pouco por todo o lado, lançando os seus mercados negros e ainda enganando milhões de pessoas que têm de fugir dos seus países ou de conflitos.


Josephine falou-nos da Flandres, um território independente há mais de uma década, que já tinha tido governos de extrema-direita mas que neste momento era mais moderado, embora ainda mantivesse alguns resquícios do capitalismo que desapareciam sob o Tratado: o trabalho não era organizado centralmente, havia a moeda, o florim flamengo, bastantes veículos elétricos individuais, muita indústria química e de plásticos (apesar da indústria de combustíveis fósseis estar reduzida a um mínimo) e uma agricultura privada. E, claro, havia polícia. Não tinha havido uma revolução na Flandres.

- Enquanto a nossa polícia foi sido substituída, primeiro pelas guerrilhas revolucionárias depois pelas patrulhas cidadãs e o serviço civil, lá tudo se manteve igual ao que havia antes. E é isso mesmo que verás quando entrares no território.

- Como foi aqui o processo transição para acabar com a polícia? Perguntou Lia.

- Foi difícil. Por um lado, a seguir às revoluções o ódio às polícias transbordou. As esquadras e os quartéis eram frequentemente atacadas e os novos governos tiveram de acelerar todos os planos para não começarem conflitos mais sérios. Havia imensas tensões dentro do movimento. Propostas para criar uma polícia política, perguntas sobre como é que o movimento e a sociedade se iam defender a si mesmas sem um poder repressivo. E também a pergunta óbvia: o que fazer com milhares de polícias, muitos dos quais eram abertamente



fascistas? O que fazer com os polícias especiais, com os serviços secretos, com as forças armadas da Muralha?

- E o que fizeram?

- A maioria foi integrada em outras profissões. Os antigos polícias de alguma confiança entraram para o Exército Verde, mas a maior parte foi para profissões como guardas florestais, guardas marinhos, condutores, proteção civil, trabalho social. Não faltavam coisas para fazer. Aliás, o que havia era falta de gente. Os responsáveis por atrocidades e organização de repressão foram condenados, claro. Talvez venhas a conhecer alguns, Alex.

- Onde?

- No cargueiro. Nos navios há muitos antigos elementos da Muralha que receberam como missão de reconciliação fazer tarefas de navegação e prospeção de territórios degradados.

- E quem desempenha agora as tarefas de segurança da polícia? Em Lisboa ainda vejo de vez em quando membros do Exército Verde em patrulhas. - Perguntei-lhe.

- Nós hoje precisamos de uma força para travar violência, para curar sociedades que foram viciadas em violência, banhadas no culto da força e da brutalidade durante milénios. Para curar as feridas da Grande Mudança, que também as há. A força a que nós chamávamos polícia já não existe para defender a propriedade, ordenar trânsito, despejar ou controlar pequenos roubos. A sociedade criou ela própria maneiras de censura social para lidar com isso. Há uns anos, logo após a revolução, tínhamos patrulhas noturnas feitas por mulheres, algumas das quais eram voluntárias e outras mais profissionalizadas. Em zonas onde havia mais problemas, em situações graves enviávamos revolucionários armados, mas isso era uma raro e hoje os crimes violentos são tratados pelos corpo de investigação. Entretanto era preciso capacidade de resolver pequenas disputas sem criar armas de violência e pequenos poderes numa nova polícia ou o que quer que fosse o seu nome. Ainda não estamos lá. O que

temos atualmente são patrulhas, o serviço civil e social e corpos de investigação que têm como única miso a segurança de pessoas, não de bens. Os bens são demasiado perenes para merecerem um corpo de proteção. O que temos é de proteger a sociedade. Lia, sabes de onde vem a palavra polícia?

- Poli, política, múltiplo? Polis?

- Sim, polis, cidade. Guardiães da cidade. Para termos menos guardiães também temos de ter cidades mais pequenas, mais geríveis. E precisamos menos de proteger a polis do que proteger “civis", as pessoas, cidadãs. Temos um serviço civil que desempenha funções de proteção e cuidado, mas que é uma função como qualquer outra dentro do algoritmo do trabalho, com forte rotação. Mas pessoas geralmente não gostam, excepto dos corpos de investigação, mas mesmo esses são rodados frequentemente - estás um ano no serviço civil e depois vais fazer outra coisa. O facto de haver menos burocracia também melhora o trabalho. Sabes que os polícias passavam uma boa parte da sua vida a passar multas…


A conversa continuou até Josephine e Arwani partirem, pouco antes do sol se pôr. Nos dias seguintes descansámos em casa. Depois de uma forte chuvada a neve desapareceu toda e pudemos passear pela cidade. Pouco tempo depois a temperatura estava nos 20ºC. Encontrámos Gianni e Ettore, que nos confirmaram que a Lia e o António não poderiam ir. Gianni entregou-me um mapa previsto para a minha viagem e felicitou-me pela decisão. Visitámos mais tarde a sede europeia do Tratado Mundial do Clima, no antigo edifício da Comissão Europeia, onde recebi o meu passaporte e Arwani ainda arranjou outros dois para a Lia e o António. Visitámos ainda outras instituições em Bruxelas, mas a minha cabeça já estava na viagem. Revi as minhas notas da entrevista com Olivia e pedi livros à Josephine, que me passou alguns acerca dos Estados Unidos, do México, de Cuba e do Brasil, por onde eu poderia

passar. Tratámos de arranjar mais roupas variadas para mim. Gianni arranjou-me aparelhos tradutores de pescoço e orelha, deu-me um novo gravador e um pequeno computador para nos comunicarmos. Pedi-lhe mais informação acerca da minha mãe.


- Não te posso ajudar. Não tenho muito mais informação porque a tua mãe, como muitos membros da Descarbonária, teve os seus ficheiros de informação apagados para proteção da Muralha e da máfia.


Numa manhã chuvosa partimos para Norte e fomos até à fronteira com a Flandres, onde tivemos de atravessar um posto onde várias pessoas fardadas confirmaram todos os nossos documentos, fizeram várias chamadas e revistaram as nossas malas antes de nos deixarem entrar. A viagem de carro foi muito curta. Ao contrário de todo os outros sítios onde eu tinha estado até então, havia várias estradas na Flandres a funcionar, com carros elétricos com um ar muito luxuoso a passar. Não vi carris em cima de nenhumas das autoestradas. Em menos de uma hora chegámos a Antuérpia e fomos diretamente ao cais, junto ao rio Scheldt, que liga ao Mar do Norte. Despedi-me de toda a gente na doca. Abracei Lia e António com força, e deixei cair umas lágrimas. - Vai ser incrível. Amo-te muito. - disse-me ao ouvido. Subi as escadas até estar a bordo do “Hopp Winnen”. Fui cumprimentado pelo comandante, chamado Hans Groen. Disse-me ser um grande admirador do comandante Fratin e que me explicaria o funcionamento da vida a bordo ao almoço.


Enquanto a escada era recolhida acenei para quem deixava para trás: Gianni, Josephine e as minhas queridas Lia e António. O Hopp Winnen começou a afastar-se de




terra. Quando já não conseguia distinguir as pessoas, peguei nas minhas coisas para me instalar. Do meio dos livros que Josephine me tinha dado caiu um dossier. Era um relatório de uma viagem de refugiados desde as Honduras até à Califórnia, assinado por várias pessoas. Sublinhado a vermelho estava o nome Maria García.


mau tempo no atlântico

mau tempo no atlântico

O comandante Groen era um simpático flamengo, alto, magro e com o cabelo muito vermelho. Enquanto nos afastávamos da doca, levou-me na direção de um homem com ar muito mais velho do que nós.

- Enke, podes levar o nosso convidado até ao camarote do 2º piloto?

- Qual é? - Respondeu-lhe, com um ar bastante frustrado. Era mais alto que o comandante, tinha cabelo e barba tão loiras que pareciam brancas. Os seus olhos eram cinzentos claros e desconfiados.

- Tu sabes qual é.

- No fundo da primeira coberta?

- Sim. Depois encontre-me na ponte, Sr. Águas.

Depois de pegar a minha mala, o homem ofereceu-se para levar a minha mochila, mas achei que não valia a pena. Estendi-lhe a mão para o cumprimentar e ele olhou-me, surpreendido. Hesitando, lá me apertou a mão.

- Sou Heitink, Enke Heitink.

- Alex Aguas. - começou a andar, esperando que o seguisse.

- Você é manda-chuva dos ecomunas, não é?

Liguei o meu tradutor de pescoço. Ele sorriu.

- É mesmo. Esses Babel são muito difíceis de arranjar.

- Eu estou a escrever um livro. Não sou ecomunista.

- Ahhhhh, duvido. Se não fosse ecomuna não ia nos camarotes finos. Chegámos. - Abriu-me a porta e despediu-se secamente.

O pequeno quarto amarelo tinha uma cama encostada na parede, em que o colchão se levantava como tampa para uma espécie de baú, onde guardei as minhas roupas, livros e o computador. Tinha ainda uma pequena mesa com candeeiro, prateleiras

vazias e uma janela redonda que ficaria uns 20 metros acima da linha de água. Conseguia ver a outra margem do rio Scheldt, oposta à rica cidade de Antuérpia, capital da Flandres. Depois de guardar as minhas coisas saí do quarto e subi para procurar a ponte. O tradutor não servia de grande ajuda. Os sinais diziam: Dek, Dekking 2, Dekking 3, Kelder 1-10, Kelder 11-20, Nooduitgang e Brug. Arrisquei e subi umas escadas que davam para o convés. Cá em cima havia uma espécie de edifício de 4 andares na parte de trás do navio, com contentores coloridos ocupando toda a superfície até à frente, erguendo-se apenas as enormes “velas” eólicas solares. A ponte seria no edifício. Continuei a subir escadas até encontrar uma porta onde estavam várias pessoas e entrei.

- Bem-vindo, bem-vindo. - disse-me o comandante. - Este é o Sr. Águas, que vai acompanhar-nos até Nova Iorque. - Algumas pessoas sorriram enquanto outras olhavam para o painel de instrumentos e pela janela. Já não se via Antuérpia.

- Esta é a Imediato do navio, Srª Buez. - Uma mulher muito alta, com largas maçãs do rosto cumprimentou-me. - Ela é que manda em tudo.

- Sr. Aguas, ouvi dizer que está a escrever um livro? Sobre o que é?

- É sobre a Grande Mudança.

- Um tema pequeno, portanto. E vai falar sobre o quê?

- Sobre como o mundo mudou, sobre quem esteve envolvido, as revoluções, as guerras…

- Aqui no navio tem pessoas que estiveram dos dois lados da barricada, se é que podemos falar de dois.

- Sim?

- Claro. Eu e o primeiro piloto, estivemos do lado da revolução, eu na Transpiness e ele no Exército Verde. Entre os tripulantes há principalmente neoluditas e muralhistas, embora

também cá esteja quem simplesmente gosta de mar. O comandante era neolud, mas nós já o perdoámos. - Riu-se.

- Mas só no início! - riu-se também, com os caracóis vermelhos abanando.

- Bem, temos de continuar a manobra, Sr. Águas. - disse a Imediato - Pode ficar a assistir, se quiser. Senão podemos encontrar-nos mais tarde. A tripulação é pequena mas convém que os conheça. É importante não ultrapassar as barreiras sinalizadas, porque é perigoso, em particular no mar. - sentei-me numa cadeira, observando as pessoas entrando e saindo da ponte, enquanto serpenteávamos o rio. Passado algum tempo o rio começou a ficar mais largo, as ondas mais fortes e senti uma ligeira náusea. Estávamos a chegar à barra, a sair para o mar. O meu enjoo aumentou um pouco e levantei-me para sair da ponte.

- Está bem? Se precisar de comprimidos, pode pedir ao Dr. Spinoza. - disse-me o comandante.

- Vou só apanhar ar. - Abri a porta e o ar frio com espuma marítima atingiu-me a cara, o que me melhorou imediatamente a disposição. Olhei para o mar em frente e do lado direito vi a costa, coberta pelas paredes de pedra e cimento que se erguiam à frente das povoações da Zelândia. As cheias durante as últimas décadas tinham sido devastadoras, mas era com betão que a Holanda tentava combater a subida do mar. Um pouco à frente, uns sete navios, principalmente cargueiros, estavam em fila. O Hopp Winnen mudou de rota na sua direção. Abriu-se a porta da ponte e saiu a Imediato.

- Melhor?

- Muito. O que são estes navios?

- Vamos com eles em comboio. Ainda vamos apanhar outros em Felixstowe, Portsmouth e

Edimburgo. E talvez algum irlandês.

- Porquê?

- Segurança, principalmente. Estamos no último comboio do ano, por causa dos furacões e da agitação marítima. Daqui a algumas semanas fica mesmo perigoso, com as frentes frias polares a criarem tempestades, com as armadas de icebergues e as grandes ondas causadas pelo colapso do gelo da Gronelândia. Temos a navegabilidade do Atlântico reduzida a sete ou oito meses por ano. E de vez em quando, aparecem-nos os piratas do Ártico.

- Piratas do Ártico? Vêm de onde?

- A maior parte são embarcações que vêm de antigos territórios russos, mas com os verões sem gelo já houve ataques de piratas asiáticos, que atravessam o pólo Norte. Geralmente são lanchas rápidas, mas já vi até fragatas. Há rumores de cidades, indústrias e até refinarias piratas a funcionarem no mar de Kara.

- Onde é isso? - Comecei novamente a ficar preocupado, nunca tinha ouvido falar em nada daquilo.

- Bem lá no Norte. Mas não fique nervoso. Estes ataques eram bastante frequentes há uns anos atrás mas baixaram muito. Além disso, vamos acompanhados por um barco de guerra, armado para dissuadir piratas.


Começou a chover e a Imediato convidou-me a voltar para a ponte, mas preferi ir para baixo. O embalo do barco aumentava. Enquanto descia as escadas vi as seis “velas” do Hopp Winnen rodarem sonoramente. Eram uma combinação de painéis solares com turbinas eólicas que produziam a energia necessária para fazer funcionar os motores elétricos do navio. Chegando ao fundo das agitadas escadas encostei-me à borda e vomitei o pequeno-almoço. Ligeiramente aliviado, meti pelo corredor na direção do






meu camarote, enquanto o chão balançava de um lado para o outro. Enfiei a chave na porta do camarote e reparei que estava aberta. Em cima da cama estava uma nota e um saquinho de papel com comprimidos. A nota dizia em inglês “Para o seu alívio, tome dois com bastante água. Dr. S.”. Tirei os aparelhos, tomei os comprimidos e deitei-me, ansioso para que a agitação ou o meu enjoo passassem.


Quando acordei estava escuro. Senti um ligeiro balouçar do navio, mas nada que se comparasse com o que se tinha passado na saída da barra. Estava muito melhor, sem dores de cabeça ou náuseas. Levantei-me e apercebi-me da fome que tinha. Saí do camarote. Não sabia onde ir para comer. Não havia nos sinais nada que indicasse comida, ou pelo menos não me apercebi naquela língua. Caminhei novamente na direção da ponte, à procura de alguém que me pudesse ajudar. Mas foi o ruído que me levou até a uma porta exatamente igual às dezenas de outras pelas quais tinha passado, mas que dizia “Scheepskantine”. Quando entrei, várias cabeças viraram na minha direção. Era uma sala grande, com duas mesas brancas corridas onde estavam sentadas três pessoas e vários sofás fazendo de anfiteatro para uma parede branca. De entre as pessoas sentadas nos sofás, o comandante levantou-se e veio ter comigo.


- Está melhor, sr. Águas?

- Estou. E pode chamar-me Alex.

- Guardámos-lhe um prato com o jantar. Vamos começar a ver um filme. Quer juntar-se a nós?

- Sim, claro. Mas tenho de comer.

- Johann, traz o prato do convidado!

Um rapaz com os seus 20 anos trouxe o prato, talheres e um copo com água e gelo, que pousou numa mesa.


- Baixa a luz, põe o filme. - gritou o comandante. Na mesma mesa que eu estava sentado o mal encarado Enke.

- O filme de hoje é a grande aventura “As rosas da fome”.

- É propaganda comuna! - gritou ao meu lado Enke. A sala riu-se. Uma mulher morena virou-se do sofá para trás e respondeu.

- Para ti todo o mundo é propaganda ecomuna.- toda a gente se riu, e Enke também.

Enquanto eu comia, começou a projeção. Era um filme de ação durante acontecimentos históricos famosos. Contava a história de Oan Reznan, adolescente ficcional de Bucareste. Durante o ano 1.8 e com o avançar do verão, ela sofria em casa com o calor e os cortes de energia cada vez mais prolongados. Vivia sozinha com a mãe e tiveram de gastar todo o dinheiro para comprar um ar condicionado. Depois de um alívio temporário, o drama agravava-se, com violinos nada subtis a puxarem as lágrimas enquanto a mãe de Oan morria com falta de ar a meio da noite, deixando-a sozinha no mundo. Oan acabaria a correr desesperada pela noite da cidade à procura de outros membros da família, enquanto sem-abrigo mortos na rua eram comidos por ratazanas. Depois de colapsar de exaustão, Oan tinha sido raptada por um clã de mafiosos e traficada para um bordel clandestino em Augsburgo, na Alemanha. Aí viveria uma horrível exploração sexual cujos detalhes o filme não poupava, que só acabaria com uma revolta conjunta com outras pessoas presas no bordel. Mataram os mafiosos que geriam a casa e ocuparam o antigo bordel, raptando e chantageando vários dos clientes com o objetivo de juntar dinheiro suficiente para organizarem o regresso aos seus diversos países. Nesse período também se treinavam para defender-se dos mafiosos, adquirindo armas e tornando-se temíveis com elas. Infelizmente para a sororidade, quando estavam próximas de ter o dinheiro suficiente, ocorreria o

Roses of hunger

young woman crossed her hands into fists on her chest.

colapso financeiro após o Setembro Vermelho. Na convulsão social que atravessava a Europa, acabariam por ficar em Augsburgo e ligar-se aos movimentos revolucionários, assumindo o nome de Rosendorn (algo como “espinho da rosa”). No ano seguinte chegava a grande fome de ’27. A sororidade organizava assaltos a supermercados de luxo e distribuía os produtos nas comunidades mais pobres, tornando-se um contrapoder dentro da cidade e uma das entidades mais odiadas pela extrema-direita em recomposição. Numa cena muito empolgante, as Rosendorn atacariam uma parada fascista da nova Muralha, um confronto que deixaria dezenas de mortos. A sala de cinema aplaudia. Após cenas de amor entre Oan e outras mulheres chegaria o final do filme, com as Rosendorn a liderar uma coluna de tratores que avançavam sobre Berlim, distribuindo comida pelo caminho.

As pessoas levantaram-se e começaram a sair. Enke aproximou-se de mim e puxou conversa. Ofereceu-me um cigarro, que aceitei. Saímos para a coberta.


- Vocês gostavam que as coisas tivessem sido como no filme, mas não foi assim.

- Esteve lá, Enke?

- Lembro-me bem desta altura, já era bem adulto. Velho, mesmo. Lembro-me dos governos darem ordem às pessoas para apagarem luzes e manterem apenas aparelhos de ventilação e refrigeração. Lembro-me das corridas aos ares condicionados e dos especuladores venderem aquilo a dez vezes o preço normal. De centenas de pessoas morrerem de calor em festivais de verão e presas em filas de trânsito. Lembro dos partos prematuros e abortos espontâneos nas ondas de calor. E das crianças que nasceram na altura e morreram pouco tempo depois, sem conseguir respirar.

- Isso foi na Alemanha?


- Não, eu sou holandês. E lembro-me que não foram essas putas e travecas que travaram os malucos da Muralha.

- Quem foi então?

- Descarbonários e o Exército Verde. Gente perigosa.

- Se calhar na Alemanha não foi assim. Não se passava lá o filme? E não é ficção?

- É propaganda vossa.

- Você não era da Muralha, então?

- Não. Mas eu vi a Muralha crescer na Holanda. Com a fome, dois grupos explodiram de tamanho: Muralha e Ecomunistas. E não há grande dúvida que as paradas da Muralha, as suas manifestações eram um grande sucesso. Eram um movimento muito popular nessa altura, especialmente entre os jovens rapazes, que olhavam para tudo aquilo com fascínio, apesar dos comunas serem muito espetaculares na sua ação. Mas a Muralha é que dominava o que ainda havia de redes sociais e uma boa parte dos jornais.

- Então mas você era o quê?

- Eu era do CLODO.

- CLODO?

- Comité Liquidatório e de Subversão dos Computadores. As pessoas chamavam-nos Neoluditas.

- Os neoluds não estavam do lado dos revolucionários?

- Nós estávamos do lado da ação. Sabotagem. Mas não estávamos com os ecomunistas, a sua ideia de sociedade era e é uma traição. Querem travar o inevitável e fingem que são diferentes dos que lá estavam antes, mas continuam obcecados com tecnologia. Há vários traidores do nosso lado que se passaram para lá. Eles é que me denunciaram, por isso é que estou aqui.

- Está a cumprir punição?


- Sim. Há dois anos. Mas querem que fique dez. Muito justos. A tal da “justiça climática”. - fez sinal com os dedos, sorrindo.

- Mas punição por quê?

- Fui acusado de destruir os estaleiros de mega eólicas na Dinamarca.

- E destruiu?

- Ninguém se queixou quando a fábrica da Jaguar em Solihull, ou a sede da Bayer em Leverkusen explodiram.

- Mas destruiu as mega eólicas? - Enke olhou para mim e reacendeu o seu cigarro, que se tinha apagado. Fez uma pausa antes de voltar a falar.

- Depois das revoluções europeias, eu e vários companheiros abandonámos a CLODO porque fizeram uma aliança com os comunas. Nunca nos perdoaram. Por isso começou a perseguição política. É por isso que estou aqui. Você sabe como funcionam as coisas no novo sistema. - Desisti de insistir.

- E as outras pessoas aqui? Os outros tripulantes?

- Há mais uns companheiros do CLODO. E três muralhistas, mas quase não aparecem nos espaços comuns. O resto são uns pobres coitados. Até mandam para aqui ecomunistas párias que não andam a obedecer aos chefes.

- E quem são os chefes?

- Há vários. Mas o topo topo, que eu saiba, são as borboletas. Nunca se sabe bem, eles escondem-se em comissões e comités. Mas depois há assembleias para tudo, reuniões para tudo. Adoram. - riu-se.

- Bem, vou dormir, Battacharaya.

- Porquê Battacharaya?

- Não é o nome do vosso escritor de serviço?

- O Sukumar?

- Sim. - Virou-se e começou a abrir a porta para entrar.

--Vemo-nos por aí?

- Se tiver de ser. - respondeu-me, atirando o cigarro apagado para o mar.


O dia seguinte passou rápido, chuvoso mas com ondulação tranquila. Ainda assim senti os enjoos quando tentava pegar nos livros. Quando abandonámos o Mar do Norte, já num comboio de quinze navios, tudo piorou. Recebemos a informação pelo sistema de som que era obrigatório andar sempre de colete salva-vidas fora dos espaços comuns. Ficava horas no quarto, preso, tendo de correr para a messe e de volta. Se pusesse um pé fora, ficava encharcado. Estava a ser uma viagem infernal, dias e dias de náuseas e vómito, mesmo com os comprimidos do médico. Ainda bem que a Lia e o António não tinham vindo.


A meio da noite acordei, projetado da cama contra a parede. Um alarme sonoro ensurdecedor começava a tocar. Era difícil manter-me de pé, tal era o balançar do chão. Pus o colete salva-vidas e saí para o corredor, onde já estava a maior parte dos tripulantes. A Imediato começou a falar.


- Senhoras e senhores, devido ao mau tempo perdemos vários contentores a estibordo. O navio está desequilibrado e a virar-se. - as pessoas entreolharam-se, apreensivas. - Estamos em maus lençóis. Mas estamos a meio do comboio, se tivermos de abandonar o barco, será fácil sermos recolhidos, se tudo correr mal. Vamos tentar reequilibrar lançando ao mar alguns dos contentores a bombordo. Preciso dos operadores de gruas e de dois estivadores de

contentores. A restante tripulação deve dirigir-se aos navios salva-vidas. - O navio abanava e rangia


Três homens que eu não conhecia e Enke aproximaram-se da Imediato, enquanto nós seguíamos na direção da ponte. O comandante dava ordens para entrarmos nos dois grandes botes salva-vidas cor-de-laranja. Uma vez lá dentro, sentei-me e abracei como pude as minhas pernas. Se arrependimento matasse… Porque me tinha metido eu nesta loucura? Toda a gente sabe que o mar é um sítio perigoso, e agora mais perigoso que nunca. A porta do bote estava aberta, com o piloto a olhar para fora, à espera de perceber o que fazer. Eu já tinha vindo aqui. Sabia que se fosse para abandonar o navio, o piloto fecharia a porta redonda e viraria a grande maçaneta de roda até trancar a porta-estanque, altura em seríamos descidos até ao mar. Dentro do bote tudo abanava também. Éramos cinco lá dentro. Além de mim que estava em pânico, as outras estavam estranhamente tranquilas.


- Vai correr tudo bem. No pior cenário vamos tomar o pequeno-almoço com os alemães ou os escoceses. - Disse-me uma mulher morena com os seus quarenta anos, colocando-me a mão sobre o ombro.


Senti tudo levantar-se e cair uns três metros de uma vez, batendo com a cabeça no tecto e depois no lugar onde tinha estado sentado. Ficámos espalhados dentro do bote, com o piloto caindo para dentro connosco. A mulher sangrava da cabeça depois de ter batido violentamente em algo. Tentámos recompor-nos. Nessa altura, o sinal de alarme parou de tocar. Outra tripulante olhou pela porta aberta, enquanto o piloto

tratava do ferimento da mulher. Passado uns minutos ouvimos a voz da Imediato no sistema de som:

- Podem sair dos botes salva-vidas, a situação está controlada.

De regresso à coberta dei de caras com uma grande comoção não muito longe da porta do meu camarote. Enke e outro homem gritavam com o comandante.

- Mas eles não são da Muralha nem neoluds. São dos vossos!

- Oh Enke, não digas coisas estúpidas. - respondeu o comandante. - Eles vão ser recolhidos pelo resto do comboio. Já os avisámos.

Dois dos tripulantes tinham caído ao mar na operação de despejar os contentores. Enke passou, furioso. Parou, dirigiu-se a mim e disse:

- E vocês também matam muitas vezes as vossas pessoas. Escreve isso na tua história!


Os dois homens não foram recuperados. Segundo a Imediato e o Comandante, teriam sido arrastados para o fundo presos aos contentores. Os restantes dias da viagem, apesar da significativa melhoria nas condições do mar, foram passados com um péssimo ambiente a bordo, com a maior parte da tripulação simplesmente pegando a sua comida na cantina e levando-a para comer nas cobertas.

Quando finalmente chegámos aos Estados Unidos, vários navios se separaram, descendo rumo a Sul, enquanto nós entrámos na barra, acompanhados por dois navios alemães. Abrimos caminho no meio de um mar de medusas, a maior parte das quais brancas ou transparentes. Eram milhões naquela zona, empurradas por ali pelo vento. Durante a viagem tinham-me explicado que em vários locais havia mais medusas porque os seus predadores estavam em queda. Eram um mau sinal.


Estava à espera de subir o rio Hudson e ver a estátua da liberdade, Ellis Island e os arranha-céus, mas virámos à esquerda e subimos para Nova Jersey, aportando na Baía de Newark. Fui dos primeiros a desembarcar, abençoando a doca firme em que finalmente pisava. Não queria repetir. Depois de despedir-me do Comandante e da Imediato ainda olhei em volta à procura de Enke ou de outras pessoas conhecidas, mas não vi ninguém. Dirigi-me ao homem com a farda do Exército Verde, apresentando-me.




arame farpado na rebentação

arame farpado na rebentação

O homem que me recebeu na doca de Nova Jersey era alto, vestia farda do Exército Verde e tinha uma farta cabeleira loira e óculos de sol. Chamava-se Edward Boston. Perguntou-me pela viagem e eu disse-lhe apenas que se pudesse evitaria repeti-la (escondendo a realidade sobre o terror da viagem para mim). Disse-me que tínhamos um almoço à espera com membros do partido na sede do Movimento Ecomunista em Hoboken, a seguir ao qual poderia começar entrevistas. Informou-me ainda que eu poderia ficar hospedado lá. Antes de partirmos em bicicleta, liguei à Lia. Estava na viagem de regresso a Lisboa. Tinha parado em Barcelona com o Ettore.

- Chegaste? - Perguntou-me Lia, preocupada.

- Sim, finalmente.

- Não pode ter sido assim tão mau. - tinha conseguido fazer algumas curtas chamadas com Lia antes de sairmos do Mar do Norte, mas depois tínhamos ficado sem sinal.

- Já estou em pânico com a ideia da viagem de volta.

- Esperava que tivesses gostado. Mas o que aconteceu?

- Muito mau tempo. Pessoas a cair ao mar. Estivemos todos dentro do salva-vidas prestes a abandonar o barco por causa do mau tempo.

- Oh não! E as pessoas que caíram?

- Acho que morreram. Mas ninguém pareceu ligar demasiado. Foi horrível. Pelo menos não apareceram piratas. Como está o António?

- Alex, e estás bem?

- Tanto quanto é possível. E o António?

- Está bem. Bem disposto. Falei com a Josephine e ela sugeriu que eu te ajudasse com o livro. Deu-me muito material. Uma parte vou enviar pela internet. Será que também posso enviar coisas por correio?

- É impossível receber coisas por correio, porque vou estar sempre em movimento. Mais vale juntarmos o material quando eu voltar.

- OK. Olha, como não és muito organizado, vou-te enviando algumas coisas que acho que te podem ajudar, cronologias de eventos importantes ou a forma como as organizações se relacionam umas com as outras e assim.

- Isso vai ajudar imenso com as minhas pesquisas. Já percebeste que está tudo bastante confuso, não é?

- É normal, ainda estás a reunir a informação.

- Obrigado pela ajuda. E pelo apoio. Olha, tenho aqui um americano à minha espera, para me levar a almoçar ao partido ecomunista.

- Como é Nova Iorque? Já viste a Estátua da Liberdade?

- Não, viemos para Nova Jersey, mesmo ao lado.

- Oh, que pena. Se precisares falar mais tarde, liga. O António acordou e vou dar-lhe de mamar. Muitos beijos, meu amor.

- Amo-te muito, Lia.

- Eu também.


Edward tirou uma bicicleta dupla do estacionamento e colocou as minhas coisas num carrinho fechado de duas rodas que vinha atrás. Sentou-se à frente e eu no selim traseiro. Ligou o pequeno motor elétrico e arrancámos.

- Não precisa de pedalar, se não quiser.

- Obrigado.

Percorremos as ruas de Nova Jersey cheias de pessoas, bicicletas, skates e trotinetes. Pareceu-me muito mais caótico do que já tinha visto em qualquer outra cidade. Os

telhados dos prédios brilhavam com o reflexo do sol nos painéis solares, enquanto a nível da rua pequenas farmácias e lojas de reparações pontuavam os largos passeios onde grupos de jovens se reuniam em conversas animadas. Árvores jovens e arbustos preenchiam o centro das ruas, intermediadas por pequenas fontes a cada 200 metros. No que parecia ser um antigo “mall” erguia-se agora um enorme complexo hospitalar, cujo nome em grandes letras soletrava “Veteran’s Hospital”. Um outdoor abaixo dizia “No fees or insurances”. O céu ficou cinzento e começou a carregar-se. Apesar do calor, caiu uma tromba de água mesmo em cima de nós. Tive receio que aquilo pudesse estragar os meus livros e computador. Toquei nas costas de Edward e ele encostou. Apontei para o carrinho. Ele tranquilizou-me: “It’s waterproof!”. Era à prova de água.

Mas a roupa não era e passado 20 minutos a pedalar pela faixa ciclável, finalmente chegámos ao edifício. As ruas tinham-se esvaziado. Apesar da pesada chuva, pude apreciar o bonito edifício que era a sede do movimento. Parecia ser bastante antigo, com letras metálicas descrevendo: ECOMUNIST MOVEMENT - US - NEW YORK DIVISION. O rés-do-chão era composto de montras de vidro, sob as quais estava pintado um enorme mural onde se viam membros do Exército Verde escavando o solo em conjunto com camponeses. Pareceu-me um pouco antiquado.

- You should go up to your room and change! (Vai ao teu quarto mudar de roupa). - apontou-me para uma porta metálica ao lado dos vidros es um código que a abriu.


Quando entrei havia um homem muito grande e gordo no corredor, que me cumprimentou com um largo sorriso:

- Olá, companheiro. Bem-vindo. - Abriu-me a porta de um dos quartos que havia dos dois lados do corredor. - Estás encharcado. Vou buscar-te roupa seca.


- Obrigado. - Abri a minha mochila e de facto estava tudo seco. Tirei os livros e o novo computador que o Gianni me tinha dado. Havia internet. Abri os correios que a Lia me tinha enviado. Entretanto, o homem bateu à porta e entrou. Trazia uma espécie de macacão verde, parecido com uma farda do Exército Verde, mas menos marcial. Ele próprio tinha um macacão parecido, embora o seu fosse azul claro. - Aqui tens.

Depois de mudar de roupa sentei-me para começar a ler o que a Lia me tinha enviado quando Edward bateu à porta. - Vens? - disse a sua voz lá de fora. - Tens um monte de gente lá em baixo à espera para te conhecer.

- Vou, vou. - As leituras teriam de esperar. Pus os meu Babel.


Na sala principal estava posta uma mesa cheia de comida, com várias pessoas de pé à sua volta. Edward pigarreou e toda a gente se voltou na nossa direção.

- Olá companheiras e companheiros. Este é Alex Aguas, o companheiro que vem de Portugal numa missão para o Movimento. - fazia-me alguma confusão toda a gente achar que eu era ecomunista. - Ele poderá contar-vos um pouco sobre o que se passa na Europa, mas principalmente, têm de ajudá-lo com a informação de que ele precisa. - Um a um aproximaram-se de mim e apresentaram-se:

- Leticia Gold, energia. - fez uma ligeira vénia com a cabeça ruiva.

- Diego Patrizio, educação. - estendeu-me a mão.

- Lizzi Tyler, moral revolucionária.

- Ellie Lumpert, justiça.

- Oscar Gonzalez, calor.

Eram doze no total, cumprimentaram-me um a um, falando de diferentes áreas da sociedade em que os ecomunistas estavam envolvidos, que eram todas. Tinham entre

vinte e trinta anos e alguns vestiam os macacões verdes. No final, claro que não me lembrava do nome nem da área de ninguém. Tinha um formulário preciso de perguntas que Gianni tinha posto no computador. Propus falar com cada um após comermos, e toda a gente aceitou.


Durante a refeição fui bombardeado por perguntas sobre os mais variados temas - se ainda havia Muralha na Europa depois da amnistia, como corria a luta contra a Máfia, como se tinha lidado com o calor este verão, como estava a correr a guerra contra o Estado Islâmico no Médio Oriente e no Congo. Poucos me perguntavam sobre Portugal, do qual sabiam pouco. Apenas um homem latino, Óscar, me perguntou sobre Lisboa.

- Ouvi dizer que as cheias na cidade há uns anos foram terríveis. Como estão agora?

- Agora estamos mais num ciclo das secas. Considerando o calor que esteve na cidade, correu razoavelmente bem. E mesmo a nível de incêndios temos muita capacidade de combate em relação ao passado.

- Vocês não têm problemas de bolbo húmido mortal, não é? - acenei que não - É óptimo. Mas fale-me sobre a floresta. Vocês fizeram um grande projeto.

- Sim, mas mais no campo do que em Lisboa. Plantaram-se ao longo dos últimos doze anos centenas de milhares de hectares com carvalhos e castanheiros, outras espécies locais e do Norte de África. Foram plantadas no antigo deserto verde, a mistura de eucalipto com acácias e outras árvores explosivas. É um grande projeto de substituição de paisagem. Até agora os incêndios têm baixado, mas também temos muito mais gente a viver perto de áreas florestais, então estão mais limpas e há maior vigilância. Aqui não há grandes problemas de incêndios, pois não?

- Aqui mesmo apanhamos com o fumo vindo de outros locais: do Canadá, do Quebec, e


do Sul, do Mississippi e do Alabama. Por vezes, até chega o da Amazónia. Por isso, nos meses mais quentes é frequente haver alarmes de ar perigoso e não podermos sair de casa. Às vezes os fumos e cinzas entopem mesmo as bombas de calor e sistemas de refrigeração.

- Como está a situação de água e calor em Nova Iorque?

- A humidade aumentou bastante, e por isso temos grandes trombas de água. Felizmente os projetos de aumento de infiltração têm diminuído bastante as cheias. Há pelo menos quatro anos que ninguém morre numa. Por outro lado, já tivemos emergências de bolbo húmido no verão mais que uma vez, e este ano instalámos os alarmes de bolbo húmido - olhe, está ali o gráfico. As pessoas ainda não se habituaram aos graus Celsius. Apesar do nevão de há umas semanas, em geral deixámos de ter invernos brancos. Para reduzir o efeito de ilha de calor, estamos a reduzir a altura dos arranha-céus, combinando com florestação e o levantamento do alcatrão, mas há muita gente a resistir.

- A resistir?

- Sim, manifestações contra o desmantelamento de torres, bloqueios quando estamos a tirar alcatrão. Geralmente são as pessoas de Manhattan. Que ainda por cima é das zonas onde mais cheias há. - Fez uma pausa e olhou-me. - Que idade tens, Alex?

- Tenho 30, porquê?

- Nada, curiosidade. E estás no movimento há muito tempo?

- Na verdade, não estou. Quer dizer, estou a fazer este trabalho, mas não sou oficialmente membro de nada. E até há uns meses apenas participava em Lisboa.

- Então como vieste aqui parar? - parecia desconfiado.

- Eu estou a escrever um livro sobre a Grande Mudança e um dos dirigentes italianos do movimento, o Gianrocco Fratin, propôs-me que viesse fazer este trabalho no continente americano.



- Fratin? É um dos grandes dirigentes europeus. Costumamos ler algumas coisas que ele escreve. Como é que ele é?

- É muito simpático. A minha mãe foi militante também. Marta Garrida.

- Não sei quem é. - sorriu.

Entretanto virei-me para Edward e perguntei-lhe também pela minha mãe.

- Ela foi dirigente do Exército Verde.

- Quando?

- Acho que ela esteve cá no fim da Guerra Civil e nos anos seguintes.

- Do que eu sei, nessa altura não havia cá Exército Verde. Mas também só estou no movimento há quatro anos.


Terminado o almoço, as pessoas levantaram os pratos e comecei a fazer entrevistas. Eram todas relativamente parecidas, mas ainda demoravam uns 20 minutos a responder a cada formulário. Demorei a tarde toda. As últimas pessoas que ficaram já estavam bastante aborrecidas e reclamavam com Edward, que lhes dizia que tinha de acontecer hoje. Quando acabámos finalmente, mais de três horas depois, enquanto o último saía, Edward reapareceu trazendo um prato de comida para mim.

- Terminou todos os relatórios?

- Sim, felizmente. - Estava mesmo cansado.

- Amanhã tem o dia livre mas o plano é seguir de comboio para Minneapolis no dia depois de manhã. Já lhe enviei pela NYNET a informação de transportes e coisas interessantes acerca da cidade.

- OK, eu vejo no quarto então. - Peguei no prato e no computador e levei-os comigo. - Levo a comida para o quarto. Vemo-nos amanhã?

- Estarei aqui de manhã. Se precisar de alguma coisa, pode pedir ao Karl, que deve andar pelo corredor ou no seu quarto, que diz “Cuidados” na porta. Boa noite.

- Boa noite, Edward.


Quando entrei no quarto deitei-me, exausto. Fechei os olhos alguns minutos. Depois sentei-me e peguei no relatório sobre a viagem da minha mãe desde as Honduras até à Califórnia. Li umas linhas, mas estava demasiado cansado. Abri o computador, voltando às mensagens da Lia.


A primeira era uma lista de todas as organizações sobre as quais tínhamos falado, e uma espécie de esquema de ligações das organizações entre si. Tinha não só as ligações próximas dos ecomunistas e Tratado Mundial, mas também as da Muralha e da máfia. Outro ficheiro que me enviou era um podcast de um livro sobre Moçambique, de onde era a minha avó paterna. Abri o documento e pu-lo a tocar enquanto comia. Era um livro escrito por Ali Macuácua, chamado “Riptide Barbed Wire”, “Arame Farpado na Rebentação”, uma história sobre o norte de Moçambique antes das guerras santas e das revoluções que levaram à criação da República Oriental Africana.


I


O dia começou nebuloso e cinzento. O Ibo tinha sido um lugar tão solarengo desde a chegada, há alguns meses, que hoje parecia um sonho. Rassaba sabia que o dia ia ser uma loucura. Tinha de juntar os seus poucos pertences, as roupas dos miúdos, os brinquedos e os


medicamentos de Ali antes de partir. Tinham sido convidados por TiAlice para ficarem em sua casa com a família dela, pois as tendas brancas dos refugiados não podiam aguentar a tempestade. Ainda assim, não havia ninguém para fechar as tendas e guardá-las. Com sorte, alguma coisa poderia sobreviver. Ou talvez a tempestade não fosse assim tão má. Se calhar depois da tempestade o administrador conseguisse encontrar uma casa para eles, como tinha prometido no dia em que ela e o irmão tinham desembarcado. Ou talvez houvesse uma forma de regressar a terra firme. Entre dormir e acordar, Rassaba tentava reunir um pouco de energia para aguentar o dia. As crianças estavam um pouco mais letárgicas, acordadas mas deitadas, em vez de gritarem e pularem. Tinham ficado cada vez mais assim desde que tinham perdido os pais. Assante, o mais pequeno, que tinha começado a falar com um ano, tinha parado de o fazer. Pelo menos na semana anterior tinha voltado a sorrir. Abriu metade dos olhos e Raissa, a segunda mais velha, estava a olhar para ela, com as duas mãos sob o queixo, sorrindo. Não havia mais como adiar, era altura de se levantar.


Quando abriu a tenda, reparou que toda a gente parecia estar com pressa. A lama era espessa e cheia de marcas de pés e chinelos. Acordou Ali com um beijo carinhoso e disse-lhe para ir fazer chichi. "Mas está a chover!", respondeu ele, mal-humorado, enquanto se dirigia para a rua. Rassaba estendeu a capulana no chão sobre a esteira de palha e começou a abrir os pequenos sacos de plástico um a um: dois pães, arroz cozido, bananas, coco e açúcar. Dividiu a comida entre as crianças mais pequenas, guardando o arroz e alguns pequenos pacotes de caril para mais tarde. Ela comeu apenas um pequeno pedaço de pão e uma banana. Esperava que as mulheres mais velhas lhes pudessem dar mais comida. Provavelmente também havia grandes sacos de arroz armazenados no posto administrativo.







Fechou os sacos com os restos de comida e a capulana azul e amarela com a cara de Josina Machel, e entregou-a a Raissa. Juntou o resto dos pertences num grande saco de arroz branco do PAM. Enquanto Assante e Ali brincavam com um carro de madeira e arame, imitando sons de motores, Rassaba pediu às crianças que esperassem enquanto ela ia ver o mar. Apesar de ter vivido sempre perto dele, nunca se tinha sentido muito à vontade perto da água grande.


Só precisava de andar alguns metros para chegar à praia e ver o Oceano Índico. Normalmente, era azul esverdeado límpido, mas hoje estava cinzento e branco. Diferentes ondas convergiam e batiam umas nas outras, produzindo explosões abafadas. Ela ficou ali, no meio dos barcos ancorados na areia, a olhar para o que parecia ser madeira à deriva a ir e vir. Passados alguns instantes, apercebeu-se de que era um cão castanho que nadava em direção à costa. No entanto, os seus esforços eram em vão, pois era sempre empurrado para o fundo do mar. Desapareceu durante alguns momentos para ressurgir alguns metros mais perto de terra, mas uma onda bateu-lhe na cabeça e ele foi puxado de novo para debaixo das ondas. O focinho preto encharcado apareceu no meio da água branca, com objectos a boiar ao seu lado - cordas, sacos de plástico, algas, restos de redes de pesca - e uivou fracamente, sendo empurrado de novo para a praia. Rassaba observou a cena durante alguns minutos, vendo o cão a lutar para se manter à tona e chegar a terra, enquanto se afastava cada vez mais das areias brancas. Por fim, já não conseguia ver mais nada e começou a choviscar.


Voltou para a tenda e chamou toda a gente. Os quatro - Rassaba, Raissa, Ali e Assante - saíram em direção à cidade de cimento, com os chinelos a baterem palmas nos pés quando se descolavam do chão lamacento. Começaram a andar na velha calçada de Ibo, debaixo de

chuva.


A TiAlice falava Mwani, ao contrário da maioria das pessoas do Ibo que a Rassaba tinha conhecido. Muitas pessoas de Macomia e mesmo algumas pessoas que Rassaba conhecia de Mocimboa encontravam-se ali. Tinha-se tornado um ponto de encontro regular, em particular para os refugiados mais jovens. A TiAlice era curandeira, embora alguns lhe chamassem feiticeira, e distribuía peixe seco ao grupo de vinte e poucos que se reunia no seu alpendre e debaixo das árvores da rua em frente à sua casa. O grupo não queria que outros se juntassem, mas a filha de Alice continuava a trazer mais pessoas e distribuía bananas aos outros moradores da rua que passavam, indo e vindo do acampamento.


Naquele dia, quando os quatro chegaram à porta da casa dela já chovia e não havia ninguém do lado de fora. Rassaba bateu à porta e a velha curandeira abriu-a com um sorriso largo, a que faltavam alguns dentes de lado. "Sejam bem-vindos, meninos, tirem os sapatos e sequem-se". Tinha um pequeno fogão a aquecer a cozinha, onde alguém estava a cozinhar amendoins. Os rapazes tiraram as camisolas (uma do FC Barcelona, a outra do Bayern de Munique) e secaram-se numa capulana xadrez que a TiAlice lhes tinha emprestado.


Sentaram-se na cozinha enquanto outros foram chegando ao longo da manhã. Rassaba conhecia todas as pessoas que ali estavam. A maior parte tinha vindo do continente depois de o Al Shabab ter atacado as suas aldeias. Os quatro irmãos, agora sob a alçada da irmã mais velha, tinham perdido os pais para os terroristas e para a polícia. As histórias terríveis que tinham para contar sobre decapitações, violações, mortes, fugas e esconderijos escuros eram partilhadas com muitas das outras pessoas que ali se encontravam. Tinham acabado por se

sentir confortados por essa herança comum de horror, dor e perda, pelo companheirismo de partilhar a miséria da deslocação. Muitas vezes choravam nos braços umas das outras, ela e as mães que tinham perdido os filhos e as filhas, os adolescentes e as crianças que estavam agora sozinhas no mundo, ou que simplesmente se tinham separado dos pais e não sabiam nada das famílias que lhes restavam. A TiAlice tornou-se um lugar comum e uma pessoa comum para esta assembleia de tristeza, que ela iluminava com a sua bondade, as suas sopas quentes e as suas canções. Era velha, mas ninguém sabia dizer quantos anos tinha. A filha devia ter uns cinquenta anos, e nunca viram outros filhos ou netos, o que era muito estranho, mas talvez não para uma feiticeira. Ela disse que agora era do Ibo, que tinha sido a sua casa durante muitos anos, mas que a sua casa tinha florescido com a chegada dos refugiados. Naquela manhã, ninguém estava a recordar as tragédias recentes. Todos estavam preocupados com o futuro, não com o passado.


Pelas onze da manhã chegaram as últimas pessoas: um homem forte e muito escuro entrou com a filha da TiAlice. Tinha uns 20 anos, mais velho que ela, e sorria para todos quando passava. Perguntou a Rassaba, em swahili, se se podia sentar ao lado dela e ela acenou com a cabeça em sinal de concordância. Rassaba estava sentada com Assante ao colo. O homem, que se apresentou como Ismail, estava encharcado e disse-lhes que estava mesmo a chover um dilúvio lá fora, com um rio no local onde uma hora atrás estava uma rua. O vento assobiava no telhado de zinco e nas janelas fechadas com tábuas. A Tia deu a cada um meio pão e alguns amendoins e todos os mordiscavam. Dois homens mais velhos fecharam a porta com pregos e um martelo. Por volta do meio-dia, a casa tinha trinta e uma pessoas e dois cães dentro. De vez em quando, outras pessoas batiam e gritavam lá fora, pedindo para entrar, mas a Tia não dizia nada e ninguém intervinha em seu favor.








As crianças cantavam alto enquanto a TiAlice e a sua filha consolavam as pessoas e distribuíam água. Havia um quarto nas traseiras com uma latrina no chão, protegida das vistas apenas com uma velha cortina colorida como porta. O teto da cozinha e das salas, mal iluminado por candeeiros simples, começou a pingar. Primeiro gotas pequenas, depois gotas grossas e, por fim, um fio constante de água corria junto às paredes e nos fios eléctricos que levavam às lâmpadas. Por fim, a eletricidade da casa entrou em curto-circuito, com o estrondo de uma das lâmpadas. Rassaba nem sequer sabia como é que a casa da Tia tinha eletricidade, pois não tinha visto nenhum gerador no exterior. A casa estava agora às escuras, com uns fios de luz a entrar pelas fendas das janelas e do teto. Raíssa e Ali, que até então cantavam meio divertidos meio assustados, sentaram-se ao lado de Rassaba, seguraram as mãos um do outro e choraram. Assante mantinha os olhos fechados, enquanto ela cantarolava canções de ninar ao seu ouvido. As horas foram passando.


O som lá fora era tão alto que parecia que em toda a casa havia pessoas a gritar e a bater para entrarem. A latrina não tardou a transbordar e vários centímetros de água fétida começaram a subir à sua volta. Rassaba sentiu nitidamente pêlo molhado roçar-lhe as pernas e, ao seu lado, Raíssa estremeceu quando uma ratazana tentou subir-lhe pela perna. Todos já estavam de pé, exceto Alice, que tinha um banco de madeira onde se sentava e fumava um cigarro Chesterfield ao contrário, com o filtro de fora. O som tornou-se tão alto que a maioria das pessoas tapou os ouvidos. As crianças choravam agora, mas já não se ouvia nada, exceto o vento e a chuva do ciclone Kenneth.


Quando a água lhes chegou aos joelhos, Ismail começou a gritar e dirigiu-se a TiAlice, apontando para cima. Rassaba entendeu: deviam tentar encontrar um sítio mais alto para

ficar. Rassaba pensou no sítio onde tinham dormido naquela noite, muito abaixo do bairro de cimento, e em todas as tendas que lá estavam montadas. Já deviam estar completamente submersas, assim como todos que tivessem ficado, ignorando os avisos. TiAlice fez um gesto para que todos se acalmassem, segurando com as mãos alguns dos seus móveis que flutuavam. O som continuava a aumentar, e não se ouvia mais nada. Era como estar no meio de ondas de choque ininterruptas. As pessoas olhavam umas para as outras e gritavam, mas nada se ouvia, o que as obrigava a recorrer a sinais, pouco visíveis no escuro.


De repente, a cozinha ficou um pouco mais clara. A luz vinha da sala ao lado. Todos olharam para lá, onde o telhado de zinco começava a subir, deixando entrar luz, vento e chuva. As crianças agarraram-se a Rassaba e ela, por sua vez, agarrou-se ao braço de Ismail. Estavam agora a levar com muita chuva na cara. E então aconteceu.


A parede de adobe onde se encontrava a porta de entrada ruiu subitamente para fora, arrastando consigo partes do chão. Uma jovem mulher foi arrastada para fora com o chão de terra. Se não fosse um grupo de mãos que a segurou e puxou, ela teria desaparecido na forte torrente de lama que corria ruidosamente lá fora. Toda a gente recuou do local onde se encontrava a parede. O telhado tremeu e as pessoas cobriram as cabeças. Mas em vez de desabar, simplesmente desapareceu voando pelo ar, fazendo com que todos os que estavam nas quatro divisões da casa semicerrassem os olhos por causa do clarão de luz que entrava em toda a casa. A parede da cozinha começou a desmoronar-se de cima para baixo, um tijolo de cada vez, enquanto Ismail apontava desesperadamente para cima. TiAlice também fez sinal para que subissem a rua das traseiras, apontando para a porta da cozinha. Correu para as outras divisões, cobrindo a cara para se proteger dos destroços que voavam pela casa. Fugir

de casa era urgente e as pessoas começaram a arrancar as tábuas de madeira que protegiam a porta.


Rassaba agarrou em Assante e Ali, com Raissa ao seu lado, e seguiu-os para fora da porta. Queria trazer as suas coisas, mas Raissa não as tinha agarrado e agora era impossível encontrá-las. Carregando o peso dos dois irmãos mais novos e sendo agarrada pela irmã, ao sair, Rassaba pensou que não conseguiria andar muito tempo com todos a pesarem-lhe.


Tinha perdido de vista TiAlice e a filha. A rua principal era um verdadeiro rio de água barrenta e objectos, e a velocidade da corrente ameaçando arrastar quem se atrevesse a aventurar-se nele. Por isso, começaram a andar por ruas mais pequenas, algumas pessoas subindo aos alpendres mais altos. Ao ar livre, ela podia ver que todas as palmeiras tinham caído, a maioria das casas tinha perdido as paredes e muitas não tinham telhados. No céu, voavam todo o tipo de objectos, mas sobretudo folhas de palmeira e telhas, em todas as direcções. Quando estavam a subir o beco que Rassaba pensava ser aquele que Tia tinha indicado antes de sair, um tijolo vermelho caiu mesmo nas costas de Raíssa, que por sua vez caiu na água lamacenta. Rassaba, com duas crianças ao colo, ajoelhou-se ao lado da irmã mais nova, gritando para que ela se levantasse. As suas lágrimas misturavam-se com a chuva forte, enquanto Raíssa lutava para se levantar, coberta de lama e com as costas a sangrar. Rassaba poisou Ali no chão e disse-lhe para lhe agarrar a perna enquanto ela ajudava Raissa a levantar-se e a andar. Caminhavam agora com os pés descalços no meio de um rio de detritos que chegava à sua cintura. Sentiu algo bater-lhe na perna e rasgar-lhe a pele debaixo de água. Teve a certeza de que não iriam sobreviver.









No entanto, o som rapidamente começou a desvanecer-se para quase silêncio e a chuva parou completamente. Agora ouvia distintamente toda a gente, incluindo ela própria, a chorar e a gritar ao longe. Um grupo de pessoas, liderado por Ismail, aproximou-se deles, falando invulgarmente alto, hábito das horas anteriores. Ele pôs Ali às suas costas e deu a mão às raparigas, guiando-as para o forte, rua acima.


Mal tinham entrado no forte quando o som estrondoso recomeçou, com a fúria do ciclone a regressar e os objectos a levantar voo novamente. O antigo edifício não vacilou, no entanto. Apesar da chuva intensa e do vento forte, Rassaba achava que não ia inundar, com sacos de areia a encher as entradas mais vulneráveis. Cães, gatos e ratos corriam de um lado para o outro, mas Rassaba deixou-se sentir mais segura. Pediu a Ismail que a ajudasse a encontrar um sítio para ela e para os irmãos e que alguém lhes tratasse das feridas. Ela tinha um longo corte a sangrar na perna esquerda, Raissa tinha um buraco nas costas e todos eles, exceto Assante, tinham cortes e hematomas nos pés. Ismail disse-lhe que seria difícil obter ajuda médica em breve, apontando para um grupo de macas no chão ao lado deles, onde pelo menos cinco pessoas sangravam abundantemente, rodeadas por duas mulheres com trajes de profissionais de saúde, e duas crianças mortas. Trouxe-lhes ligaduras e uma garrafa de água e tapou-lhes as feridas. Raissa chorou quando ele tentou limpar a sua ferida, que sangrava muito. Os rapazes dormiam numa esteira no chão entre um coro de lamúrias. A nova chefe de família sentia a boca completamente seca. As irmãs deram as mãos e Raissa perguntou: "Que dia é hoje?".


Era o dia 25 de abril de 2019. Pelas 16 horas, o pior do ciclone Kenneth, o mais forte de sempre a atingir a África continental até então tinha chegado e passado sobre o Ibo, seguindo para o

continente, onde devastaria Macomia e Quissanga, atingindo ainda Pemba, Mocimboa da Praia, Palma e toda a costa da província moçambicana de Cabo Delgado. O Kenneth atingiu Cabo Delgado em pleno período de seca. O calor no Canal de Moçambique (o oceano entre a costa de Moçambique e a ilha de Madagáscar) era suficientemente elevado para que Kenneth se intensificasse de uma tempestade de categoria 1 para uma tempestade de categoria 4 em apenas um dia. A velocidade dos ventos atingiu 215 km/h. Mais de 90% de todas as casas de Ibo foram destruídas. Rassaba fez 13 anos nesse dia.


A província mais a norte de Moçambique, Cabo Delgado, teve muitas das suas cidades e aldeias devastadas, mas nenhuma mais do que o Ibo, uma ilha paradisíaca no Oceano Índico conhecida pelos seus edifícios históricos que datavam do século XV, misturando estilos africanos, árabes e coloniais. A ilha fica bem no meio do Parque Nacional das Quirimbas, uma das regiões de maior biodiversidade do mundo, onde tubarões, baleias, golfinhos, tartarugas, raias manta, elefantes, leões, hipopótamos, leopardos, búfalos, kudus, elandes, cães selvagens africanos, hienas e todos os peixes e aves de coral que se possa imaginar existiam.


Em poucos anos, milhões de pessoas seriam mortas e deslocadas, numa guerra entre o Estado Islâmico, o exército moçambicano, mercenários russos do Grupo Wagner e o exército ruandês. Durante esse período, a costa deste Maputo até Palma seria devastada por mais de doze ciclones, por vezes mais do que um por ano. O califado Aden Ayro seria erigido nesse período, ocupando a exploração petrolífera da francesa total no Rovuma, a exploração de diamantes, rubis e madeiras em terra e impondo uma devastação total das áreas florestais, contribuindo assim para o desaparecimento de milhões de animais, incluindo todos os leões, leopardos e búfalos, kudus, elandes, cães selvagens africanos, hienas e todos os peixes e aves de coral que







se possa imaginar existiam.


Em poucos anos, milhões de pessoas seriam mortas e deslocadas, numa guerra entre o Estado Islâmico, o exército moçambicano, mercenários russos do Grupo Wagner e o exército ruandês. Durante esse período, a costa deste Maputo até Palma seria devastada por mais de doze ciclones, por vezes mais do que um por ano. O califado Aden Ayro seria erigido nesse período, ocupando a exploração petrolífera da francesa total no Rovuma, a exploração de diamantes, rubis e madeiras em terra e impondo uma devastação total das áreas florestais, contribuindo assim para o desaparecimento de milhões de animais, incluindo todos os leões, leopardos e cães selvagens africanos. A batalha pela reconquista do califado, constituído por partes do Norte de Moçambique e do Sul da Tanzania lançaria a criação da República Oriental Africana, declarada no ano do Leão, ano em que desapareceu o último leão em liberdade.



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João Camargo + Nuno Saraiva

versión en español

prólogo

Según el WCS, el Servicio Mundial del Clima, que recopila y publica estadísticas meteorológicas, atmosféricas y climáticas de todo el mundo, las emisiones de gases de efecto invernadero en 2041 fueron de 24,4 gigatoneladas de dióxido de carbono equivalente, volviendo a los niveles de emisiones globales de 1970. El objetivo del Tratado Mundial del Clima es que para 2050 las emisiones sean, al menos, la mitad de eso.


La concentración de dióxido de carbono en la atmósfera es de 430 partes por millón y ha disminuido lentamente en la última década.


Hay 7.500 millones de habitantes en el planeta.



La temperatura media global del planeta en 2041 fue de 15,2 ºC, lo que significó un aumento tras tres años consecutivos de descenso. Es decir, que estuvo 1,4 ºC por encima del nivel de la época preindustrial. En 2042, la temperatura es aún superior a la del año pasado.


En las últimas décadas, hemos alcanzado los 15,6 ºC, la temperatura más alta registrada en el planeta en los últimos 120.000 años, probablemente la más alta en 3 millones de años o más.



Lisboa


Alexandre recuesta la cabeza en el regazo de su compañera, Lia. Están en su casa de la Rua da Cruz de Santa Apolónia, a orillas del río Tajo. Lia está embarazada de siete meses.


–António, si es niño –dice Alex, cuyo padre, fallecido hace dos años, se llamaba igual.


–¿Y Marta si es niña?


–No. Marta no.


–¿Por qué no? Era el nombre de tu madre –responde Lia, asombrada. Sus padres siguen vivos, pero Alex perdió a los suyos en la última década. Lia sabe que los padres de Alex eran militantes eco-comunistas desde el principio del movimiento, pero Alex no suele hablar de ello.


–Si es una niña podríamos llamarla Carolina. O Catarina.


–A mí me gusta mucho el nombre de Marta. Además, sería un homenaje a su abuela.


–¿Un homenaje? ¿A quién estamos homenajeando?


–¿No era una revolucionaria del movimiento? ¿Una organizadora que ayudó en el Gran Cambio?


–Puede ser. Pero realmente no lo sé. Sé lo que mi padre hizo aquí, pero nunca me dijo lo que ella hizo después de irse. Recuerdo que nos dejó cuando yo tenía 15 años y sólo la volví a ver una vez. Y esa vez no me dijo casi nada. Diez años sin llamadas, ni vídeos, ni cartas. Sin mamá. Nada, hasta que llegó la noticia de que había muerto. Su funeral estaba lleno de gente que no conocía.


–¿Y no quieres saber nada más?




–Pues… no. Tengo otras cosas en que pensar. Ella tomó sus decisiones y yo no formé parte de ellas. Por suerte mi padre se quedó. Se quedó por mí. Y fue muy importante en todo lo que pasó aquí, aunque nunca quiso que nadie le hiciera un homenaje. –Una lágrima corrió por la mejilla de Alex–. Su partida también lo destruyó y lo amargó, sobre todo hacia el final de su vida.


–Está bien, mi amor. A mí también me gusta Carolina. Incluso… ¿Antonia? –Lia le besó la mano y él sonrió con una mueca–. Pero creo que tienes que saber lo que pasó.


–Lo intenté durante años, pero mi padre nunca me ayudó.


–El bebé merece conocer la historia de su familia.


–Quieres saberlo tú, ¿verdad, chismosa? –se rió.


Lia palmeó el hombro de su compañero.


–Sí, yo también tengo curiosidad y quiero saberlo. Si fuera mi familia, seguro que no pararía hasta averiguarlo todo.


–Me lo pensaré. Quizá después de que nazca el bebé.


–Piénsalo. Me encantaría.


En mayo de 2042, nació António.



Computer Screen
  1. fatima

De: alexaguas@voo.com

Para: fidrissi@nhope.ma

Fecha: 23 de mayo de 2042, 06:20

Asunto: Re: Mis condolencias por lo de tu padre


Salam, Fatima.


¿Cómo estás? Hace tiempo que no hablamos. La última vez fue cuando murió mi padre, cuando tuvimos aquella charla por Zoom, ¿te acuerdas? Espero que estés mejor del dolor, estaba preocupado por ti. La verdad es que estáis todos bastante fastidiados para la edad que tenéis. Espero que te estés cuidando y que la familia también esté bien.


Tengo grandes noticias. Hemos tenido un bebé, un niño al que hemos llamado António, como su abuelo. Estoy muy contento y sólo siento que mi madre y mi padre no estén aquí para verlo, seguro que estarían muy felices y orgullosos. Os enviaré un vídeo. Es muy tranquilo y duerme muy bien. Nació hace 10 días.


Te diré por qué te llamo. Lia siempre ha tenido mucha curiosidad por mi madre, por mi padre y por vuestras acciones y aventuras. Cuando estaba embarazada revisamos las cajas de mamá y me sugirió que escribiera sobre lo que había pasado en las últimas décadas, para poder contárselo al niño cuando sea mayor, para que pudiera conocer a sus abuelos.


Cuando me lo dijo, me quedé un poco indeciso, porque a papá no le gustaban esos tratamientos de «héroe» que a veces le daban, odiaba las ceremonias y sólo quería que le dejaran en paz. Y con la enfermedad empeoró. Yo no quería escribir, aunque ella insistía. Pero cuando vi a António por primera vez, algo cambió. Es igualito a mi padre, Fatima.


Fui a buscar imágenes suyas, de cuando era un bebé, y las encontré en un viejo disco con fotos escaneadas. Son iguales, el viejo y el niño: los ojos, la boca, la sonrisa, aunque la nariz es de Lia. En las cajas de mamá encontramos revistas, artículos, escritos por ti, por papá, por Sukumar, por Stephanie... Y fotos tuyas.


¿Tienes datos de contacto de estas personas? En otra unidad tenía también vídeos, fotos, recortes, noticias e informes donde aparecían cosas de Última Generación, de Mundo Nuevo. Me di cuenta de que hay muchas cosas que no sé. Recuerdo algunas cosas, por supuesto, pero aquí falta mucha información. Y también falta comprender el orden en el que sucedieron los hechos.


Por eso te envío este correo.


He decidido intentar reunir historias de lo que ha pasado en los últimos 30 años para contárselo al niño. Estoy recopilando noticias, información en general, para explicarle cómo hemos acabado así. Ya sé que muchas cosas han desaparecido junto con las grandes cadenas, pero aún quedan cosas, ¿no? También quiero saber más sobre lo que le pasó a papá y a mamá, a toda esa gente que venía a casa... A algunos los he visto por ahí, otros se han desvanecido. Estaba Pepe, por ejemplo, al que papá siempre defendía en la cárcel, y que siempre nos traía los mejores regalos, ¿te acuerdas? Andaban siempre detrás de él. Creo que tenía tu edad.


Bueno, no te molesto más con esto. Si te parece bien ayudarme y quieres hablar, quedamos un día de estos por la tarde. ¿Qué me dices?


Alex




Así empezó esta historia. Con un correo electrónico a Fatima Idrissi, una campesina marroquí de Marrakech que trabajó con mis padres en los movimientos revolucionarios de las décadas de 2020 y 2030. Fue el primero de los muchos contactos que hice durante varios meses con personas de todo el mundo. Les entrevisté y recopilé material para intentar ayudar a contar la historia de la locura que han sido estos últimos 25 años.


Perdonen la confusión, pero estos años han sido realmente una locura. Empecé escribiendo esta historia para mi hijo, pero descubrí por el camino que lo estaba haciendo en gran medida por mí, y por la memoria de mis padres y la de tanta gente que trabajó duro para detener las Grandes Crisis o el Gran Cambio, como los llamamos ahora.


No sabemos si las cosas van a empeorar. El año pasado la temperatura volvió a subir, tras cuatro años de descenso, pero no regresó al calor mortal del pasado reciente. Conseguimos reducir las emisiones que debíamos para 2030 y desde entonces no han dejado de bajar, pero aún es pronto para saber si lo hemos conseguido a tiempo.


Me convencieron otras personas, entre ellas mi compañera Lia y amigos que trabajan en la prensa y en el mundo del entretenimiento, para que hiciera pública esta historia. No soy un experto en esto, y gran parte de lo que vais a leer son apenas las entrevistas que he hecho y las noticias que he podido recopilar. creo que tal vez alguien podría tomar

esto y darle forma por escrito. Incluso, como Lia me dijo, hacer una obra de teatro o una película. Creo que sería bueno para entender lo que pasó. Yo lo he entendido todo mejor: he quedado muy impresionado, asustado y deslumbrado por la loca historia del mundo en las últimas décadas y el papel que la gente normal ha jugado en ella.


Alexandre Águas

Lisboa, enero de 2043



Estoy ante en la ventana de mi casa en Lisboa. Vivo en Santa Apolónia, junto al río. El antiguo Hotel da Estação, después de inundarse innumerables veces, fue abandonado hace más de una década. Ahora, a pocos metros de mi casa, subo en ascensor hasta Graça. Hoy, los viejos muelles y el embarcadero de cruceros, que hace media docena de años aún asomaban por encima del agua cuando había marea baja, están siempre sumergidos. Los cruceros llevan varios años sin atracar aquí.


Saludo al ascensorista, recordando la época en la que hice ese trabajo durante más de un año. Era un trabajo tranquilo, aunque resultaba un poco monótono subir y bajar durante cuatro horas al día. El ascensor pasa entre los árboles de la calle de Vale de Santo António y consigo coger un melocotón con la mano: aún está verde. Es primavera y ya es casi el tiempo de recoger la fruta.


En esta ladera de Lisboa se han plantado melocotoneros. En otras partes de la ciudad hay otras frutas, dependiendo del suelo y del sol.


El asfalto empezó a arrancarse hace más de una década, pero el nivel de contaminación del suelo sigue impidiendo plantar alimentos y frutas en muchas zonas de la ciudad después de estar tantos años bajo el asfalto. Las calles que tenían piedra en lugar de asfalto son las que están en mejores condiciones y por eso han sido las que más frutos han dado.



Voy a la biblioteca de Penha de França. Aunque hay bibliotecas más cerca de casa –y en Lisboa hay más de 300 bibliotecas–, fue aquí donde conseguí un estudio para grabar la entrevista con Fatima.


Conozco a Fatima desde hace muchos años, desde un periodo de quizás casi un año que pasó en casa de mis padres. Estaba huyendo de la policía política marroquí, recuerdo. Ahora debe de tener unos 50 años. Era muy joven cuando empezó a militar en diversos movimientos. Quiero hablar con ella para entender lo que pasó allí entre finales de la década de 2010 y finales de los años 20. Después se alejó de todo.



–Hola Fatima. ¡Salam!


–Alex, qué guapo estás. Me alegro mucho de verte. Me interesó mucho lo que me escribiste. Estaré encantada de ayudarte, tengo mucho material almacenado por ahí que podría interesarte. Puedo enviarte fotos.


–Eso sería genial, Fatima. Oye, voy a grabar la llamada, ¿vale?


–Sí, dale, hace mucho que ya no me preocupo de esas cosas.


–Lo siento, en realidad, esto ya se estaba grabando, se inició automáticamente.


–No hay problema, Alex. Dime lo que quieres saber.


–De acuerdo. Fatima El Idrissi, ¿puedes decirnos quién eres?


–[Risas] Ahora soy agricultora urbana en Marrakech, pero fui activista revolucionaria. Durante muchos años creé y dirigí organizaciones políticas, participé activamente en la Revolución marroquí y durante varios meses formé parte de la asamblea constitucional ecosocial de la República de Marruecos. Luego participé en las Caravanas del Futuro antes de retirarme de la vida activa porque he estado enferma. Pulmones y corazón. Es el precio que he tenido que pagar por tanta agitación.


–¿Cuándo empezaste a implicarte en política?


–Empecé a tomar conciencia política durante las Primaveras Árabes. Tenía 18 años y participé en las protestas aquí en Marruecos. Observábamos lo que ocurría en Egipto –donde destituyeron a Mubarak–, Túnez, Libia... El mundo entero estaba cambiando. Me emocioné mucho cuando se anunció que íbamos a tener una nueva Constitución... pero al final resultó ser un truco.


–En otras palabras…



–Pues que el rey mantuvo su poder intacto y, a pesar de algunos maquillajes, las cosas siguieron más o menos igual. Entonces las cosas empezaron a explotar en Europa, Estados Unidos, Brasil y Turquía. Pero al final, con lo que pasó en Egipto, Libia, Siria, Grecia e incluso después en Estados Unidos y Brasil, todo fue muy frustrante. Parecía que el mundo iba a mejor y en pocos años todo retrocedía.


–¿Te sorprendió?


–Fue entonces cuando perdí mi inocencia política. Pero la vida siguió. En 2016, la COP22 fue aquí mismo, en Marrakech. Fue un proceso de aprendizaje e implicación muy interesante para mí, conocer un mundo nuevo. Ya me interesaba el cambio climático y quería participar.


–¿Y participaste?


–Un amigo me invitó a participar en unos actos y me lo explicó todo: cómo el gobierno se había inventado una serie de ONG para que actuaran como extras de la sociedad civil, cómo las negociaciones no iban a ninguna parte, cómo en las mismas salas se hacían los grandes negocios (agrícolas, energéticos, de transporte) de las mismas empresas que estaban produciendo el cambio climático. Era increíble. El ímpetu tras la firma del Acuerdo de París se estaba apagando y, justo en medio de aquella COP, Donald Trump fue elegido presidente de Estados Unidos. No se habló de otra cosa en la conferencia. Trump incluso había prometido desechar el Acuerdo de París. Otra decepción para mí, pero al menos mi amigo ya me había avisado.


–Fueron muchas decepciones, ¿cómo es que seguiste participando?


–Iba y venía. En aquella época aún no estaba en ningún grupo, hacía trabajos esporádicos, como traducciones y algo de secretaría. Intenté no deprimirme, seguí con mi vida. Era amiga de varias personas implicadas en luchas ecologistas, sociales y de profesores. En Marruecos hubo mucha agitación... Incluso antes de la COP, en Marruecos tuvimos protestas por todo el país porque la policía había asesinado a un vendedor ambulante. La gente estaba descontenta de forma intermitente. Lo estaban desde las Primaveras Árabes. Incluso antes...



–Pero se decía entonces que el gobierno marroquí estaba muy avanzado en política climática...


–El rey y sus aliados poseían las centrales eléctricas de carbón y gas, y también las centrales solares. En Uarzazat se había construido la mayor central de concentración solar del mundo, hectáreas y hectáreas de paneles en medio del desierto. Desde el suelo no se podía ver en toda su extensión. Pero aquella energía no era para nosotros, el plan era exportarla. A Europa, por supuesto. Y como no había agua para limpiar la arena, teníamos que seguir sacando agua allí donde las comunidades la necesitaban. Además de eso, el gobierno y el rey seguían explotando los fósiles. Incluso durante la cumbre estaban dando concesiones para hacer exploraciones de petróleo y de gas en el mar, y de gas de lutita en tierra firme. Todo lo que pudiera dar dinero, lo hacían. Mientras tanto, gran parte de la población ni siquiera tenía electricidad. Si desmantelaran la planta solar de Uarzazat y entregaran todos esos paneles solares a los pueblos y los barrios, las cosas serían muy diferentes, pero eso no servía a los intereses de la monarquía. Se trataba, sobre todo, de propaganda política.


–¿Y cuándo empezaste a participar más en serio?


–En 2019, cuando empezaron las huelgas climáticas, mi hermana pequeña me pidió ayuda para hablar con los profesores y organizar huelgas, y acepté ayudarla. Entonces apareció Extinction Rebellion Maroc y me picó la curiosidad. Participé en algunas acciones. Fuimos reprimidos duramente por la policía, pero empezamos a crear un grupo con cierta confianza, y a hablar con otras organizaciones que no tenían que ver con el cambio climático, pero que también estaban preocupadas. Se unieron algunas personas que habían participado en la farsa de la COP22 y que realmente querían hacer algo. Con la COVID todo fue cuesta abajo. Después de la muerte de alguien importante para el movimiento, sentí la necesidad de asumir más responsabilidades. Luego vino la crisis pos-COVID, la crisis energética, la subida de los precios de todo, la invasión rusa de Ucrania y el auge de la extrema derecha en Europa, la masacre en Palestina... Parecía que la premonición se hacía realidad y que todo, efectivamente, iba cuesta abajo. Empezamos a hablar con gente de otros países árabes y del norte de África. Lo primero que urgía era detener el acuerdo de la Unión Europea para enviar a millones de refugiados a Libia, pero eso no era suficiente. Las olas de calor estaban provocando la muerte de miles de personas cada año aquí, en Marruecos, pero nunca se decía que morían por el calor o a causa de la crisis climática, siempre se hablaba de «muertes adicionales».




Y el descontento aumentó. Los precios de los alimentos empezaron a subir, a veces ni siquiera era posible comprar cereales. Fue entonces cuando se produjo la gran «marea muerta»: cientos de millones de peces llegaron a la costa. Las costas atlánticas de Europa, África del Norte y Estados Unidos se cubrieron del color plateado de los peces muertos y del olor nauseabundo que desprendían. Fue devastador para las comunidades pesqueras. Todo el mundo sintió la catástrofe. En aquel momento me involucré en Mundo Nuevo, fue mi primera gran experiencia internacional. Poco después, el gobierno decidió perseguirnos. Varios compañeros fueron detenidos.


–¿Y tú?


–Me alertaron a tiempo y huí a Europa. Mi madre era francesa y por eso tenía el pasaporte.



Grunge Newspaper Background

Maré da morte!

Milhões de peixes mortos nas costas do Atlântico Norte


Cientistas estimam que mais de mil milhões de peixes mortos deram às costas da América do Norte, Europa Ocidental e Norte de África. México, Estados Unidos, Canadá, Noruega, Irlanda, Gales, França, Espanha, Portugal e Marrocos acordaram esta manhã com verdadeiras

marés de morte. Os cientistas apontam para para o grande aumento

de temperatura e para os surtos de algas e cianobactérias que têm

coberto largas áreas do oceano, reduzindo a disponibilidade de

oxigénio para os peixes.

As autoridades têm tentado remover os peixes, com ajuda das

populações, perante um acumular de nuvens de insectos nas costas

que são um risco acrescido de saúde pública.

Marea de la muerte


Millones de peces muertos en las costas del Atlántico Norte


Los científicos calculan que más de 1.000 millones de peces muertos han llegado a las costas de Norteamérica, Europa Occidental y el norte de África. México, Estados Unidos, Canadá, Noruega, Irlanda, Gales, Francia, España, Portugal y Marruecos se han despertado esta mañana con verdaderas «mareas de muerte». Los científicos apuntan al enorme aumento de la temperatura y a los brotes de algas y cianobacterias que han cubierto amplias zonas del océano, reduciendo la disponibilidad de oxígeno para los peces. Ante la acumulación de nubes de insectos en las costas, que suponen un riesgo cada vez mayor para la salud pública, las autoridades intentan retirarlos con la ayuda de la población.



2. LA REVOLUCIÓN MARROQUÍ

- Fátima, lo siento, ¡se cortó la llamada! Estábamos hablando de cuando empezaste a implicarte más seriamente en política.


- Me di cuenta, es normal, no hay problema.


- Hablábamos de cuando tuviste que abandonar el país, ¿no debió de ser fácil?


- Seguí en contacto con movimientos de clima político en varios países de Europa. Había exiliados como yo, seguíamos en contacto e incluso hacíamos gran parte de la comunicación para la gente que se había quedado en Marruecos, los presos y los clandestinos.


- Fue entonces cuando nos conocimos, es cierto.


- Sí, me quedé en tu casa durante 10 meses, con tus padres, mis queridos amigos António y Marta. António también estaba involucrado en Mundo Novo...


- ¿Puedes explicarme qué era Mundo Novo?


- Era una coalición de sindicatos, académicos y movimientos por la justicia climática. Era una plataforma que construía planes de transformación ecosocial para diferentes países, y fue a través de los contactos de Mundo Novo como os conocí.


- ¿Era algo más técnico?


- Mundo Novo empezó como una organización un poco académica, pero se fue haciendo cada vez más política. Cuando surgió, hablábamos sobre todo de energía y transporte, y de las repercusiones de la crisis climática en quienes trabajan en estos sectores. Pero evolucionó rápidamente. Se extendió a

todas las demás actividades de la sociedad y empezó a organizar grandes manifestaciones en medio de crisis financieras y guerras. Se convirtió en una especie de gran alianza progresista. Pero siempre hubo mucha resistencia a la idea de que se convirtiera en un partido político electoral. Y así permaneció, siempre según este modelo con una alianza política y un componente técnico.


- Más tarde, fue el Nuevo Mundo el que escribió la Ruta del Futuro, ¿no? Cuando comenzaron las grandes migraciones.


- Sí, la Ruta del Futuro fue un documento maravilloso que sentó las bases para distribuir más de 500 millones de refugiados climáticos por todo el mundo durante 15 años a los países donde podían ser acogidos. A través de las Caravanas hacia el Futuro, trasladamos a millones de personas en grupos de cientos de miles desde sus lugares de huida hasta sus destinos finales.


- Hábleme de ello: nunca antes se había producido un movimiento de refugiados bien organizado por todo el mundo, ¿verdad?


- Participé en siete caravanas a lo largo de cuatro años. La más larga fue de Pakistán a Alemania. Otras fueron más cortas, pero logísticamente muy complejas, como la de Indonesia a China, con transbordadores y barcos. Trasladamos ciudades casi enteras, que pasaron meses en movimiento. Necesitábamos seguridad, sanidad, alimentos, logística y otras cosas. Creamos enormes procesos compartidos para llevar cada caravana hasta el final.


- No eran procesos sencillos, imagino.


- No. En los primeros años, las cosas eran muy complicadas. Teníamos que proteger las caravanas de los ataques de la mafia, las milicias y, a veces, incluso de la población local. Pero mejoraron con el tiempo. También aprendimos y cambió el sentimiento hacia el proceso migratorio, porque cada vez








había más gente de todas partes, e incluso dentro de los países había grandes cambios, con partes de los países que se volvían inhabitables y mucha migración interna. Las llegadas y los festivales de acogida fueron maravillosos, pura alegría. Fue épico. Empecé a sentir que allí había una nueva idea de la humanidad. O una vieja idea, de viajeros y huéspedes con los brazos abiertos, que se había ido desvaneciendo durante mucho tiempo. Fue entonces cuando empecé a sentir que por fin podía alejarme y descansar.


- Pero esto es después de la Revolución marroquí, ¿no? Y esa ya fue una revolución causada o iniciada por la crisis climática...


- La revolución fue en 2028. ¿Quieres que hable de ello?


- Creo que es importante, sí.


- Bueno, no se puede explicar sólo con Marruecos. Las grandes olas de calor ya habían sacudido todo en Europa, Estados Unidos y Asia, incluso el movimiento e-comunista ya había sido fundado y anunciado públicamente. Yo ya estaba en el movimiento, como tu madre. Pero yo no pertenecía a la facción armada.


- ¡¿Mi madre pertenecía a una facción armada?!


- Sí, Marta era dirigente del Ejército Verde. Tenía experiencia, ya que había participado en importantes acciones de sabotaje. Había pertenecido a ORCA o Descarbonaria, no estoy segura. No hablaba de ello. Su pasado era un poco turbio, no puedo asegurarlo...


- No sabía nada al respecto. ¿Cómo puedo saber más? ¿Con quién puedo hablar?


- Creo que Gianrocco podría contártelo. ¿Sabes quién es? ¿Gianrocco Fratin?


- No.


- Conocía a tus padres, era su contacto en el movimiento. Ahora es el Comisario de Energía en Florencia. Puedo ponerte en contacto.


- Gracias por eso. ¿Estaba también en el Ejército Verde?


- No, estaba en los equipos de información y era uno de los responsables de los enlaces con la guerrilla y otros grupos, así que conocía a mucha gente. Siempre fue muy activo, y lo sigue siendo hoy. Es más joven que yo. También es un buen contacto porque sabe mucho más que yo sobre lo que pasó en Europa, siempre estuvo involucrado en las grandes decisiones.


- Gracias, Fátima. ¿Puedes hablarme de la revolución en Marruecos?


- La dictadura de Sisi en Egipto ya había sido derrocada por el golpe de Estado laico y la guerra civil en Estados Unidos hacía estragos. Hubo una enorme escalada de tensión entre los gobiernos de Marruecos y Argelia y los gobiernos estaban movilizando fuerzas armadas para una guerra, que sería fratricida y completamente estúpida. Las exportaciones de gas a Europa se habían detenido por completo y había tensión con la llegada de refugiados climáticos al lado saharaui, y en particular a los territorios del Sáhara Occidental, y la confusión en la zona de Palestina.


- ¿Y consiguieron frenar la escalada bélica?


- En Marruecos formamos una gran alianza progresista (nosotros éramos una parte importante de la alianza) y derrocamos a la Monarquía prácticamente sin violencia. Las grandes movilizaciones derribaron el régimen, que dejó el poder en el descrédito. En el sur, el movimiento independentista saharaui declaró su independencia y expulsó al ejército monárquico. Apoyamos el fin de esta ocupación, en contra parte de nuestra alianza.


- ¿Y en Argelia?


- En Argelia, el movimiento actuó en solitario y fracasó. Pero, a pesar de ello, las tensiones



entre los dos países disminuyeron y, como aquí éramos gobierno, no mataron a nuestros camaradas de allí, algunos incluso se exiliaron a Marruecos. En el fondo, creo que incluso las élites argelinas no querían un conflicto abierto.


- ¿Y qué cambió con la revolución?

















“ASAMBLEA SANGRIENTA


Ayer explotó una bomba en la Junta General de Accionistas de Shell en Londres y murieron 200 personas, entre ellas todos los miembros del Consejo de Administración. Scotland Yard y la Policía Metropolitana de Londres ya han detenido a varios sospechosos. El Presidente de la Comisión Europea ha acusado directamente a los movimientos ecologistas y climáticos de ser los responsables del atentado y promete que la Unión Europea trabajará para castigar ejemplarmente a los terroristas responsables de estas muertes.”






















- Ouve, Alexandre, eu canso-me muito rápido e rebuscar estas coisas todas do passado está a stressar-me um pouco. Vou-te pedir para pararmos por hoje.


- Claro, Fatima. Como preferires. Podemos falar outro dia?


- Sim, acho que sim. Mas da próxima vez traz a criança, que eu gostava muito de vê-lo. Como está a tua companheira?


- Muito bem.


- Trá-la também para eu vê-la. Vocês estão felizes?





















“DETENIDOS TERRORISTAS ECOMUNISTAS


La Agencia Europea de Justicia, el gobierno de Estados Unidos y el gobierno provisional de la República de Texas han emitido órdenes internacionales de detención contra más de un millar de dirigentes relacionados con el movimiento ecomunista, de los cuales más de 600 ya han sido detenidos en Europa. Los gobiernos de Angola, Nigeria, Namibia y Marruecos (donde los ecomunistas forman parte del gobierno) rechazan los cargos y la validez de las órdenes de detención. Los países asiáticos tampoco reconocen la validez de la orden de detención. El movimiento ecomunista está acusado de estar detrás del atentado en el que murieron más de 300 personas en Londres durante la Asamblea General de la Shell.”



- ¿Y qué cambió con la revolución?


- Pudimos llevar a cabo un programa de transformación parcial, colectivizamos el agua y la energía e iniciamos una reforma rural. Éramos demasiado dependientes de la agricultura del exterior para seguir soportando choques de hambre. Y por increíble que parezca, ¡funcionó! Iniciamos una gran transformación en la organización de la producción, la distribución y la alimentación para satisfacer las necesidades de la población. Hacia el sur, el movimiento participó en levantamientos y revoluciones en Nigeria, Angola y Namibia, y gobernaba en alianzas. Pero entonces se produjo la Asamblea Sangrienta y, a escala internacional, los e-comunistas fuimos reprimidos en la mayoría de los demás países. Fue entonces cuando detuvieron a tus padres. ¿Sabes de lo que estoy hablando?


- Sí.


- Escucha, Alexandre, me canso muy rápido y volver sobre todo esto del pasado me está estresando un poco. Voy a pedirte que pares por hoy.


- Por supuesto, Fátima. Como prefieras. ¿Podemos hablar otro día?


- Sí, supongo que sí. Pero la próxima vez trae al niño, me encantaría verlo. ¿Cómo está tu compañera?


- Bien.


- Tráela también para que pueda verla. ¿Estáis contentos?


- Somos muy felices.


- Que bueno. Sobre el tema de la Asamblea Sangrienta, es Gianrocco quien puede explicarte esta confusión. Te enviaré sus datos de contacto. Y los de Sukumar también.


- Ya tengo los de Sukumar, Fátima. Hablaré con él en cuando pueda.




- Envíale un fuerte abrazo y dile que me envíe su último libro, que aún no he recibido.


- Le digo. ¿Quiere concertar una cita ahora?


- Ahora mismo no tengo agenda, Alex. Haremos un plan en los próximos días. Fue muy bueno verte, saber que eres una persona feliz, hermosa y curiosa. Tus padres estarían muy contentos, Alex, de saber que tú también quieres saber lo que han hecho, lo que han arriesgado. Estoy muy feliz de hablar contigo. Un beso, cariño. Shukra


- Adiós, Fátima.


Nunca volví a hablar con Fátima. La hospitalizaron a los pocos días y murió de cáncer de pulmón dos semanas después. Antes de morir, me envió un correo electrónico con algunos contactos, entre ellos Gianrocco Fatin y Pepe Infante.



La desglobalización se ha impuesto


El canciller Henry Sacksville se sentó a reflexionar en voz alta sobre cómo el débil consenso en torno al neoliberalismo: "se ha derrumbado definitivamente" y no sólo porque "a nadie le importen la Organización Mundial del Comercio, el Banco Mundial o el Fondo Monetario Internacional". "Las transacciones mundiales", dijo, "ya sean financieras, de materias primas, manufactureras o de bienes y servicios, llevan años cayendo". No comerciábamos tan poco a nivel mundial desde la década de 1980.


Tras las elecciones estadounidenses, la no aceptación de los resultados electorales dio lugar a una campaña de sabotaje de la red eléctrica. Y la nueva administración acabó, según el Secretario de Energía Kyle DeSomber, lanzando "Energize, el mayor paquete de energía descentralizada a gran escala de la historia, 200.000 millones de dólares", lo que acabó quebrando la fuerza económica de las exportaciones del mayor productor de petróleo y gas del mundo.


La independencia de Crimea, Abjasia y Osetia del Sur, separándose de Rusia, Ucrania y Georgia, supuso otro fuerte golpe a la estabilidad del sistema de transporte fósil. No tanto por la producción de petróleo en Serebryankse y Subbotina, o de gas en Chornomoske, Dzanhkoi y Odeske, sino por la reducción del acceso directo ruso y ucraniano a los puertos del Mar Negro, tras años de conflicto y el declive de la conexión fósil de Rusia con la Unión Europea. Las catástrofes climáticas de Qatar y Arabia Saudí han hundido aún más el sector y la OPEP ha perdido en pocos años su estatus de actor global.


Las energías renovables emergentes, tras las intervenciones públicas, pasaron a ser en gran medida autónomas y con cadenas de producción cortas y, como dijo el Secretario de Energía estadounidense, "demasiado pequeñas para fracasar".


La desglobalización política se produjo con el ascenso electoral del iliberalismo y el conservadurismo, y el ascenso social de la extrema derecha y la extrema izquierda. La desglobalización económica sólo comenzó plenamente en la era post-Covid19. La crisis generada por la inflación (y aún hoy se debate si su origen fueron los precios del petróleo y el gas, la invasión de Ucrania, los altos salarios europeos o los beneficios de aquellos años) fue tratada como la crisis financiera de 2008 o la crisis de la deuda soberana. La economía mundial vio cómo se contraía la disponibilidad de capital, mientras que las nuevas inversiones pasaron a ser principalmente públicas y nacionales. La Reserva Federal y el Banco Central Europeo decidieron repetidamente subir los tipos de interés, reduciendo la renta disponible, la capacidad de compra y el endeudamiento de las economías, las empresas y los hogares, sumiendo pronto a la economía mundial en un nuevo crecimiento anémico. La crisis de inflación se convirtió en una crisis de deuda pública y privada.


Para colmo, como ha señalado la analista de riesgos Andrea Lloyd, "las catástrofes climáticas se cernieron sobre nosotros y el edificio de las compañías de seguros y reaseguros se derrumbó: eran gigantes con pies de barro". Munich Re y Swiss Re fueron rescatadas y nacionalizadas, razón por la cual el PIB suizo se contrajo un 3% sólo ese año. La tasa de rechazo de nuevos seguros alcanzó el 53% y sembró el pánico en el mercado crediticio. Los Estados tuvieron que volver a emitir más deuda pública. Las agencias de calificación pidieron

Blank open magazine

Analysis

moderación, aunque la moderación sólo podía significar más crisis económica. El conflicto entre los gobiernos y los bancos centrales independientes se agudizó.

Los Estados y los gobiernos dejaron de escuchar a las agencias de calificación y la mayoría de las organizaciones financieras dejaron incluso de pagar a Standard and Poor, Fitch y Moody's. Pero los bancos centrales seguían guiándose por las mismas soluciones que se venían aplicando desde los años setenta. Así que el llamamiento a la moderación seguía teniendo suficiente efecto como para detener la apariencia de recuperación económica. La respuesta fue la austeridad.


La extrema derecha europea era la mejor situada para responder a la situación en ese momento y en su descontento ganó puestos de gobierno en varios países europeos. Enterró el Green Deal europeo (un paquete de inversión pública que podría haber amortizado la crisis económica con un retorno efectivo) y utilizó gran parte de los fondos estructurales y del PRR para crear el programa Energía Europea para los Europeos (EEFE), levantó las restricciones a la inversión en petróleo y carbón y anunció la construcción del nuevo complejo nuclear europeo, 40 centrales más, que estarían listas décadas después. Pero no fue posible movilizar inversión privada, sólo pública, para este proyecto. Para el eurodiputado italiano Ettore Gatto, "intentaron resucitar a los muertos y lo único que consiguieron fue crear zombis energéticos”.


En cuanto a la migración, según Rudd Eingarten, del ACNUR, el programa político incluía un nuevo acuerdo migratorio con Libia, con más de cuatro millones de migrantes y refugiados depositados allí, lo que convierte a Libia en "el mayor campo de concentración y muerte de la historia", frente a un gran préstamo del Banco Europeo de Inversiones para restablecer las conexiones energéticas.


La persecución política en Europa ha vuelto inestables los intercambios comerciales y la violencia ha interrumpido flujos esenciales para la vuelta a la normalidad, como hemos visto en las escenas de violencia en los parlamentos alemán, español y francés. En las olas de calor que siguieron murieron 1.500 trabajadores en Serbia, Bulgaria y Rumanía. Y se desató una oleada de huelgas generales para imponer la reducción de la jornada laboral en verano. Incluso con una violenta represión policial, los sindicatos mostraron una fuerza que no se veía en Europa desde hacía décadas e impusieron su voluntad, derrocando a los gobiernos de Belgrado y Sofía y haciendo sangrar las economías, con menos productividad y horas de trabajo (reducidas de 2h30 a 4 horas diarias).


Cuando estas huelgas alcanzaron a los trabajadores de la industria fósil, que exigían sus propios

The Economist

sistemas de control climático tras los accidentes mortales del Golfo Pérsico, varios gobiernos adquirieron una parte importante de las estructuras accionariales de las empresas fósiles. Esta decisión aumentó los salarios y creó nuevas normas laborales, pero sobre todo consiguió bajar los precios de la gasolina, el gasóleo y el gas natural, que en aquella época batían todos los meses récords históricos de precios.


En aquel momento, la inflación en la Unión Europea alcanzaba el 36%. Los bancos redujeron aún más su acceso al crédito ante el resurgimiento del Estado y las nuevas normas laborales. El acuerdo entre la Unión Europea y Estados Unidos para acabar con los paraísos fiscales, que también pretendía aumentar los ingresos fiscales, resultó no ser tan eficaz y miles de millones acabaron huyendo.


El último golpe fue económico: la contracción y el giro internos de China en respuesta al proteccionismo estadounidense, europeo y japonés. La reducción de las importaciones chinas de energía, la reducción de las exportaciones y la restricción de las inversiones extranjeras cerraron este ciclo.


De este modo, se desmantelaron algunas de las principales herramientas de la globalización: con la intervención gubernamental a gran escala en las políticas industriales -el IRA y Energize en Estados Unidos, el EEFE en la Unión Europea, y las políticas energéticas en China e India- y la intervención estatal en las empresas más grandes, resurgió el poder obrero. También ha vuelto la violencia política de extrema derecha y extrema izquierda. Y se ha restringido la circulación internacional de capitales.

Los altos precios y el difícil acceso al crédito llevaban años socavando el comercio internacional. A medida que disminuía el comercio, el sistema de deuda mundial se hundía en el impago. "El tren de la desglobalización tardó años en ponerse en marcha, pero ahora su inercia lo ha hecho imparable", concluyó el Canciller Sacksville. Sólo la inyección de dinero barato en las economías podría haber salvado la globalización, pero no fue así.


Ahora, la gente odia a los ricos porque tienen lo que ellos no tienen y roban en los supermercados para distribuir alimentos. Pero con cada vez menos comercio internacional, eso es lo mejor a lo que pueden aspirar. Las estanterías de muchos lugares ya se están vaciando. La globalización está cayendo y con ella la capacidad de crear riqueza y desarrollo a escala planetaria.


Tenemos que pensar en la economía de una manera más desintegrada, más primitiva, más inaccesible. Sólo la innovación puede salvarnos de la recesión permanente. Tendremos que comer lo que producimos. Por primera vez en 180 años, no sabemos si podremos seguir publicando durante mucho más tiempo.

3. lA independencia de texas

3. lA independencia de texas

Hace mucho calor en Lisboa. Aunque no es un año de temperaturas récord (aquí hemos superado los 50 ºC más de una vez), es difícil estar fuera de casa. Corremos de jardín en jardín y de sombra en sombra, y tenemos que parar a refrescarnos en los puntos de agua que hay repartidos por la ciudad (ahora abundan), llenando los vasos de latón que todos llevamos sujetos a la cintura en verano. Hace tres años se levantaron las restricciones al tráfico durante las olas de calor estivales, pero sé que no debería estar fuera a estas horas, aunque no corra peligro. Lo que ocurre es que la persona a la que voy a entrevistar sólo estará aquí dos días y hoy es el último.


He conseguido tomar un café con Olivia Anwar, comunicadora y productora de contenidos en San Francisco, en la República de California. Está cruzando Europa para hablar con migrantes, dice que quiere ser como Homero y escribir una nueva Ilíada, esta vez contando las increíbles historias de refugiados que dejaron sus hogares a miles de kilómetros de distancia, algunos de ellos hace muchos años, y finalmente encontraron un hogar en el sur de Europa, sobre todo en el interior rural.


Pero ese no es el tema de la entrevista de hoy. Se trata de entender mejor lo que ha ocurrido en Norteamérica en los últimos años: la guerra, las secesiones y la nueva realidad de esos territorios y países. Es joven (probablemente tenga mi edad, pero ha estudiado los años de la Segunda Guerra Civil estadounidense, o de la Segunda Guerra de Independencia, según con quién hables).


Olivia me envió un mensaje instantáneo para decirme que llegaba tarde. Me quedé observando las calles de la ciudad bajo la sombra de los árboles y los toldos blancos. Son las ocho de la tarde y Lisboa está adormecida. Hay algunas tiendas

abiertas, sobre todo de reparación. Aquí, en la Rua Morais Soares, hay más de 20 tiendas de reparación de cosas viejas, como frigoríficos, radios, microondas u ordenadores. Consiguen mantenerse abiertos porque nunca les faltan aparatos de aire acondicionado (para arreglar y para vender). También hay una gran biblioteca nueva donde antes había una tienda de animales muertos para comer. Concerté la entrevista con Olivia en la biblioteca.


A veces todavía cuesta creer que hace sólo unos años la mayoría de los materiales electrónicos se desechaban y se sustituían a gran velocidad. Hoy los reutilizamos casi al 100%. Sé que también se debe a que ya no hay tantos productos nuevos como antes. Pero es realmente difícil de entender cómo alguien pensó que era posible desechar tantas cosas tan rápidamente y sin consecuencias.


En fin, estas son también algunas de las preguntas que anoto en mi bloc cuando miro el presente y pienso en el pasado sobre el que estoy escribiendo.


Otro ejemplo: los nuevos paneles que informan sobre la temperatura del bulbo húmedo. No sirve de mucho en Portugal, y eso es bueno. Indica que, aunque la temperatura sea alta, no corremos riesgo de muerte, como ocurre todos los años en países asiáticos o en Sudamérica. Creo que sólo ponen la pantalla aquí para tranquilizar a la gente que llega de India y Bangladés; aún arrastran el trauma colectivo de las muertes en la calle –y en casa– por la combinación de calor y humedad.


A lo largo de la avenida hay carteles en varios idiomas –portugués, inglés, hindi, nepalí, francés– que anuncian los negocios de los pequeños comercios y también dan las gracias y la bienvenida a los recién llegados a la ciudad. Para celebrar la llegada de gente nueva a Lisboa, todos los años se celebra la fiesta de la «Cidade Nova», que comienza en la

plaza que encabeza la avenida –la Praça da Revolução de Janeiro–, baja por Morais Soares y termina en Alameda. Los cipreses están plantados en medio de la avenida y también hay algunos algarrobos pequeños y otros arbustos coloridos. Están muy bien cuidados. Equipos de «arboricultores» y jardineros cuidan los árboles todos los días, mañana y noche. Llevan registros precisos del estado de salud de cada planta.


En Lisboa, las distintas regiones y laderas de la ciudad tienen plantadas diferentes especies, además de las zonas de árboles frutales y arbustos. Están las tradicionales higueras, acebuches, alcornoques y encinas, pero también hay árboles que hace unos años no se consideraban autóctonos, como los negundos, las palmeras datileras, los cedros del Atlas, los pinos carrascos, los arganes y los extraños cipreses del Sáhara. El propio concepto de especie autóctona ha cambiado con las grandes migraciones de plantas, animales y personas, y también porque nuestro clima es ahora más parecido al que existía en el norte de Marruecos hace unas décadas.


Aunque yo nunca he hecho este trabajo en mis rotaciones, Lia lo ha hecho durante varios años. Es un trabajo muy interesante, pero agotador. Lo discutimos a menudo, tanto en casa como en las reuniones de vecinos, porque siempre que hay problemas con los árboles, si empiezan a morir, hay gente que entra en pánico.


Desde que estoy aquí, han pasado varios tranvías. Pasa uno cada 10 minutos. A esta hora aún traen los tres vagones medio vacíos. En unos minutos serán hasta seis vagones y estarán llenos de gente que irá a trabajar a su turno de tarde, de tres horas, o a divertirse. A veces, los tranvías especiales para el transporte de la cosecha también pasan por aquí de camino a los puntos de molienda y entrega de alimentos: allí abajo, detrás del cementerio y bajando hacia los valles de Chelas



se encuentra una de las mayores zonas agrícolas de la ciudad de Lisboa. Los campos y los invernaderos producen alimentos para cientos de miles de personas. Pero eso no basta, por supuesto. Parte del grano procede de los pueblos. Además de las grandes superficies agrícolas gestionadas por la Asamblea de la Ciudad, también hay pequeños huertos de barrio, en jardines y en los tejados verdes de los edificios. Por ejemplo, el edificio que tengo delante tiene pequeños árboles frutales en la azotea.


Olivia me toca en el hombro, interrumpiendo mis pensamientos. Es una mujer de unos 30 años, con el pelo de color verde y piercings en la nariz y las orejas. Viste de azul oscuro, con una chaqueta de lino y una gorra. En Lisboa, el azul oscuro es el segundo color más popular en verano, después del predominante rojo oscuro. Me saluda efusivamente, pero a la americana, sin abrazarme.


Books on Wooden Shelves Inside Library

Entramos en la biblioteca, donde nos sentamos a tomar té helado. Dice que la abundancia de libros en las bibliotecas de Lisboa es impresionante. Le explico que en los últimos años los fondos de las librerías se han transferido todos a bibliotecas y que el gran número de éstas se debe sobre todo a la transformación intermedia de las librerías en espacios públicos y en refugios contra el calor. Lo decidió la primera Comisión de Calor de Lisboa.


Eso no ocurrió en California. En aquella época estaba empezando la guerra civil, responde con cierta tristeza. Le pido permiso para grabar nuestra conversación.



- Hoy es 12 de agosto de 2042 y he quedado con Olivia Anwar, ciudadana de la República de California, creadora de contenidos, que se encuentra de viaje por Europa.


- Hola, Alexandre. Un placer hablar contigo.


- Olivia, como te he explicado, estoy haciendo un estudio sobre lo que ha pasado en las últimas décadas. Es un proyecto para mí y mi familia. Me gustaría agradecerte que te hayas tomado la molestia de hablarnos un poco de California y de Estados Unidos, de lo que ha pasado en las últimas décadas y de lo que está pasando ahora.


- Sí, por supuesto. ¿Quieres que empiece? ¿Por dónde lo hago?


- Creo que sería interesante entender los acontecimientos que desembocaron en la Guerra Civil y en las secesiones…


- Bueno, para hablar del inicio de todo esto (si es que se puede hablar de un inicio), creo que no podemos obviar el fin del estatus de Estados Unidos como superpotencia y policía del mundo, el asalto al Capitolio de 2021 y la guerra de


baja intensidad que tuvo lugar en los años siguientes. El terrorismo neonazi en Estados Unidos empezó a evolucionar cuando el partido republicano se dividió tras las nuevas elecciones presidenciales. Comenzaron los ataques a iglesias y discotecas durante unos seis meses, mientras el sistema energético (sobre todo el eléctrico) sufría constantes ataques de saboteadores.


La inestabilidad en el país era enorme, todo el mundo tenía mucho miedo y mucho odio. Había un lujo obsceno en medio de la pobreza. Había millones de personas sin techo y adictas a los opiáceos. Una parte de la sociedad vivía en un miedo permanente, alimentándolo y alimentándose de la violencia de las milicias identitarias religiosas en las calles: contra los sin techo, contra las mujeres, contra las comunidades negras… Contra todas las comunidades que no fueran blancas, heterosexuales y cristianas.


Por otro lado, estaban las milicias negras creadas para proteger los barrios negros, sobre todo en los estados del sur, pero también había grupos violentos que saboteaban el estilo de vida de los ricos, invadiendo hoteles y complejos turísticos de lujo, destruyendo símbolos de opulencia, desde concesionarios de coches hasta campos de golf, y ocupando plataformas petrolíferas y saboteando gasoductos. El Estado violento, la policía y el ejército ya no eran elementos disuasorios para detener a los extremistas. Las transformaciones internacionales volvieron las cosas aún más inestables. Cuando la Federación Rusa se disolvió, se produjo un repentino vacío internacional que hizo que los militares se centraran en crear un gran enemigo: China.


En medio de todo esto, tuvimos oficialmente más de un millón de muertos en el primer verano de olas de calor globales. Los muertos fueron, principalmente, ancianos, niños y los más pobres entre los pobres. Las cifras reales, en cualquier caso, fueron sin duda mucho más altas que las oficiales. En Europa, la cuestión de las mujeres embarazadas y los bebés fue más grave. Aquí también llegó el movimiento «Nuestros hijos», que movilizó a los colectivos evangélicos más conservadores. Estaban convencidos, porque Internet así se lo hizo creer, de que era el gobierno el que lo había organizado todo, los abortos espontáneos, la muerte de los bebés... La reacción internacional al infierno de calor y caos que siguió fue crear el Tratado Mundial sobre el Clima. Estados Unidos se negó a adherirse, como muchos otros, pero aun así el Gobierno dio una señal pública de cierto alineamiento, con una moratoria a la explotación de nuevas reservas de petróleo y gas.


- ¿Estados Unidos era entonces el mayor productor mundial?


- Sí, de petróleo y de gas. Los estados que más producían eran Texas, Nuevo México, Alaska y nosotros, California. Después de la moratoria, el gobernador de Texas proclamó que iban a poner en marcha un proceso de independencia, con el apoyo de los presidentes de las grandes petroleras y de los principales partidos herederos de los antiguos republicanos. Todo el mundo pensó que sólo se trataba de una amenaza para quebrar la moratoria, pero se produjeron grandes atentados en Nueva York, Washington D.C., Atlanta y Tallahassee, y el pirateo de los sistemas de seguridad. Poco antes se había producido un golpe de Estado en China y Estados Unidos se quedó sin enemigos exteriores visibles.


- ¿Cuáles fueron las consecuencias del golpe en China?


- El nuevo gobierno chino declaró que cesaría todas las actividades en el mar de China y en Taiwán, y que construiría un camino de paz con todo el mundo, especialmente con Estados Unidos... Con esto y el Tratado Mundial sobre el Clima, Estados Unidos perdió un componente esencial de su poder en el mundo: el dominio sobre la energía. Lo que quedaba era el dólar, cada vez más inestable, y el Ejército... Pero sin un enemigo externo claro, no era posible seguir contando esta historia.


- La política mundial estaba agitada, incluso más allá de China…


- Sí, era un caos total. Ocurría en todas partes: además del golpe de los jóvenes comunistas en China, el gobierno nacionalista de Bharat se derrumbó, en Europa tuvo lugar el Septiembre Rojo, con la suspensión de las transacciones de capital, en Sudáfrica grupos de mercenarios intentaron mantener la producción de petróleo y carbón incluso en contra del gobierno que había firmado el tratado... En fin, ya recordarás aquella locura.


- Sí, la información estaba muy desorganizada y sabíamos que no era creíble. Demasiadas patrañas para entender claramente lo que estaba pasando. La cosa empeoró con el DrokGPT y lo que la Inteligencia Artificial hizo a las grandes redes. ¿Qué impacto tuvo en Estados Unidos?


Antique library
Texas Flag Map

a country of our own

Almost 200 years later, free again

- Creo que ayudó a que un país que ya estaba polarizado se volviera aún peor. Se estaba difundiendo propaganda sobre Europa: los neoluditas, ORCA, la Descarbonaria... Y, sobre todo, cosas que ni siquiera existían. Decían que todo eso llegaba a Estados Unidos a través de la migración y los globalistas. De esto hablaban los conservadores: era la base de la guerra cultural, que llevaba décadas sembrada, y que en ese momento estaba dando sus frutos y engordando en número de militantes. DrokGPT lo alimentó todo. El torrente de propaganda funcionó porque, al mismo tiempo, los productos escaseaban y el combustible era más caro que nunca. Todo era insoportable. Todas las debilidades de Estados Unidos –y había muchas– salieron a la luz.


- Pero, ¿cómo se explica la partición del país? Eso no ha ocurrido en ningún otro sitio…


- Bueno, sí ocurrió en otros países, como Rusia, en países africanos, en el Golfo. Ha habido y sigue habiendo intentos de independencia en el interior de varios Estados. Creo que las ciudades libres acabaron siendo válvulas de descompresión en algunos países, pero en el caso de Estados Unidos sólo aparecieron después de que empezara el conflicto. El tamaño del país era importante. Estamos hablando de un país-continente, con culturas e intereses contradictorios... La desigualdad, los odios históricos entre el Norte y el Sur, las armas y la militarización de la sociedad fueron factores decisivos, pero no los únicos.


- ¿Cuál crees que fue el factor decisivo?


- El rápido declive de la industria fósil fue fundamental para explicar lo que nos ocurrió políticamente. El gobierno pasó a ser visto como un enemigo activo, como un opresor, incluso cuando proporcionaba cosas buenas. La contaminación ideológica en la prensa y en las redes sociales, que durante décadas había servido para consolidar a la sociedad en el sueño americano, ahora servía para polarizarla. Visto con perspectiva, ahora hasta resulta sorprendente que los 50 estados permanecieran unidos durante tanto tiempo... Y cuando ya no había un enemigo externo evidente, sólo nos teníamos a nosotros mismos para odiarnos. Fue entonces cuando Texas anunció su secesión y todo se vino abajo…


- Pero no fue sólo Texas…


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- Cuando el gobierno tejano anunció la formación de la República de Texas, Florida, Alabama, Nuevo México, Luisiana, Misisipi y Georgia, es decir, los estados del sur, anunciaron referendos de independencia. Oklahoma, Arkansas y Virginia Occidental también iniciaron sus propios procesos institucionales de independencia. El presidente de Estados Unidos movilizó las tropas, ocupó los congresos de todos estos estados y dio a Texas un ultimátum para detener el proceso. La Guardia Nacional, en todos los estados, se pusieron del lado del gobierno federal. Hubo enfrentamientos con las milicias de extrema derecha, que al principio fueron derrotadas sin dificultad. Entonces predominaban las milicias nacionales cristianas, los Nacris, pero más tarde Ancap se hizo más fuerte. Tras el llamado «Texit», el nuevo gobierno de Texas formó su propio ejército. Texas ya era el segundo estado con mayor ejército del país, pero el gobierno independentista añadió más milicias e incluso propuso a México –¡qué ironía!– formar una federación a cuatro bandas con Nuevo México y Arizona. El impasse duró unos meses.


Por primera vez en casi un siglo, hubo huelgas generales en Estados Unidos por la escasez de alimentos. El gobierno empezó a distribuir comida directamente a la población y a introducir transporte público y energía gratuitos, al tiempo que reclutaba soldados. En aquella época de caos económico, muchos aceptaron alistarse en las Fuerzas Armadas para poder acceder a servicios que nunca antes habían tenido. Mientras tanto, se detectó MERs-CoV en el ganado de Brasil y comenzó el embargo mundial sobre el comercio de carne, lo que dificultó aún más la cuestión alimentaria. Los secesionistas acusaron al gobierno estadounidense y a la Organización Mundial de la Salud de inventar la crisis para hacer la vida aún más difícil a la población. Texas rechazó el embargo internacional de carne e intentó distribuirla, pero no pudo descargarla en los distintos puertos internacionales (que de hecho se negaron a recibir los barcos procedentes de Texas, bajo amenaza del gobierno estadounidense).


Continuará...


Declaration of Independence

Intention of Independence

4. lA II Guerra civil americana

4. lA II Guerra civil americana